sexta-feira, 28 de maio de 2010

Alexis de Tocqueville: A historiografia como ciência da política


Modesto Florenzano
Depto. de História-FFLCH/USP


JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro, Access editora, 1997, 341 pp.

Não são raros os pensadores que nos advertem que "é mais difícil formular um problema do que resolvêlo", como é o caso, para dar um exemplo, do reacionário Joseph de Maistre em suas Considérations sur la France (1796). Pois bem, a primeira coisa que cabe dizer do livro de Marcelo Jasmin é que ele soube formular, inteligentemente, e resolver, com êxito, um problema sobre Tocqueville ainda não explorado a fundo pelos seus numerosos e qualificados estudiosos: qual a concepção de História que o pensador francês fabricou em suas obras (assim mesmo, "fabricou", pois, como lembrou alguém, os clássicos, e só os clássicos, são fabricadores de idéias) e como ela se articula e enforma sua teoria da política?

A hipótese básica, afirma Marcelo Jasmin, na apresentação, "supõe que a história constitui um dos centros sensíveis da reflexão política de Tocqueville e que as dimensões éticas e epistemológicas do problema historiográfico tal como elaborado pelo autor são solidárias à sua reflexão sobre o futuro da democracia". O belo livro de Marcelo Jasmin nos demonstra que o sentido da obra tocquevilleana repousa na identidade entre história e política, e depois de sua leitura, somos levados a nos perguntar porque este aspecto importante e crucial da obra de Tocqueville permaneceu até agora sem ser explorado. A única resposta que nos ocorre é que esta identidade, embora percebida e mencionada por todos, talvez por ser muito evidente, ou óbvia demais, foi considerada como auto-explicativa. Permaneceu, assim, como o ovo de Colombo, a espera de alguém que soubesse colocá-la de pé e demonstrasse, como fez Jasmin, que, explorando-a, um outro território ainda pouco conhecido do continente Tocqueville poderia ser descoberto.

Para construir o que chama de "percurso interno do problema da história na obra tocquevilleana" (percurso trabalhoso – registre-se en passant – pois Tocqueville foi um grande escritor, seja pela qualidade, seja pela quantidade de seus textos: suas Oeuvres Complètes, organizadas em mais de 15 tomos, atingem três dezenas de volumes), Jasmin parte de duas frases, bastante conhecidas, de A Democracia na América: "Como o passado não esclarece o futuro, o espírito marcha nas trevas" e "Precisamos de uma nova ciência política para um mundo inteiramente novo". Colocadas assim, isto é, em uma seqüência inversa à apresentada por Tocqueville (em A Democracia na América a primeira se encontra na Conclusão e a segunda na Introdução), a relação entre as duas frases torna-se mais evidente uma vez que mesmo uma leitura atenta do livro não nos revela por si só os pressupostos e a articulação que existe entre ambas. Elas exigem uma hipótese prévia, uma chave interpretativa, como demonstra o livro de Jasmin, cuja economia pode ser resumida como segue.

Os dois primeiros capítulos, de caráter introdutório e sintético, oferecem uma interpretação das "formas da História" dominantes no Ocidente e um esboço biográfico de Tocqueville. Os oito restantes, todos de caráter analítico, apresentam: um tratamento minucioso e sistemático, do "sistema conceitual de Tocqueville" e do problema do despotismo e da história tal como se encontram em A Democracia na América (capítulos 3 a 5); uma demonstração, inédita na literatura sobre Tocqueville, de que em duas obras menores deste, não publicadas em forma de livro ("As Reflexões Sobre a História da Inglaterra", de 1828 e "Memorial sobre o Pauperismo", de 1835) encontram-se os exercícios preparatórios, as antecipações de A Democracia na América que é de 18351840 (capítulos 6 e 7); uma interpretação sobre a maneira como Tocqueville usa a idéia de Providência e opera com a história e a política também nas suas duas outras obras-primas, escritas na década de 1850, As Lembranças de 1848 e O Antigo Regime e a Revolução (capítulos 8 a 10).

