segunda-feira, 17 de maio de 2010

Le principe de la chimère: une anthropologie de la mémoire

André Demarchi
Doutorando em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ

SEVERI, Carlo. 2006. Le principe de la chimère: une anthropologie de la mémoire. Paris: Editions Rue D'Ulm; Musée du Quai Branly. 370 pp.

O que aconteceria se a usual diferenciação entre tradições orais e escritas, tão requisitada pela antropologia, pela história e pela linguística para determinar as singularidades entre as culturas, fosse considerada "falaciosa"? O que se passaria se por trás da oposição entre o oral e o escrito se escondesse uma dimensão imagética, tão poucas vezes tematizada por essas disciplinas quando se trata de pensar sobre memória social, mas que desempenha um papel central nas tradições ditas orais? O que ocorreria se essa dimensão imagética fosse definida por um princípio quimérico que articulasse o visível e o invisível por meio de um mecanismo de projeção mental, garantindo eficácia mnemônica às imagens quando inseridas em contextos de comunicação ritual? Se tudo isso acontecesse seria possível traçar o perfil de um novo conceito – o de tradição iconográfica – e o programa de uma nova disciplina: a antropologia da memória.

É precisamente essa a ambição que faz do livro de Carlo Severi Le principe de la chimère: anthropologie de la memóire – publicado em 2006 pela coleção Anthropologie do Musée du Quai Branly – referência central para os pesquisadores das disciplinas que se preocupam com a memória social, a imagem e o ritual. Em busca dessa nova antropologia da memória, relacionando imagem e palavra em diferentes contextos rituais, Severi apresenta em quatro capítulos seu programa de uma antropologia comparativa do que denomina artes da memória.

Inspirado em algumas idéias centrais, mas pouco lembradas, do historiador da arte Aby Warburg (1866 – 1929), no primeiro capítulo Severi formula o conceito que permeará as análises subsequentes: a quimera. Seguindo por um lado menos conhecido da obra de Warburg, cuja ambição era definir "uma psicologia geral da expressão humana", segundo os preceitos de uma "biologia das imagens", ciência menor (no sentido deleuziano do termo) surgida no fim do século XIX, Severi concebe a quimera como uma imagem composta de traços heterogêneos, contraditórios, provenientes de animais e espíritos diversos. A quimera hopi, estudada por Warburg em 1927, é comparada à quimera grega, para ressaltar o princípio cognitivo que faz da primeira uma arte da memória. Por ter como característica peculiar um pequeno número de traços, oferecendo aos olhos poucos detalhes visuais, a quimera hopi exige uma atividade de projeção: o observador é impelido a completar os traços invisíveis da imagem. É esse jogo visual, cujo objetivo é imaginar o invisível, completando os traços da quimera, o responsável por transformar essas imagens em representações salientes. O princípio da quimera consiste justamente nessa operação mental de projeção sobre os índices visuais que compõem a imagem quimérica.

Sua atuação mnemônica é explicada por conceitos como saliência cognitiva, ordem, complexidade, reflexividade e contra-intuitividade, que permeiam todo o livro e demonstram a adesão de Severi à antropologia cognitiva. Vejamos, pois, como se relacionam tais conceitos nas análises das artes da memória situadas em contextos de comunicação ritual e povoadas de seres quiméricos, objetos paradoxais e imagens que mesclam pessoas, espíritos e animais.

A pictografia dos índios americanos, uma das artes da memória que recebeu anteriormente análises pouco convincentes, é o tema central do segundo capítulo. Constantemente tematizada ao longo dos séculos ora como forma de escrita atrasada ora como simples desenho, meio semiótico instável dependente do livre arbítrio individual, a pictografia é analisada por Severi – com base em exaustiva pesquisa em fontes históricas – como um processo complexo de transmissão de saber que relaciona palavra e imagem. Os pictogramas da Bíblia dakota, por exemplo, longe de representarem desenhos individuais, isolados e incompreensíveis, operam segundo uma lógica paralelística, cuja forma ordena os conhecimentos memoráveis ao organizar sequencialmente as imagens. Pictogramas ordenados paralelisticamente desencadeiam, assim, um processo de "codificação mnemônica". No caso da pictografia dos índios Kuna ou das nomenclaturas totêmicas do Sepik, na Nova Guiné, existe uma relação recíproca entre paralelismo iconográfico e paralelismo linguístico. No entanto, essa relação não é de representação direta, como se as imagens representassem as palavras cantadas no ritual. É, antes, o estabelecimento de uma ordem imagética atuando sobre uma ordem linguística, num contexto de enunciação ritual, que faz da pictografia uma mnemotécnica flexível, sofisticada e eminentemente social. Ordem e saliência, palavra ritual e imagem, paralelismo linguístico e iconográfico são os pares relacionados que fornecem a Severi os meios de compreender a pictografia a partir de um conjunto de práticas, técnicas e operações mentais ligadas à memória e à construção de tradições ao mesmo tempo orais e iconográficas.

