sexta-feira, 28 de maio de 2010

Manasche: Sua Vida e Seu Tempo


Oscar Zimmermann
Universidade de Tel-Aviv, Kibutz Brorchail, Israel

FALBEL, Nachman. Manasche: Sua Vida e Seu Tempo. São Paulo, Editora Perspectiva, 1996.

No princípio de sua pesquisa biográfica, Falbel revela um propósito monumental: a ambição de escrever uma História do Sionismo brasileiro. Talvez tão monumental quanto irrealizável, e por assim o ser, volta-se o autor, como parte deste projeto, para "alguns estudos sobre certos aspectos e momentos". (pág. 15). A biografia dada à nossa leitura é um fragmento desta história (veja-se um outro "fragmento" do autor: Jacob Nachbin. São Paulo, Editora Nobel, 1985), sendo que a sua totalidade, tão inatingível, é todavia atestada por este mesmo fragmento: através dos detalhes que ele revela, numa vida dentro de um tempo épico, trágico, conturbado, do período entre guerras até os primeiros anos do Estado de Israel... Hegel afirma, em sua Phänomenologie des Geistes, que a verdade, manifestada no real, só se encontra no total ("Das Wahre ist das Ganze"), ao que Adorno contesta, em sua Minima Moralia, invertendo o famoso dictum de Hegel, ao postular que "O Todo é o Falso"...

Falbel é um historiador medievalista (Prof. Dr. Titular na USP), dotado de notável e competente dedicação aos Franciscanos (de sua autoria: Os Espirituais Franciscanos. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, FAPESP e Editora Perspectiva, 1995) e aos destinos da Ordem... Mas é também um homem autenticamente preocupado com seu tempo e com as histórias a serem descobertas, histórias que ainda não encontraram cronistas que as narrassem. O Arquivo Histórico Judaico Brasileiro deriva seu vigor dos esforços empreendidos pelo nosso autor, com o fim (pioneiro) de organizar e estruturar as fontes da memória e, da potência ao ato, respaldar o trabalho de recuperação, resgatando figuras do anonimato para o conhecimento de todos nós.

Manasche: Sua Vida e Seu Tempo figurou-se a mim como um trabalho que ultrapassa o horizonte de uma curiosidade biográfica. "... Manasche, a Polish jew with the unpronounceable surname of Krzepicki": assim se pronunciou a seu respeito Teddy Kollek (p.110-111, apud T. Kollek, Amos, For Jerusalém. NewYork: Ramdom House, 1978, p.75), amigo pessoal de Manasche, e que viria a tornar-se prefeito de Jerusalém. Com efeito, o personagem central poderia ter compartilhado e reproduzido a história de qualquer imigrante: "A sua viagem ao Brasil se prende, além do espírito de aventura, à atmosfera anti-semita que reinava na Alemanha e se estendia a outros países europeus, incluindo a Polônia, associada às limitações econômicas provocadas pelo desemprego, pela grande inflação e a crise geral que tomou conta daquele país" (pág. 24).

Esta é a história de mais de uma geração da época moderna, que parte dos obstáculos à persistência física e espiritual para a procura de novos ambientes, que correspondiam aos horizontes americanos do norte e do sul. Esta é uma parte da história de Manasche Krzepicki, uma fatia correspondente à infraestrutura: a busca do sobreviver – esta parece ser a fórmula mais apropriada para expressar, grosso modo, uma necessidade de tudo abandonar e de constituir uma nova base de existência. Em cada alma que abandonava o velho continente europeu, uma história, dramas, esperanças... em cada uma, a demanda do êxodo por razões vitais, carregando latente e eternamente as marcas do abandono, do exílio, da sina do desenraizamento, da perda da identidade como trágico denominador comum daqueles que procuravam preencher o vazio de tudo.