Em sua viagem à América do Norte, em 1830, Tocqueville viu plenamente confirmado aquilo que ele e alguns outros antes dele e junto com ele (como Chateaubriand e Guizot, para nos limitar à França, e a dois nomes que muito influenciaram o pensamento de Tocqueville), se já não sabiam, suspeitavam: que o mundo ocidental caminhava em marcha acelerada e irresistível para a democracia, isto é, para um estado social, de igualdade de condições jurídico-políticas. Esse estado social democrático ou igualitário era o oposto do estado social aristocrático do qual se originava (à exceção dos Estados Unidos que já nasceram democráticos) e, como tal, inédito, sem precedentes na história, pelo menos na do Ocidente onde as sociedades sempre haviam sido hierárquicas e aristocráticas. Em suas viagens aos Estados Unidos e à Inglaterra, Tocqueville constatara, aterrorizado, o aparecimento desses novos e inéditos fenômenos, por exemplo, no plano econômico, o novo pauperismo industrial; no plano político, o despotismo, seja o despotismo da maioria (como nos Estados Unidos, onde coexiste com a liberdade política e só não a anula porque aí é contrabalançado pela religião, pelo judiciário e sobretudo pelo espírito e pelas práticas associativas de auto-governo), seja o despotismo de um novo tipo de poder e de agente (como na França, onde a Revolução de 1789 deu origem não só a um novo tipo de Estado, muito mais poderoso e centralizado, como a um novo tipo social, o revolucionário); e, no plano social, o individualismo e o conformismo.

Em suma, Tocqueville descobre que o estado social democrático apresenta, entre outras características intrínsecas, um dilema e um paradoxo, e, tanto um quanto o outro são brilhantemente captados e analisados por Jasmin. O dilema é assim formulado: "a liberdade política na sociedade igualitária e de massas parece-lhe (a Tocqueville) depender de uma práxis e de um conjunto de valores cujos pressupostos tendem a ser destruídos pelo desenvolvimento continuado das disposições internas à própria democracia. O diagnóstico tocquevilleano a respeito das sociedades modernas afirma que o individualismo inerente ao estado social democrático e o conseqüente confinamento dos homens nas esferas da privacidade são produtores de uma crescente indiferença cívica que constitui o caldo de cultura da emergência de um novo tipo de despotismo"(p.31-32).

O paradoxo, tomo a liberdade de assim definir: o estado social democrático, inédito e "inteiramente novo", é criado pelo passado (pela história como processo real, como res gestae), mas esse mesmo passado (só que agora enquanto História, enquanto representação do real, como rerum gestarum), não pode mais, como fizera anteriormente, iluminar o futuro. Daí a necessidade, para o espírito não marchar nas trevas, de uma nova ciência política. Para melhor expor e situar a proposta tocquevilleana de uma nova ciência política, Jasmin, elabora uma síntese sobre as concepções de História dominantes no Ocidente, da Antigüidade grega clássica ao Iluminismo e à época de Tocqueville. Utilizando-se da mais rica e atualizada literatura sobre a historiografia Antiga e Moderna (onde se destacam historiadores como Arnaldo Momigliano, Reinhart Koselleck, José Antônio Maravall e J.G.A. Pocock, para citar nomes importantes mas ainda, infelizmente, quase desconhecidos entre nós), Jasmin oferece-nos um pequeno tratado, invejável pelo rigor, concisão e profundidade, sobre a concepção de História que predominou no Ocidente, qual seja, a Historia Magistra Vitae, segundo a célebre formulação ciceroniana. Nesta concepção, o passado é visto essencialmente como uma pedagogia, como uma instância moral, um repositório inesgotável de exemplos, a serem seguidos e/ou evitados, portanto, um norte para o futuro e um guia para a ação no presente.

Mas, e sempre de acordo com Jasmin, no século XVIII, a consciência histórica européia passa por transformações internas que levam à "descoberta da unidade dos processos históricos subjacente à noção iluminista do progresso" e põem em cheque o estatuto da História Mestra da Vida com sua crença na natureza exemplar dos eventos. "Reagindo à concepção setecentista do caos ontológico da história, a filosofia das Luzes destituiu os eventos de sua dignidade própria e exigiu sua inserção num contexto temporal mais amplo que os tornava inteligíveis enquanto elos de uma cadeia diacrônica abrangente portadora de direção e de significado. As diversas histórias até então reunidas pelo orador tradicional em função de sua exemplaridade cederam seu lugar ao discurso historiográfico sobre uma unidade ontológica que articulava o conjunto dos fatos da aventura humana no tempo". E Jasmin conclui citando uma formulação do historiador Droysen: "para além das histórias, existe a História"(p.9). Mas, se o Iluminismo, abre a possibilidade para a "vontade esclarecida da razão" mudar o presente, romper com o passado e construir um futuro inédito, a Revolução Francesa, por sua vez, ao mesmo tempo que leva às últimas conseqüências o voluntarismo, a vontade de dirigir e acelerar a história, leva, paradoxalmente, à impotência e ao determinismo. Afirma Jasmin: "De construtores da história, os revolucionários pareciam agora impulsionados por sua irresistibilidade, inaugurando-se o que Hannah Arendt denominou 'o espetáculo da impotência do homem a respeito de sua própria ação'. Termos como 'torrente', 'marcha', 'corrente' e 'fluxo', antes utilizados na referência à natureza, foram incorporados ao vocabulário político, de onde migraram para o conhecimento historiográfico em geral. O processo histórico parecia descolado dos seus atores. As filosofias da história do século XIX consolidaram a inversão do voluntarismo iluminista: a história deixava de ser vista como o resultado da vontade e da ação humanas para ser representada enquanto processo autônomo, independente dos homens e cuja força não se podia contrariar"(p.11).

