Maria da Gloria Porto Kok
GINZBURG, Carlo. "Os Andarilhos do Bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII., trad., São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988.
Os livros do historiador italiano Carlo Ginzbutg, editados pela "Companhia das Letras", chegaram ao Brasil em ordem inversa. "O Queijo e os Vermes", escrito em 1976, foi lançado no ano passado. É um belíssimo estudo sobre a história devida do moleiro Domenico Scandella, também conhecido como Menocchio, perseguido e condenado pela Inquisição. Ginzburg reconstitui, no interior de suas confissões, traços da tradição oral e da cultura escrita, desvendando a imbricação dos saberes. Além disso, destaca-se na efervescência das idéias de Menocchio, uma vida rebeldia, uma explosiva indignação ao silêncio a que era confinado.
Fruto da mesma documentação inquisitorial, Ginzburg já havia publicado dez anos antes na Itália "I benandanti: stregoneri e culti agrari tra Cinquecento e Seicento", lançado este ano no Brasil, com o título "Os Andarilhos do Bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII", traduzido por Jônatas Batista Neto.
Neste trabalho pioneiro, o historiador italiano estuda a mudança das atitudes religiosas dos camponeses em vista da pressão exercida pela Inquisição. Ao focalizar um culto fundamentalmente agrário de raízes pagas, Ginzburg capta as mudanças sutis operadas pelos mecanismos de repressão até transformá-lo num culto diabólico.
Estudos revelando cultos pagãos no seio da Cristandade já foram realizados anteriormente por Jules Michelet. "A bruxa" (1862) —, por J. Frazer — "O Ramo de Ouro" (1890) —, por Maragaret Murray — "O culto da bruxaria na Europa Ocidental" (1921), "O deus das bruxas" (1931) —, entre outros. Mas somente com "Os Andarilhos do Bem" obteve-se uma relação coerente entre os cultos pagãos e a feitiçaria. Esta obra dá um novo impulso às investigações acerca das sobrevivências religiosas pagãs na vida cotidiana da coletividade. Na esteira de Ginzburg, outros trabalhos como o de Jeffrey Russell — "Bruxaria na Idade Média" (1972) —, Robert Mandrou — "Magistrados e feiticeiros na França do século XVII" (1968), — Keith Thomas, "A religião e o declínio da magia" (1971), — constituem marcos imprescindíveis na historiografia contemporânea para a compreensão dos comportamentos coletivos e de suas representações simbólicas.
A pesquisa sobre "Os Andarilhos do Bem" circunscreve-se à região do priul, nordeste da Itália, e ao período que se estende do final do século XVI até meados do século XVII.
Valendo-se de fontes inquisitoriais, o autor percorre o fascinante trajeto de recuperação de vozes camponesas, sufocadas pela mentalidade deformadora dos inquisidores e, a partir de idéias aparentemente soltas e desconexas, constrói o vasto tecido de crenças populares da época.
Diante dos rumores que circundavam uns tais "benandanti", a Inquisição decide convocá-los para inquirir sobre as suas atividades. Em 1575, no convento de San Francesco di Cividale do Friul têm lugar os interrogatórios de dois benandanti: o pregoeiro Battista Moduco e um certo Paolo Gasparutto.
O depoimento de Moduco revela o cerne das atividades dos "benandanti". "Eu sou 'benandanti' porque vou combater com os outros quatro vezes por ano, isto é, nos Quatro Tempos, de noite, de forma invisível, com o espírito, ficando o corpo; e nós andamos em favor de Cristo, e os feiticeiros, do diabo; combatendo uns contra os outros, nós com os ramos de erva-doce e eles com os caules de sorgo" (1).
Não é difícil imaginar o espanto dos inquisidores diante desse relato! Como poderiam enquadrá-lo?
Soma-se a essa descrição, para aumentar ainda mais o abismo de incompreensão entre "benadanti" e inquisidores, a fala de Paolo onde diz comparecer às reuniões "em espírito", cavalgando lebres, gatos e outros animais.
Aos olhos dos inquisidores, as reuniões noturnas e as cavalgadas em animais eram esboços enevoados do sabbat das feiticeiras, descrito nos trabalhos demonológicos, amplamente difundidos na Europa Ocidental entre os séculos XV ao XVII. Entretanto, combatendo "por amor das colheitas" contra bruxas e feiticeiros, os "benandanti" eram essencialmente diversos destes: não renegavam a fé, não pisoteavam a cruz, não cometiam sacrilégios .
No bojo de seu culto, emergia um rito de fertilidade intimamente ligado aos ritmos das produções agrícolas. Se saíssem vencedores do combate, estava garantida a boa colheita; caso contrário, haveriam de carregar o fardo da fome.
