Identidade étnica no Brasil Meridional
Lucy Maffei Hutter
Docente / IEB-USP (área de História)
ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Italianidade no Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria – RS. Santa Maria (RS): Ed. da UFSM, 2006.
"Italianidade no Brasil Meridional" é um amplo estudo – do ponto de vista antropológico – sobre os descendentes dos italianos de Santa Maria e Silveira Martins, região esta que integrava a extensa área de colonização que se deu no Rio Grande do Sul nos finais do século XIX e princípios do XX.
Dentro dessa visão antropológica a autora considera a italianidade "como uma construção, na qual a veracidade ou autenticidade dos símbolos diacríticos usados para se auto-referirem não é fundamentalmente relevante". No contexto foi observado como os descendentes dos italianos "apropriam-se de determinados símbolos como seus e lhes atribuem valor e significação".
A obra – prefaciada por João Baptista Borges Pereira – enfoca o que os descendentes mantêm, ainda, de toda a vivência que herdaram dos italianos, seus antepassados.
Sendo dividida em quatro capítulos, o primeiro analisa como é vista, pelos descendentes dos imigrantes, a travessia do oceano realizada pelos ascendentes que, contada e recontada através das gerações, tornou-se uma referência de valores de personalidade que, em princípio, deveriam ser mantidos ainda hoje. A parte introdutória do capítulo dá uma visão da Itália, então recém-unificada, bem como do Brasil, na época.
A narrativa do imigrante sobre a chegada no Brasil, por vezes meio fantasiada, passada de geração em geração, serve, ainda hoje, como demonstra a autora, para justificar certas ações dos antepassados. Uma descendente explicava a escolha do lote no morro, por parte de seus ascendentes, devido ao medo destes frente ao mar, durante a travessia do oceano. Abrigando-se no morro "sabiam que seria quase impossível a água atingir tamanha altura".
Em outro capítulo o enfoque se volta para a proveniência dos imigrantes e o difícil início, adaptação e vivência nos lotes de terra dos núcleos coloniais nos quais acabavam se estabelecendo. Quanto ao trabalho insano até que conseguissem obter recursos da lavoura, passaram os imigrantes, para as gerações que se seguiram, a idéia de que o colono italiano "soffre e lavora con quella tenacitá che é peculiare alla nostra stirpe".
Com relação aos que venceram, a autora destaca a construção do mito do herói, o qual foi, também, passado de geração em geração.
Já aqueles que não conseguiram melhorar a condição econômica eram vistos, entre os conterrâneos, como pessoas com "pouca vontade de trabalhar", como até hoje são designados pelos descendentes.
A religiosidade do italiano – analisada também em outras obras – é relembrada como elemento de importância na adaptação dos peninsulares quando de sua chegada ao Brasil.
No terceiro capítulo a autora analisa a repressão sofrida pelos italianos e descendentes na região de Santa Maria e Silveira Martins, durante a vigência do Estado Novo, que abrangeu, também, a língua por eles falada e as escolas ali mantidas.
A obrigatoriedade do ensino em português fez com que as crianças tivessem de, simultaneamente, aprender as matérias e a língua portuguesa, na época, não dominada por muitos deles.
Aqueles que não falavam o português tornaram-se menos sociáveis temendo a repressão ou, até mesmo, serem considerados traidores da pátria, em se tratando do Brasil.
A repressão deu-se com maior intensidade nos centros urbanos, onde sobreveio tanto o fechamento da Sociedade de Mútuo Socorro, italiana, como saques em estabelecimentos comerciais, quer de peninsulares, quer de alemães.
Na obra em questão é, também, analisada a atuação do jornal local A Razão. Adepto da política nacionalizadora do governo Vargas, considerava mesmo os descendentes de italianos e de alemães membros "perigosos", amigos do Eixo e com possibilidade de atuação favorável ao país de origem.
Com a repressão, os italianos e descendentes foram se adaptando mais aos costumes considerados nacionais. Só voltaram a valorizar a sua origem italiana, e o que herdaram dos hábitos dos antepassados, com a comemoração dos cem anos do início da colonização italiana no Rio Grande do Sul, em 1975.
É dado enfoque à questão da "italianidade" e de que modo, atualmente, os descendentes daqueles provenientes das diferentes regiões da Itália a vêem e/ou a transmitem às outras gerações; e como, com o passar dos anos, costumes brasileiros foram sendo reavaliados e introduzidos entre eles, evidenciando o chimarrão.