A ciência política de Tocqueville, que se revela na sua filosofia da história (bem como a de Marx e de Comte, para citar os dois outros grandes teóricos sociais, contemporâneos do primeiro e mencionados por Jasmin), tem como ambição encontrar uma resposta, uma solução, teórica e prática para a "perda da conexão entre espaço de experiências e horizonte de expectativas", para o descolamento que se estabelece na consciência ocidental moderna (pós-Revolução Francesa e Revolução Industrial) entre processo e atores. Ou ainda, para usar as outras formulações de Jasmin, "para resolver a tensão entre determinação e vontade", "entre processo e ator". Assim, também as formas modernas de História utilizam-se do passado para "encontrar algum grau de controle sobre as conseqüências possíveis ou prováveis das ações políticas".

Como disse, de maneira lapidar, Joseph de Maistre (de quem Tocqueville foi leitor atento e cuja filosofia da história apesar de teocrática e reacionária é moderna), no mesmo livro citado no início desta resenha: "... e se o raciocínio penetra em nossos espíritos, acreditemos pelo menos na história, que é a política experimental". Em suma, também Tocqueville nunca deixará de ver a história como política experimental e de lhe atribuir uma "função ético-política". Função "ético-política", e não função "cientifica", da história, pois, como muito bem nota Jasmin, Tocqueville recusa e combate as filosofias da história da sua época que se pretendem científicas (ou teocráticas, como a de de Maistre), pois todas elas com seu caráter determinista, fatalista ou providencialista, anulam o espaço da liberdade humana e levam os indivíduos (e a ação individual) à impotência e/ou à irresponsabilidade.

"Operando simultaneamente como 'ciência' e como 'política', afirma Jasmin, o novo saber de Tocqueville quer não apenas determinar o quadro no qual se encontram inexoravelmente os homens no mundo moderno como também convênce-los da necessidade, e da possibilidade, de reagir a ele"(p.86). Dir-se-ia que Tocqueville, ao não renunciar à "pretensão da empresa ciceroniana (que) era fundamentalmente ética" e ao combater a "pretensão das filosofias modernas (que) é fundamentalmente científica", combinou estranha e excepcionalmente, dois modelos ou formas de História. Mas, como se depreende da própria leitura do livro de Jasmin, se Tocqueville foi muito bem sucedido na tarefa de "determinar o quadro no qual se encontram inexoravelmente os homens no mundo moderno", fracassou completamente na tarefa de "convencê-los da necessidade, e da possibilidade, de reagir a ele".

Em outras palavras (e avançando um pouco mais nessas reflexões que nos foram suscitadas pela leitura do livro de Jasmin), se Tocqueville soube criar, como poucos – e sem abandonar a antiga concepção de História como Mestra da Vida – uma nova História que continua a nos espantar pela sua originalidade, profundidade e atualidade, não soube, criar uma nova ciência da política. Dir-se-ia que a razão do que é ao mesmo tempo o seu sucesso e o seu fracasso, está no fato de que o aristocrata Tocqueville, soube e pôde, como historiador, se abrir para a democracia, isto é, combinou e potencializou o que a historiografia aristocrática e democrática tinham de melhor; mas como cientista político, seu aristocratismo (também conservador além de liberal) não lhe permitiu essa abertura e uma ciência da política sem espírito democrático não poderia funcionar num mundo democrático. Pois, não se deve esquecer, o liberalismo tocquevilleano nunca foi nem burguês, como o de Constant ou Guizot, nem radical ou progressivo, como o de seu admirador e correspondente John Stuart Mill.