No capítulo seguinte, centrado na figura complexa do xamã, as palavras-chave são projeção, imaginação e crença. Severi propõe uma outra leitura do episódio do difícil parto solucionado por um xamã kuna, presente num texto clássico de Lévi-Strauss, "A eficácia simbólica", publicado em Antropologia Estrutural.

A despeito das importantes contribuições do antropólogo francês feitas nesse artigo, sobretudo no que tange às relações entre antropologia e psicanálise, Severi afirma que a cura xamânica kuna não ocorre pela compreensão simbólica do canto enunciado pelo xamã. Antes de tudo, o segredo para solucionar o difícil parto está menos na compreensão da mensagem mitológica contida no canto entoado pelo xamã do que na pragmática do ritual, na performance realizada por ele e, sobretudo, na imaginação da parturiente, na elaboração reflexiva da figura do enunciador produzida pela particular tensão entre fé e dúvida que caracteriza qualquer crença. Não se trata, como queria Lévi-Strauss, de o xamã fornecer à doente uma linguagem na qual ela pudesse exprimir imediatamente estados não formulados. Não se caracteriza, portanto, como cura pela expressão verbal, como a sustentada pela psicanálise, mas como elaboração imaginativa realizada pela doente por meio da performance complexa, paradoxal, quimérica do xamã.

Deslocando a figura da parturiente para um plano de ação equivalente ao do xamã (em Lévi-Strauss ainda há a leve sobreposição do xamã à paciente no mesmo nível da relação sutilmente hierárquica entre psicanalista e analisado), Severi abre portas para responder por que, mesmo não compreendendo senão algumas palavras-indíces de todo o canto, a mulher grávida consegue dar à luz.

Na passagem do estudo de gabinete ao trabalho de campo, Severi descobre que os Kuna compreendem somente algumas palavras dos cantos xamânicos. Surge, assim, um descontentamento evidente com as análises baseadas no aspecto narrativo, discursivo e simbólico do ritual. Ele se volta, então, para uma definição pragmática do ritual que, embora não deixe de lado o aspecto narrativo, se concentra, sobretudo, em suas condições contra-intuitivas de comunicação. O autor elabora a figura do xamã como portador de uma identidade paradoxal: enunciador complexo capaz de condensar conotações contraditórias acumuladas no contexto contra-intuitivo dos rituais. Nesses contextos ele é capaz de presentificar diferentes seres invisíveis, metamorfoseando-se em espíritos do bem e do mal, seres vegetais e animais.

Construído como figura quimérica, assumindo identidades muitas vezes opostas, cantando palavras indecifráveis, o xamã só pode realizar o difícil parto com um enorme empenho da mulher – mas como isso ocorre se ela não compreende o sentido do canto xamânico? A "eficácia simbólica" do canto, reinterpretada por Severi, é explicada por um movimento duplo: de um lado, uma nova abordagem da relação entre o som e o sentido em contextos de comunicação terapêutica (recorrendo ao estudo do psicanalista italiano Gaetano Roi, desenvolvido sobre formas de comunicação de adolescentes autistas); de outro, a reelaboração do conceito antropológico de crença.

