sábado, 22 de maio de 2010

Sobre o declínio da "sinceridade". Filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin


Ascensão da autobiografia / declínio do sujeito

Myriam Ávila

Professora da Faculdade de Letras da UFMG. myravila@uai.com.br

DAMIÃO, Carla Milani. Sobre o declínio da "sinceridade". Filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin. São Paulo: Edições Loyola, 2006. 239p.

A autobiografia tem atraído cada vez mais a atenção dos estudiosos em diversas áreas. Antes ocupando um lugar modesto e marginal no conjunto da obra de escritores, filósofos, artistas e cientistas, passou, nas últimas décadas, a texto-chave para a avaliação dessa mesma obra ou documento inestimável de uma época e de um Zeitgeist. Para a literatura, o gênero autobiográfico levanta instigantes questões sobre as negociações entre ficção e realidade, identidade narrador-autor e em torno do pacto que busca estabelecer com o leitor. Carla Milani Damião, com seu livro Sobre o declínio da "sinceridade". Filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin, discute um aspecto complexo da escrita autobiográfica que a crítica literária tem tratado com certa rapidez: o do compromisso com a verdade. Se o reconhecimento do papel da linguagem e dos processos narrativos na mediação entre realidade e texto parece nos resguardar suficientemente de uma leitura ingênua, a verdade como imperativo último da empresa autobiográfica tem passado ao largo da maioria dos estudos a ela dedicados.

Entretanto, definir o teor de sinceridade nas obras deste e daquele memorialista é ainda um objetivo estreito demais para a reflexão filosófica. Colocando-se na interface literatura-filosofia, a autora de Sobre o declínio... mostra sua filiação à segunda ao ir além da investigação sobre obras e autores, tomando como escopo a mudança de uma sensibilidade (ela usa o termo "caráter social") pertinente ao sujeito e à percepção da subjetividade, de um período pré ou proto-moderno1 (século XVIII) até o século XX, em que se estabelece o espírito de época que até hoje reconhecemos como contemporâneo. Essa extensão temporal e a tomada de textos autobiográficos de diversos tipos como iluminadores de um processo de mudança foram-lhe sugeridas por um projeto de Walter Benjamin, registrado em carta de 30 de novembro de 1939 a Max Horkheimer, então diretor do famoso Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Benjamin pretendia fazer uma comparação entre as Confissões de Rousseau e o diário de André Gide, separados por mais de um século. O estudo do século XIX, no entanto, tanto o atrai que o filósofo acaba se fixando em Baudelaire como o autor que encarnou o nascimento de uma subjetividade propriamente moderna. Carla Damião retoma a idéia abandonada por Benjamin acrescentando aos nomes propostos dois outros autores de textos de estatuto vacilante com relação a seu caráter autobiográfico: Nietzsche (com o Ecce Homo) e Proust, concluindo seu estudo da construção textual do eu com os escritos memorialísticos do próprio Benjamin.

O material é vasto e variado e tantas são as trilhas que se abrem à margem da via principal que é admirável a segurança com que a autora mantém coesa sua linha de argumentação. Damião parte da idéia de que a autobiografia compartilha questões de base com a filosofia, tais como a do conhecimento de si e a convergência possível entre verdade e expressão, configurando-se como um cruzamento inevitável entre aquela disciplina e a literatura. Sua escolha de corpus é extremamente engenhosa, já que obtém com ela dois outros pares que ilustram contrastes de postura tão exemplares quanto o que Benjamin propusera. Se, de fato, o cotejo Rousseau/Gide permite uma exposição quase didática das transformações do sujeito na passagem para a modernidade,2 as opções divergentes de Nietzsche e Benjamin com relação à escrita do eu e a condução estilística oposta da mesma escrita em Proust e Benjamin serão importantes, já não para a compreensão da perspectiva histórica, mas para a iluminação do texto autobiográfico como gênero e também para uma percepção mais refinada do pensamento benjaminiano.

As possibilidades combinatórias não terminam aí: tomando-se as Confissões e Em busca do tempo perdido, podemos pensar na passagem da autobiografia-romance para o romance-autobiografia como correlata ao tema do declínio da sinceridade. Rousseau "pega carona" na ascensão do romance, formulando o eu como esse personagem do qual, já em Richardson e Defoe, era preciso afirmar a existência real, enquanto Proust aborda o gênero no momento em que ele já não pode aspirar à monumentalização do sujeito, contentando-se com a imitação lacunar e sempre incompleta3 da experiência cotidiana de si, do outro e do tempo. Essa incompletude, propõe Carla Damião, se faz representar, na escrita, pelo diário, pois a autobiografia propriamente dita seria sempre esse romance em que o protagonista aparece coeso e íntegro, e a sinceridade não é em nada abalada pela mentira que nela se ancora.

É nesse contexto, ainda, que Sobre o declínio... revisita a opção pela alegoria em Benjamin. As imagens supririam, não só nos textos benjaminianos de caráter autobiográfico, mas também em seus ensaios, a perda de expressão do sujeito, pelo qual elas falariam, não mais de forma seqüencial e progressiva como nos sintagmas lingüísticos, mas operando em uma temporalidade múltipla que inclui desde o relampejar súbito até a lenta fermentação de sentido que o contato com o presente histórico lhes faculta.

No todo, Sobre o declínio... rende, com o rastreamento dessa questão que ficara suspensa na obra de Benjamin, uma homenagem ao filósofo berlinense que só poderia ser realizada por uma estudiosa perspicaz daquela obra. Quando o texto se estende pela investigação de outros autores, é sempre a Benjamin que se quer voltar e se volta – movimento pelo qual, apesar de toda a equanimidade da autora, ela deixa implícita sua constante admiração. Elogiável é, portanto, sua recusa em mimetizar o estilo benjaminiano, mantendo sempre uma argumentação elegante e flexível, sem apelos fáceis e equilibrando, com o distanciamento necessário, sua empatia com o objeto.

Embora a capacidade de não se perder nos inúmeros meandros que temas tão amplos quanto os seus não cessam de trazer à baila seja uma das grandes qualidades desse livro, ganharíamos muito se Carla Damião se dispusesse a prosseguir suas investigações dos temas autobiografia e interação filosofia/literatura com a competência que acaba de demonstrar. Lidando com extensa e pesada bibliografia, mostrou-se capaz de deixar soar no texto uma multiplicidade de vozes, sem que o fórum assim instalado substituísse a sua percepção direta do objeto e sem que as diversas perspectivas se neutralizassem umas as outras. Lembre-se ainda o bônus extra dos anexos, em que nos presenteia com dados e resenhas preciosas sobre o envolvimento de Benjamin com o abortado projeto Rousseau/Gide. Como toque final que evidencia a extrema dedicação e atenção ao acabamento com que a autora preparou seu livro, as fotografias de Eugène Atget que abrem cada capítulo apresentam ao leitor um trabalho que também ocupou a reflexão de Walter Benjamin, trazendo a Sobre o declínio... a dimensão da imagem, tão essencial para o filósofo.

1 Aqui o adjetivo é usado em seu sentido mais restrito, referindo-se a um desenvolvimento que só atinge sua potência máxima na passagem do século XIX ao XX.
2 De novo, em sentido restrito.
3 Proust não conseguia nunca dar seu texto por encerrado.

Kriterion: Revista de Filosofia

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