Assim, se a recusa de Tocqueville em abandonar a concepção tradicional de História não o impediu, mas, ao contrário e paradoxalmente, o ajudou a fazer uma nova História, sua recusa em abraçar um dos novos sistemas filosóficos em circulação, únicos adequados para operar em um mundo totalmente novo, fez com que sua "nova ciência política", não passasse, em termos práticos, de um whishful thinking. Não por outra razão, Tocqueville, ao contrário de Comte e Marx, por exemplo, que também pretenderam criar uma nova ciência baseada na história, não formou discípulos, não deixou seguidores, partidários ou adeptos. Como poderia, Tocqueville, pretender interferir em comportamentos individuais e coletivos e, eventualmente dirigi-los, se só tinha a oferecer dúvidas, dilemas, ao invés de certezas e convicções. Nesse sentido, ele nos faz lembrar Erasmo diante da Reforma. Erasmo, diferentemente de Lutero, nada tinha para oferecer às massas, pois o seu (de Erasmo) era um cristianismo muito elevado e espiritual, um cristianismo somente ao alcance de uns poucos e nobres espíritos.

Na mesma época em que Tocqueville está propondo "uma nova ciência da política", também Comte e Marx, estão elaborando suas grandes teorias sociais: o primeiro, uma ciência da sociedade (a física social ou sociologia, como a chamou) e o segundo, uma ciência da história (o materialismo histórico); ora, assim como o materialismo histórico é, ao mesmo tempo, uma ciência da sociedade, o positivismo comteano é uma ciência da história (pois, nas palavras do próprio Comte, "o verdadeiro espírito geral da sociologia dinâmica consiste em conceber cada um destes estados sociais consecutivos como o resultado necessário do precedente e o motor indispensável do seguinte, segundo o luminoso axioma do grande Leibniz: o presente está grávido de futuro.").

Como se vê, Comte e Marx, ao contrário de Tocqueville, estavam convencidos de que, com seus sistemas, tinham encontrado a chave para iluminar o presente e esclarecer o futuro. E mais, enquanto os dois primeiros rompem com a tradição que vem desde os gregos, ao subsumir e subordinar a esfera do político à esfera do social (invertendo assim a concepção clássica que dava primazia à política e a esta subordinava todas as demais esferas da vida), o terceiro, mantém-se fiel à tradição, isto é, continua a ver e a dar à esfera da política a autonomia e a primazia de sempre. Daí decorre que a concepção de Tocqueville da história e da política (ou seja, da liberdade, da ação livre do homem na história), não é, ao contrário da de Comte e Marx, nem determinista, nem teleológica, ela não se resolve e dissolve em um futuro previsivelmente positivo e comunista; e embora a sua fosse uma perspectiva e uma posição aristocrática, portanto de retaguarda, por ser indeterminada e aberta, parece, nos dias de hoje, mais atual que as outras duas.

Duas passagens de Tocqueville, citadas por Jasmin e que não foram publicadas em vida do autor (pois, a primeira faz parte das notas de A Democracia na América e a segunda das Lembranças de 1848, estas últimas só publicadas em 1893), não poderiam ser mais eloqüentes para mostrar a visão cética e crítica do pensador francês quanto às possibilidades de se encontrar a ciência, a verdade, da política e da sociedade, ou seja, da história: "Não há homem no mundo que tenha encontrado, e é praticamente certo que jamais veremos algum que venha encontrar, o ponto central para onde convergem, eu nem digo todos os raios da vontade geral que só se reúnem em Deus, mas nem mesmo todos os raios de uma vontade particular. Os homens apreendem fragmentos da verdade, mas jamais a verdade em si. Sendo isto admitido, resultaria que todo homem que apresenta um sistema completo e absoluto, pelo simples fato de seu sistema ser completo e absoluto, está num estado quase certo de erro ou mentira, e todo homem que queira impor à força um tal sistema a seus semelhantes, deve ser considerado, ipso facto e sem exame prévio de suas idéias, como um tirano e um inimigo do gênero humano". E "Odeio, de minha parte, estes sistemas absolutos, que fazem depender todos os acontecimentos da história de grandes causas primeiras, ligandoas umas às outras por uma cadeia fatal, e que suprimem, por assim dizer, os homens da história do gênero humano. Eu os acho limitados em sua pretensa grandeza, e falsos sob seu ar de verdade matemática..."(pp.214 e 234).