Contudo, um elemento novo, inserido na confissão de Paolo Gasparutto, delineará as inquisições subsequentes. Quanto indagado: "quem vos chamou para entrar nessa companhia de benandanti?" Gasparutto responde: "o anjo do céu" (...) (2).
Ocorre então uma brusca mudança de atitude por parte do inquisidor. Sequioso por operar em terreno conhecido, passa a conduzir as questões de maneira violenta, sugerindo a identificação do "anjo" com o diabo e dos "benandanti" com os feiticeiros. Para isso, impregna o "anjo" de atributos diabólicos e termina por conformar as atividades dos "benandanti" aos sabbats das bruxas e feiticeiras.
Procurando decodificar os ritos e cultos pagãos que se vinculam, de alguma forma, ao mito dos "benandanti", Ginzburg aventura-se pelo folclore europeu, represa de elementos arcaicos, pré-cristãos. Ao examinar o processo de um lobisomen lituano ocorrido em Jüngensburg em 1692, traça um interessante paralelo com o culto da fertilidade dos "benandanti".
Com mais de oitenta anos, um certo Thiess confessara diante dos juizes ser um lobisomem e, junto com outros lobisomens, descer ao Inferno onde lutava contra o diabo e os feiticeiros. Os lobisomens tinham que recuperar o gado, as sementes e outros frutos da terra roubados pelos feiticeiros, se não quisessem ver a penúria se alastrando pelos campos. Apesar da insistência desmesurada dos juizes, Thiess nega qualquer pacto com o diabo, afirmando ser inimigo do diabo, ("cão de Deus"), e protetor das colheitas.
Em ambos os casos, Ginzburg constata a descida dos agentes ao mundo subterrâneo afim de combater forças destrutivas, assegurando a fertilidade do solo e garantindo a prosperidade da comunidade.
O testemunho de Anna, viúva Domenico Artichi, chamada "a Ruiva", confirmou o elo existente entre os "benadanti" e o mundo dos mortos ao revelar que o seu marido era "benandante" e andava com os mortos.
No entanto, o mito dos "benandanti" foi mais difundido como um culto agrário. Ginzburg escava o seu caráter sincrético: "No amálgama de crenças defendidas pelos 'benandanti', coexistiam dois núcleos fundamentais: um culto agrário (que constituía, com certeza, o núcleo mais antigo) e um culto cristão, além de um certo número de elementos assimiláveis à feitiçaria. Não tendo sido compreendido o primeiro pelos inquisidores, e tendo sido claramente recusado o segundo, esse grupo compósito de mitos e crenças deveria desembocar, na falta de outras saídas, inevitavelmente na terceira direção" (3).
Assim, em 1618, no testemunho da esposa de um tenoeiro, Maria Panzona, surge pela primeira vez, o diabo presidindo as reuniões noturnas realizadas no "prado de Josafá". Todavia, quando desperta de uma crise de epilepsia vivida em pleno interrogatório, ela deixa que aflorem os estratos mais inconscientes de sua mente, ou seja, os mitos dos "benandanti" ressurgem sem nenhuma contaminação pelas deformações diabólicas.
Entretanto, a partir de 1634 (cinquenta anos após a ocorrência dos primeiros interrogatórios), a imagem do sabbat diabólico foi finalmente incorporada e assimilada pelas mentalidades camponesas, que se tornam progressivamente hostis aos "benandanti": "esses astutos impostores" (4) "que andam com as bruxas" (5), como testemunham os camponeses ao denunciarem o 'benandante' Michele Soppe ao Santo Ofício.
Apesar do grande número de denúncias e de confissões que continham descrições de sabbats e de práticas mágicas, ninguém foi condenado. Por volta de 1650, na Itália, não se condenava mais as bruxas e feiticeiras. O ceticismo crescente e a vigência da Razão em nome do florescimento científico relegou o conhecimento popular ao nível das superstições e da ignorância.
A dissipação do culto dos "benandanti" representa a vitória de um saber ancorado numa verdade única, racionalizada, em detrimento das efervescências oníricas, fantásticas e sensíveis que são parte integrante da tradição oral. E lamentava-se Voltaire: "Hoje, joga-se insípidamente o baralho, é uma pena que sejamos descrentes".
(1) — Cario Ginzburg, "Os Andarilhos do Bem", trad., São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988. [ Links ]
(2) — Op. cit., pg. 28.
(3) — Op. cit., pg. 47.
(4) — Op. cit., pg. 144.
(5) — Op. cit., pg. 145.
Revista de História - USP
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