sexta-feira, 28 de maio de 2010

índios da Amazônia: De maioria a minoria


Maria Luiza Marcílio
Profª Titular História/USP e Diretoria do Centro de Estudos de Demografía Histórica da América Latina/USP



MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. índios da Amazônia. De maioria a minoria. 1750-1850. Petrópolis, Vozes, 1988, 348 p

Aquele que pretender navegar ao longo do rio Amazonas ou pelos cursos inferiores da maioria de seus principais afluentes, na esperança de surpreender grupos indígenas por lá espalhados, terá frustadas suas expectativas.

Onde estariam as numerosas e culturamente mais desenvolvidas tribos diversas da faixa do amazonas que a povoaram desde épocas remotas e continuavam numerosas na época colonial? Tupinambás, Aruã, Tapajós, Omágua no Amazonas; Mura, Munducurá e Maué do baixo Tapajós e Madeira, dentre tantos outros grupos foram sistematicamente submetidos a um processo gradual, constante e determinado de extermínio. Infelizmente esse tema nunca atraiu o interesse de nossos historiadores. Quando dele se ocuparam, quase sempre o fizeram através da ótica do branco dominador, não do índio oprimido, deculturado, destruído.

Carlos de Araújo Moreira Neto, antropólogo, um dos maiores conhecedores da história e da antropologia indígena brasileira e um ardoroso militante da causa indígena, oferece-nos hoje com esta obra, um estudo acurado, criterioso dos mecanismos oficiais e não oficiais usados para a depopulação e deculturação, ou se quiser, do processo de "civilizar" ou matar o índio em nossa história.

Uma soma variada de documentos foi reunida ao longo de anos de pesquisas, em arquivos nacionais, regionais, locais e do exterior para recuperar a história de vida e morte e as resistências diversas que os grupos indígenas puderam desenvolver. Para o esforço grandioso e nem sempre fácil de rastear o processo depopulativo e deculturalizante dos agrupamentos indígenas, Carlos Moreira parte da análise dos efeitos do sistema de aldeamento jesuítico na área. Dele resultou a categoria do índio étnicamente deculturado, a figura do TAPUIO.

A recuperação desta categoria pouco entendida e conhecida em nossa sociedade é um dos pontos mais importantes da obra de Moreira. Ora, ensina-nos o Autor, a missão religiosa é um centro por excelência de destribalização e de homogenização deculturativa, cujo produto final é Tapuio.

Expulsos os padres de Companhia de Jesus, Pombal institui nova política relacionada aos índios que redunda no aceleramento do processo depopulativo. Na vila pombalina instala-se a opressão física do índio pela autoridade local e pelo colono, acelerando-se igualmente sua decadência cultural.

D. João VI, feroz inimigo dos índios, intensifica leis contra populações indígenas e guerra de extermínio contra tribos que resistiam ao domínio branco. Essa política favoreceu os descimentos e a escravidão de índios em propriedades particulares.

Com a independência a situação manteve-se como antes; o sistema colonial foi continuando e o desinteresse político pelos índios tribais e aldeados prosseguiu.

O índio sempre foi considerado como categoria genérica e não como pessoa. Daí a dificuldade em se reconstruir sua vida, lutas, aspirações, comportamentos, cotidiano. "Nada aliás, diz Moreira, caracteriza melhor o estado colonial do nativo que esse anonimato e impessoalidade" (p. 57).

Na falta de documentação que informe sobre a vida, aspirações, lutas do índio, o Autor teve que recorrer a fontes diversas de carácter social como Inquéritos, Atas, Relatórios oficiais ou de agencias de repressão à cabanagem etc... A leitura desses textos além de inteligentes e atenta para a visão do índio foi feita com maestria, sensibilidade, método e intuição invulgar.

O importante para o Autor era elucidar, compreender, a partir de testemunhos da época a ação anti-indígena dominante, das elites aos padres missionários, das autoridades coloniais ou nacionais as leis, regulamentos e decretos contrários à vida do índio, tanto o tribal como o índio genérico, ou seja o Tapuio.

A trajetória dramatica dessa categoria forjada pela colonização e evangelização, o Tapuio é objeto de estudo particular e pioneiro. O Tapuio é diferente do mestiço e do sertanejo. Ele é índio ainda, só que índio genérico, desprovido de sua identidade ética, de sua possibilidade de entender-se ligado ao seu povo, à sua tribo, às suas crenças e tradições mais profundas.

Se o índio foi sempre rejeitado pela sociedade branca colonizadora, esta fabricou o tapuio de todas as peças; rejeitou-o também. E o destino de ambos acabou por ser celado de vez, após 1870, com a inauguração da era da extração da borracha na Amazônia.

O livro recupera ainda o processo de depopulação e destruição de três importantes agrupamentos indígenas do baixo Amazônas, Madeira e Tapajós, os Mura, Mundurucu e Maué que viveram em estado de relativa autonomia tribal até fins do século XVIII. A partir de 1798 sofreram uma ação determinada de agressão, expoliação e de extermínio. O leitor pode seguir os passos desse processo.

A obra apresenta em sua segunda parte, um vasto apêndice de documentos de relevância para a reconstrução e entendimento da história do índio na Amazônia, dentro do período de 1750 a 1850. Foi transcrito documentos da era pombalina e pós-pombalina, sobre os índios Mura, sobre cabanagem, além de mapas demográficos, instrumentos preciosos para análises das populações locais.

Seria desejável que esta obra não fosse lida apenas pelos estudiosos na questão indígena brasileira, mas que à ela tivesse aceso os seus próprios sujeitos, os poucos grupos indígenas ainda remanescentes. Por este livro, vieram eles os mecanismos históricos (que são atuais) de deculturação até chegar à solução final.

Revista de História - USP

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