sábado, 22 de maio de 2010

Os Sentidos do Tempo em Aristóteles


João Quartim de Moraes
UNICAMP

Fernando Rey Puente. Os Sentidos do Tempo em Aristóteles.
Loyola/Fapesp, São Paulo 2001, 381 páginas

I- Tendo conhecido “in fieri” a tese de doutorado que deu origem a Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, apenas retomo, no presente comentário, algumas das animadas discussões que ela suscitou. Antes, porém, cabe o liminar reconhecimento da solidez, originalidade e densidade do estudo que Fernando Puente nos oferece. Apoiado na análise rigorosa dos textos e na absorção crítica da vasta literatura que o tema tem suscitado desde os Antigos, o autor ultrapassa largamente o khrónos enquanto tema da física, para considerá-lo “da maneira a mais universal possível”, em “todos os textos [...] do Corpus aristotelicum que (a ele) se referissem de algum modo” (p. 16). Com efeito, a temporalidade é tematizada por Aristóteles em outras dimensões: o “quando” categorial (poté), a duração psíquica, o tempo da ação, o da produção etc.

A amplitude da bibliografia corresponde a esta ampliação da perspectiva analítica. Ela ocupa vinte e oito páginas e se subdivide em quatorze tópicos, não perdendo em compreensão o que ganha em extensão. Nada a ver com aqueles extensos catálogos em que as referências se justapõem sem nexo aparente entre si e com a obra que pretensamente as teria levado em conta. O leitor lá encontrará uma informação atualizada e abrangente, que inclui os comentadores italianos e alemães, freqüentemente obnubilados entre nós pelo predomínio dos ingleses e franceses.

Como explica no Prefácio, foi sob a influência da filosofia alemã, nomeadamente de Schelling, ao qual consagrara sua tese de mestrado1 , que Fernando Puente se aproximou de Aristóteles. Ao influxo da notável “efervescência cultural em torno à reabilitação histórico-filológica do pensamento grego”, Schelling, que estava “buscando [...] particularmente nos conceitos modais do mestre de Estagira, um modo de se opor ao pensamento de Hegel”2 , manteve contato, desde 1842, com os mais eminentes estudiosos alemães de Aristóteles de então : Trendelenburg, Bekker, Bonitz, Schwegler e Zeller.

II- Que tempo se diga em múltiplos sentidos pode ser uma hipótese fecunda. Mas, à primeira vista, a ressonância aristotélica do “pollakhôs légetai” deixa na sombra o insólito do título Os Sentidos do Tempo em Aristóteles. O próprio autor, porém chama a atenção para sua “ambigüidade”, remetendo-a à polissemia do termo sentido no idioma português3 . Deixando de lado o risco de derrapagem lógica (sentido pode ser polissêmico, mas polissemia tem um sentido só e é dele que se trata aqui), importa saber se tempo é um termo homônimo (uma homonímia pròs hén, sem dúvida, já que, evidentemente, a relação entre seus hipoteticamente múltiplos significados não é a mesma que entre os do significante “manga” em nosso idioma) e, no que concerne à relação entre poté e khrónos, se seriam sinônimos (isto é, dois nomes para a mesma “coisa”), análogos ou parônimos. (Lembremo-nos de que é poté que Aristóteles apresenta nas Categorias como um dos sentidos originários do ser).

Este complexo de questões é anunciado já no primeiro capítulo:

“[...] a diversidade dos termos que exprimem o fenômeno temporal em Aristóteles (poté, khrónos, kairós, nûn etc.), bem como sua evidente correlação [...] impedem-nos pensá-los segundo uma simples relação de sinonímia ou de homonímia meramente casual. Constataremos [...] que há uma multiplicidade de termos designando diferentes aspectos do tempo [...]. Relacionar-se-ia, então, esse emaranhado terminológico consoante a relação pròs hén ou a analogia? Ou haveria, além destes, outro tipo de articulação entre esses conceitos?”4

O livro todo se ocupará destas perguntas, mas é sobretudo na primeira parte, “Os sentidos do ente e do tempo”, composta de quatro capítulos (consagrados respectivamente aos sentidos categorial, acidental, veritativo e modal do tempo), que intervém o esforço analítico para elucidá-las radicalmente. A segunda parte, “Os tipos de substância e o tempo”, retoma a senda percorrida desde a Antigüidade pelos comentadores do tema tal qual vem exposto na Física, distinguindo o físico, o cosmológico, o metafísico. Esta distinção nos parece, sem prejuízo da densidade e rigor analíticos, um tanto artificial, já que o sentido cosmológico se inscreve no físico e, por sentido metafísico, o autor entende a discussão do infinito e do eterno.

A terceira parte, enfim, estuda “o âmbito humano e o tempo”, em dois capítulos, que consideram o tempo, respectivamente, nas dimensões “psicofisiológica” e “prática” do homem.

III- No breve espaço da presente resenha, prosseguindo uma discussão iniciada na década passada, evocaremos tão somente algumas discrepâncias a respeito de questões decisivas da interpretação do estatuto ontológico do tempo.