A culinária, por sua vez, já se encontra um pouco modificada devido às alterações e adaptações sofridas, no decorrer do tempo.
Nesse estudo, embora a autora tenha por objetivo analisar "a construção da italianidade entre os descendentes" constata que os mais jovens "descendentes de italianos de Santa Maria e Silveira Martins se sentem, além de brasileiros, gaúchos". Isso não surpreende, visto que os descendentes já se encontram na quinta geração e tendo a facilidade de transporte de um local ao outro, de estudo em outras cidades e, principalmente, com acesso à comunicação de massa, o entrosamento com os nacionais e pessoas de outras origens é muito mais rápido. Assim, os costumes dos antepassados vão ficando cada vez mais distantes no dia a dia do indivíduo, sobrevivendo mais como interesse de dupla cidadania ou mesmo visando a atração turística.
Analisando a zona rural e a urbana, a autora aborda a questão da diferenciação que ainda persiste entre os provenientes de uma e outra região da Itália e mesmo aquela existente entre os descendentes que foram para a zona urbana e lá se estabeleceram e os que continuaram na zona rural.
O estudo se detém, sobretudo, na busca das origens, por parte dos descendentes dos italianos que se radicaram na região de Santa Maria e Silveira Martins, no Rio Grande do Sul. A história da família é reconstruída e, por vezes, reinventada de acordo com a imaginação de cada membro do núcleo familiar.
Anexos se encontram questionários que serviram de base para as entrevistas realizadas pela autora. Um deles é dirigido aos estudantes do ensino fundamental e médio de Silveira Martins. Neste tem-se a impressão de que a primeira questão é um tanto forçada, premeditando um tipo X de resposta.
Consta também – além do "Roteiro orientador das entrevistas" – o "Roteiro da pesquisa referente à novela Terra nostra". Neste caso, não se pode esquecer que se trata de uma ficção e, como tal, o autor pode dar asas à imaginação, não tendo o tema, obrigatoriamente, de condizer com a realidade.
A obra em questão Italianidade no Brasil Meridional é, não obstante, um estudo antropológico de peso sobre os descendentes dos italianos na região de Santa Maria e Silveira Martins, no Rio Grande do Sul e, tratando-se de uma excelente contribuição temática merece, sem dúvida, a atenção dos estudiosos da imigração italiana no Brasil.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
Lucy Maffei Hutter
Docente / IEB-USP (área de História)
ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Italianidade no Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria – RS. Santa Maria (RS): Ed. da UFSM, 2006.
"Italianidade no Brasil Meridional" é um amplo estudo – do ponto de vista antropológico – sobre os descendentes dos italianos de Santa Maria e Silveira Martins, região esta que integrava a extensa área de colonização que se deu no Rio Grande do Sul nos finais do século XIX e princípios do XX.
Dentro dessa visão antropológica a autora considera a italianidade "como uma construção, na qual a veracidade ou autenticidade dos símbolos diacríticos usados para se auto-referirem não é fundamentalmente relevante". No contexto foi observado como os descendentes dos italianos "apropriam-se de determinados símbolos como seus e lhes atribuem valor e significação".
A obra – prefaciada por João Baptista Borges Pereira – enfoca o que os descendentes mantêm, ainda, de toda a vivência que herdaram dos italianos, seus antepassados.
Sendo dividida em quatro capítulos, o primeiro analisa como é vista, pelos descendentes dos imigrantes, a travessia do oceano realizada pelos ascendentes que, contada e recontada através das gerações, tornou-se uma referência de valores de personalidade que, em princípio, deveriam ser mantidos ainda hoje. A parte introdutória do capítulo dá uma visão da Itália, então recém-unificada, bem como do Brasil, na época.
A narrativa do imigrante sobre a chegada no Brasil, por vezes meio fantasiada, passada de geração em geração, serve, ainda hoje, como demonstra a autora, para justificar certas ações dos antepassados. Uma descendente explicava a escolha do lote no morro, por parte de seus ascendentes, devido ao medo destes frente ao mar, durante a travessia do oceano. Abrigando-se no morro "sabiam que seria quase impossível a água atingir tamanha altura".
Em outro capítulo o enfoque se volta para a proveniência dos imigrantes e o difícil início, adaptação e vivência nos lotes de terra dos núcleos coloniais nos quais acabavam se estabelecendo. Quanto ao trabalho insano até que conseguissem obter recursos da lavoura, passaram os imigrantes, para as gerações que se seguiram, a idéia de que o colono italiano "soffre e lavora con quella tenacitá che é peculiare alla nostra stirpe".