O que faz a história que Falbel nos conta digna de ser lida e valorizada, é o fato de que o imigrante, que teve êxito na reconstrução de sua vida, parece ter sido tocado por uma missão, um chamamento, Beruf, como chamou Max Weber – um dos pilares da sociologia moderna -, em sua A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. O pronto atendimento de Manasche ao chamado denotava a identificação do indivíduo com a luta de seu povo, marcada pela finalidade de estabelecer o seu lar nacional: o Estado de Israel. A mobilização deu-se em função de uma campanha sigilosa e da mais alta importância: a compra de armas para a defesa de um Estado ameaçado de sucumbir ante a ameaça de destruição por parte de seus vizinhos. Tratava-se de uma operação complexa, tecida numa rede de enorme amplitude, que incluía a compra, o transporte, a provisão de fundos, e todo o demais concernente à missão denominada Rechesch – "Rede que se formou para a aquisição de armas para a Haganá, que antecedeu o futuro exército de Israel (...) que enfrentaria, após a partilha da Palestina, em 29 de novembro de 1947, e a promulgação do Estado de Israel em 14 de maio de 1948, a invasão dos exércitos dos países árabes ao seu redor" (p. 12, n. 3). O clamor, o apelo que pedia ajuda para alicerçar uma das bases do futuro estado, a sua infraestrutura econômica e sua capacidade de defesa, era claro e singelo. Porém, quantos o ouviram e dedicaram suas vidas a esta missão capital? Por gênero próximo, Manasche é um dos milhares de imigrantes em busca de preservar a vida no Novo Mundo; por diferença específica, fez de sua vida, em tempos conturbados, um atendimento ao chamado: tomou consciência dele, racionalizou seus pressupostos e efetivou sua realização como uma meta de vida; e mais: elevou-o à categoria de ideal, que ouvido naqueles tempos, classificar-se-ia como utopia de uma epopéia. Esta é a narrativa que Falbel expõe ao público leitor: a do resgate, dos subterrâneos de uma cautela sigilosa, da história de uma vida dedicada a fazer parte daqueles que foram tocados, e assim o sentiram, por uma missão pioneira, em tempos difíceis e indecisos, com a visão profética de que o momento havia chegado: o de ter um Estado.

A escrita do autor não se pauta por afirmações carentes do suporte de uma documentação. Há, antes, um modo de narrativa histórica rico e interessante: Falbel usa de uma erudição deveras profunda para proceder a densas análises a respeito do contexto da época; em seguida, apresenta a seqüência de acontecimentos, que vêm a completar aquilo que o discurso analítico estabelecera, apresentando-se assim um quadro interpretativo dentro dos limites permissíveis pelos fatos: um autêntico diálogo entre concepções intelectuais e dados de realidade. Impressiona, à guisa de exemplo deste estilo metodológico, as páginas que prefaciam o último capítulo, "Após a Tormenta" (págs. 131-136, especialmente).

Falbel faz este resgate numa hermenêutica fascinante: os fatos centrais corroboram uma exegese legítima, não procurando a História "wie es eigentlich gewesen ist", como aspirava o ideal iluminista do historiador tedesco Leopold von Ranke, dentro da tradição da Aufklärung do séc. XIX; em nossos tempos, céticos e relativistas – classificados como "pósmodernos", epíteto que antes indetermina que define – negar-se-ia até mesmo a própria existência de uma História – o que existem são historiadores. E Nachman Falbel expõe uma narrativa que traz reflexões e faz perguntas, instigando o leitor a desejar saber mais. Um intelectual deste calibre pode-nos proporcionar uma leitura repleta de reflexões enriquecedoras para o nosso conhecimento.

Na "Introdução", Falbel faz menção à "(...) importância do movimento juvenil na formação dos filhos dos imigrantes que chegaram ao Brasil (...)", mas adverte que esta "ainda está por ser avaliada" (p.11). Deveríamos supor que esta é uma referência a possíveis – ou prováveis – pesquisas futuras? Aqueles que participaram desta experiência de vida apreciarão a perspectiva da época exposta na obra de Falbel, uma vez que carregam até hoje as marcas do movimento juvenil. As gerações mais jovens encontrarão um passado muito mais rico, que poderá provocar uma perplexidade positiva mesclada a uma ponta de admiração patriótica.

Em suma, o relato une perspectivas, funde horizontes, enfeixando um ideal vivido e em parte realizado num arco-íris de tipos-ideais pendulantes, desde aqueles que interpretam os caminhos da História como conseqüências de seus personagens que a fazem marchar para uma direção pré-designada, até aqueles que, no outro extremo do movimento do pêndulo, valorizam a circunstância do surto de uma vontade decisiva, munida de dotes talhados para " realizar missões que exigissem entrega e dedicação pessoal, além de uma alta dose de fidelidade e apego a um objetivo, ao mesmo tempo em que (é o caso de Manasche Krzepicki) possuía uma capacidade de liderança pouco comum entre os componentes da comunidade judaica no Brasil". (p.13). E talvez também haverá aqueles que pensarão como Nicolau Maquiavel (em Historie fiorentine) que, ao narrar as vicissitudes lógicas da vida pública dos florentinos, arquiteta a idéia da existência de dois horizontes no firmamento daquela vida: a Virtu, como conjunto dos ideais, concepções, ideologias, a supra-estrutura – o primeiro; a Fortuna, representada pelas condições materiais, sociais e políticas, a infra-estrutura – o segundo. Somente um encontro, uma fusão destes horizontes, explica uma entrada na História. Falbel ilumina – Manasche: Virtu Fortunaque... Seja qual for a concepção de história que cada um professe, a obra é apaixonante, não só pela bagagem concernente ao puro relato dos fatos, como também em função do peso de sua erudição.

Revista de História - USP

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