(a)- No capítulo em que examina a definição do sentido físico do tempo, Fernando Puente erige-o em “expressão conceitual de uma condição epistemológica necessária e universal para que o próprio devir se torne compreensível para nós”5 . Não conseguimos acompanhá-lo. Devir, nesta frase, é sinônimo de movimento? Se o tempo torna o devir compreensível, o que torna o tempo compreensível? O que seria a expressão não conceitual de uma “condição epistemológica”? Uma intuição “a priori”? Se é quando percebemos o movimento que nos damos conta de que o tempo passou, porque quando não o percebemos, não nos parece que o tempo tenha passado, como erigir o tempo em condição epistemológica do movimento? Como conceber numa filosofia que seguramente não é idealista, condições epistemológicas divorciadas das condições da percepção?

Ross sustenta a tese oposta, argumentando que, em fórmulas como “o tempo é aquilo que é contado no movimento”, o termo “aquilo” (ti) não deve ser entendido como significando que é pelo reconhecimento dos diferentes instantes presentes (= “agoras”) como diferentes que a existência do movimento é reconhecida”. O presente ou, como ele escreve, a “presentidade” (“nowness”), abstraída do movimento, mais exatamente, da presença do móvel, é “exatamente igual” a qualquer outra6 ; é percebendo que o corpo que estava em “a” está agora em “b” ou que aquilo que era branco é agora negro, que detectamos a pluralidade dos “agora” e conseqüentemente o decorrer do tempo. Tal é, conclui, “o claro ensinamento do início do ch.11 (do livro IV da Física). O tempo não é a ratio cognoscendi da mudança (change). É antes (rather) sua ratio essendi”7 .

O argumento do ilustre erudito britânico parece-nos plenamente convincente quando nega que o tempo seja a ratio cognoscendi do movimento. Mas, embora atenuada por um rather, a conclusão positiva, de que o tempo condiciona ontologicamente o movimento, faria de Aristóteles um partidário, “avant la lettre”, de uma concepção newtoniana do tempo absoluto. Podemos predicar de uma estofa, sem contradição, branco e negro. Não é o tempo que torna possível que a estofa, antes branca, seja tingida de negro. O fato radical é a mudança, da qual o tempo é apenas uma afecção, um atributo do movimento e este está sempre no sujeito singular, nas substâncias móveis. O tempo não é, pois nem ratio cognoscendi nem ratio essendi do movimento. Não o condiciona nem epistemologicamente nem ontologicamente.

(b)- Alertando que “não devemos transpor anacronicamente a dicotomia criada na modernidade entre sujeito e objeto”, Fernando Puente declara que

“a psique e o mundo físico são (na visão de Aristóteles) intimamente conectados. Este entrelaçamento constitutivo entre a alma e as categorias fundamentais do mundo natural é exemplarmente ilustrado na magistral análise sobre o tempo [...], pois o tempo só pode ser pensado na conjunção constitutiva entre a alma e o mundo físico e jamais como um produto de apenas um dos pólos deste binômio”8

Conexão íntima, entrelaçamento ou conjunção constitutiva podem significar muitas coisas, mas não particularmente a relação complementar da psique com a phúsis. A alma, pelo menos a perceptiva, faz partedesta. Para Aristóteles, com efeito, sendo forma e princípio de movimento do corpo, a alma perceptiva/desiderativa não se contrapõe ao “mundo físico”, mas nele se inscreve. Constatamos assim que a dicotomia moderna entre sujeito e objeto é mais tenaz ainda do que adverte nosso autor. Tanto mais que, em apoio de sua tese, refere notadamente uma frase de Heidegger, segundo o qual “o fenômeno do tempo, considerado em um sentido primacial, está relacionado com o conceito de mundo e, com isso, com a própria estrutura do estar-aí”9 . Afinal, o que, no conhecimento, a começar da linguagem, não está relacionado com a própria estrutura do estar-aí? O tempo, para Aristóteles, não está diretamente relacionado com o conceito de mundo, mas tão somente com os de movimento e de número.

1 Publicada sob o título As concepções antropológicas de Schelling, Ed. Loyola, São Paulo, 1997.
2 Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 11.
3 Ib., p.15.
4 Ib., pp. 44-45.
5 Ib., p. 130.
6 Ross, Aristotle’s Physics, Introdução, p.65: “The nowness, the felt presentness, of each sucessive experience is exactly like the nowness of any other. It is rather by the noticing of change, by seeing that a body which was at A is at B, or that a body which was white is black, that we detect the existence of different nows and of a lapse of time between them”. Hegel, antes de Ross, e evidentemente numa perspectiva totalmente distinta, mostrou que contrariamente à convicção espontânea da consciência sensível, o “aqui” e o “agora” não são o que há de mais concreto, e sim, ao contrário, o que há de mais vazio e abstrato. Digo “isso é uma árvore”. Olho para outro lado e digo “isso é uma casa”. Digo “agora é noite”. Na manhã seguinte, direi “agora é dia”. O “agora” se conservou, mas como um “agora” que não mais é noite. No léxico (e no pensamento) hegeliano, ele é “um negativo em geral”.
7 Ross, ib., p. 65.
8 Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, pp. 136-137.
9 Ib., p. 137, nota 24. A ênfase em itálico está no original.

Kriterion: Revista de Filosofia

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