Com relação aos que venceram, a autora destaca a construção do mito do herói, o qual foi, também, passado de geração em geração.
Já aqueles que não conseguiram melhorar a condição econômica eram vistos, entre os conterrâneos, como pessoas com "pouca vontade de trabalhar", como até hoje são designados pelos descendentes.
A religiosidade do italiano – analisada também em outras obras – é relembrada como elemento de importância na adaptação dos peninsulares quando de sua chegada ao Brasil.
No terceiro capítulo a autora analisa a repressão sofrida pelos italianos e descendentes na região de Santa Maria e Silveira Martins, durante a vigência do Estado Novo, que abrangeu, também, a língua por eles falada e as escolas ali mantidas.
A obrigatoriedade do ensino em português fez com que as crianças tivessem de, simultaneamente, aprender as matérias e a língua portuguesa, na época, não dominada por muitos deles.
Aqueles que não falavam o português tornaram-se menos sociáveis temendo a repressão ou, até mesmo, serem considerados traidores da pátria, em se tratando do Brasil.
A repressão deu-se com maior intensidade nos centros urbanos, onde sobreveio tanto o fechamento da Sociedade de Mútuo Socorro, italiana, como saques em estabelecimentos comerciais, quer de peninsulares, quer de alemães.
Na obra em questão é, também, analisada a atuação do jornal local A Razão. Adepto da política nacionalizadora do governo Vargas, considerava mesmo os descendentes de italianos e de alemães membros "perigosos", amigos do Eixo e com possibilidade de atuação favorável ao país de origem.
Com a repressão, os italianos e descendentes foram se adaptando mais aos costumes considerados nacionais. Só voltaram a valorizar a sua origem italiana, e o que herdaram dos hábitos dos antepassados, com a comemoração dos cem anos do início da colonização italiana no Rio Grande do Sul, em 1975.
É dado enfoque à questão da "italianidade" e de que modo, atualmente, os descendentes daqueles provenientes das diferentes regiões da Itália a vêem e/ou a transmitem às outras gerações; e como, com o passar dos anos, costumes brasileiros foram sendo reavaliados e introduzidos entre eles, evidenciando o chimarrão.
A culinária, por sua vez, já se encontra um pouco modificada devido às alterações e adaptações sofridas, no decorrer do tempo.
Nesse estudo, embora a autora tenha por objetivo analisar "a construção da italianidade entre os descendentes" constata que os mais jovens "descendentes de italianos de Santa Maria e Silveira Martins se sentem, além de brasileiros, gaúchos". Isso não surpreende, visto que os descendentes já se encontram na quinta geração e tendo a facilidade de transporte de um local ao outro, de estudo em outras cidades e, principalmente, com acesso à comunicação de massa, o entrosamento com os nacionais e pessoas de outras origens é muito mais rápido. Assim, os costumes dos antepassados vão ficando cada vez mais distantes no dia a dia do indivíduo, sobrevivendo mais como interesse de dupla cidadania ou mesmo visando a atração turística.
Analisando a zona rural e a urbana, a autora aborda a questão da diferenciação que ainda persiste entre os provenientes de uma e outra região da Itália e mesmo aquela existente entre os descendentes que foram para a zona urbana e lá se estabeleceram e os que continuaram na zona rural.
O estudo se detém, sobretudo, na busca das origens, por parte dos descendentes dos italianos que se radicaram na região de Santa Maria e Silveira Martins, no Rio Grande do Sul. A história da família é reconstruída e, por vezes, reinventada de acordo com a imaginação de cada membro do núcleo familiar.
Anexos se encontram questionários que serviram de base para as entrevistas realizadas pela autora. Um deles é dirigido aos estudantes do ensino fundamental e médio de Silveira Martins. Neste tem-se a impressão de que a primeira questão é um tanto forçada, premeditando um tipo X de resposta.
Consta também – além do "Roteiro orientador das entrevistas" – o "Roteiro da pesquisa referente à novela Terra nostra". Neste caso, não se pode esquecer que se trata de uma ficção e, como tal, o autor pode dar asas à imaginação, não tendo o tema, obrigatoriamente, de condizer com a realidade.
A obra em questão Italianidade no Brasil Meridional é, não obstante, um estudo antropológico de peso sobre os descendentes dos italianos na região de Santa Maria e Silveira Martins, no Rio Grande do Sul e, tratando-se de uma excelente contribuição temática merece, sem dúvida, a atenção dos estudiosos da imigração italiana no Brasil.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
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