Em outras palavras, se, por um lado, Tocqueville, rende-se à inevitabilidade da marcha da história (ao mesmo tempo que elabora uma engenhosa construção intelectual, uma "arquitetura das temporalidades", como a chama Jasmin, para apreendê-la e explicá-la), por outro, recusa-se a acreditar que seja possível a algum mortal extrair da história o segredo capaz de dar à humanidade a ciência, e a solução, do seu futuro. Não é por outra razão que Tocqueville foi buscar, não na filosofia do seu tempo, nem na filosofia do Iluminismo, mas na do Renascimento (e, portanto, também na da Antigüidade Clássica) inspiração para a imagem sobre a condição e o destino dos indivíduos com a qual finaliza sua A Democracia na América: "... a Providência não Criou o gênero humano nem inteiramente independente, nem completamente escravo. É verdade que traça, ao redor de cada homem, um círculo fatal do qual ele não pode sair; mas dentro dos seus vastos limites, o homem é poderoso e livre; assim também os povos. As nações de hoje em dia não poderiam impedir que em seu seio as condições fossem iguais; mas depende delas que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às luzes ou à barbárie, à prosperidade ou às misérias".

Essa formulação tocquevilleana nos faz lembrar, irresistivelmente, duas outras imagens, muito semelhantes. A de de Maistre, na abertura das Considérations, "O que há de mais admirável na ordem universal das coisas, é a ação dos seres livres sob a mão divina. Livremente escravos, operam todos ao mesmo tempo voluntariamente e necessariamente: fazem realmente o que querem, mas sem poder contrariar os planos gerais. Cada um desses seres ocupa o centro de uma esfera de atividade cujo diâmetro varia ao sabor do eterno geômetra, que sabe estender, restringir, deter ou dirigir a vontade, sem alterar sua natureza". E a de Pico della Mirandola, no Discurso sobre a dignidade do homem, "Diz o Criador a Adão: Coloquei-te no meio do mundo, para que mais facilmente possas olhar a tua volta e ver tudo o que te cerca. Criei-te como um ser nem celestial nem terreno, nem mortal nem imortal apenas, para que sejas tu a moldar e superar livremente a ti próprio. Podes degenerar-te em animal ou recriar-te à semelhança divina...". A semelhança da metáfora de Tocqueville com a de de Maistre está apenas na letra, ao passo que com a de Pico della Mirandola está tanto na letra quanto no espírito. Tocqueville, como Pico della Mirandola, acredita que Deus dotou o homem de livre-arbítrio, do poder de escolher entre ser livre e ser escravo, de Maistre acredita no contrário, isto é, que Deus ao fazer dos indivíduos seres "livremente escravos" não deu a estes alternativa ou poder de escolha quanto à sua condição e destino.

Que nos seja permitido, para terminar nossa apreciação do livro de Jasmin, citar mais duas pequenas passagens, uma dele próprio, para mostrar o espírito, a justa ambição, que animou o seu trabalho: "O pensamento de Tocqueville interessa aqui na medida em que a abordagem do olhar contemporâneo possa ser útil ao seu esclarecimento e que sua problematização teórica das relações entre historiografia e conhecimento político nos sirvam como exercício para o autoconhecimento de nossa própria historicidade"(p.24). A outra, do prefácio de Luiz WerneckVianna, que assinala, com justiça, que o trabalho de Jasmin sobre Tocqueville "nada fica a dever ao que se produz na literatura internacional sobre este autor clássico, quer pela originalidade do seu argumento, ao demonstrar o papel da História na ação política que se orienta em favor da democracia de homens livres, quer pela riqueza de suas fontes e elegante clareza na exposição".

E lembrar, por último, que quando se afirma que os clássicos nunca morrem isto implica não só fazer o elogio dos clássicos mas também dos comentadores que lendo-os e relendo-os, sucessivamente no tempo, são capazes de reinterpretá-los e reatualizá-los. Em outras palavras, que, se é preciso saber interpretar os clássicos, a arte de fazê-lo não é nada fácil, porque, sobre eles, tudo parece já ter sido dito e perguntado. Pois bem, Marcelo Jasmin, soube, com muito brilho, oferecer uma importante e original reinterpretação e reatualização deste grande clássico que é Tocqueville.

Revista de História - USP

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