Entendido pela parturiente como música e não mais como texto narrativo, o canto do xamã kuna pode tornar-se pura enunciação, uma imagem sonora independente da significação das palavras. Novamente o paralelismo como técnica reflexiva e poética surge como elo entre o canto-quimera do xamã e as projeções criativas da mulher kuna. São as projeções efetuadas pela mulher que caracterizam a perspectiva relacional da crença proposta por Severi. É preciso compreender, segundo ele, não apenas como as crenças se organizam mas, sobretudo, a especificidade do laço estabelecido entre a crença e a pessoa que crê. Essa especificidade é definida pelas projeções imagéticas que a paciente desenvolve ao ouvir o canto-quimera e compreender apenas algumas palavras. A crença torna-se um tipo específico de projeção desencadeado pela interpretação de uma constelação incompleta de índices (:235).

Se a mulher crê nos sons emitidos pelo xamã, se esses sons podem ser literalmente vistos como uma imagem sonora, uma quimera musical, com sua incompletude e invisibilidade implicando necessariamente uma operação mental de projeção, então a solução do difícil parto depende, sobretudo, de sua habilidade em completar criativamente as complexidades sonoras cantadas pelo xamã. Do ponto de vista da mulher, não se trata, como diria Lévi-Strauss, da construção de um discurso, de um sistema de signos que daria sentido à experiência dolorosa de parir, mas da produção, num momento de dor, de uma ilusão perceptiva orientada (:252). A força mágica da eficácia simbólica concentra-se menos na narração de uma história compreensível do que nas dolorosas imagens sonoras criadas pela paciente ao ouvir os sons paralelísticos entoados pelo xamã. Esse conjunto de movimentos regidos segundo o princípio da quimera faz da mulher a verdadeira autora da eficácia simbólica.

Todavia, isso não é tudo. No quarto e último capítulo, Severi aprofunda sua abordagem cognitiva da complexidade cultural analisando as imagens paradoxais do Cristo travestido sob a forma de uma serpente pregada numa cruz e rapidamente disseminadas entre os índios apaches. Debruçando-se sobre a saga do profeta Silas John em sua transformação no Cristo, e também sobre as mudanças nas representações da morte inventadas pelos penitentes do Novo México, o autor tenta agora explicar o funcionamento de uma memória antagonista presente nas iconografias rituais, calcada na possibilidade de uma negação expressada em termos visuais. Severi busca, assim, demonstrar a presença de imagens que se contradizem e se opõem no interior de uma mesma tradição iconográfica. Uma vez mais, essas imagens – a serpente pregada numa cruz, no caso apache, e a santa em forma de caveira, no caso dos religiosos do Novo México – são empregadas em contextos rituais e representam paradoxalmente a coexistência de elementos contraditórios em contextos de conflitos não solucionados.

O que faz dessas imagens (e de todas as outras analisadas pelo autor) representações salientes é, para além de sua complexidade, sua inserção em contextos contra-intuitivos de comunicação ritual. O autor conclui: "[...] de todas as situações que tivemos a ocasião de examinar nesse livro, do canto autobiográfico do guerreiro das planícies até as terapias rituais kuna, uma representação memorável ou dominante é uma representação contra-intuitiva expressa no interior de uma situação contra-intuitiva de comunicação" (:262-263). Configura-se aqui uma das principais inovações da antropologia da memória proposta por Severi: as representações transmitidas no ritual – geralmente a partir de imagens quiméricas desenhadas, esculpidas, cantadas ou imaginadas – são aquelas que permanecem mais enraizadas numa determinada cultura. Sua permanência no tempo sustenta-se por sua inserção contínua no ritual, nesse outro universo de verdade governado por condições e técnicas contra-intuitivas de comunicação. É nesse outro regime de signos, ações e projeções instaurado pelo ritual que se formam as condições favoráveis ao funcionamento do princípio da quimera.

Seja no toque dos tambores luba-shaba dos nativos do Congo, seja na visão e na audição de uma harpa zande, na arte cerâmica hopi ou num ritual de máscaras dos Bahinemo, na pictografia kuna ou nos cultos da Bíblia dakota, aí está o princípio da quimera agindo, a partir desses objetos rituais, em seus executantes, observadores e participantes. Resta-nos saber se esse é mais um princípio cognitivo universal – funcionando quimericamente entre todas as possíveis condições favoráveis. Não se esconde no livro essa ambição, a começar pelo título.

Revista Mana

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