Sabinadas
Daniel Afonso da Silva
NO DIA 7 de novembro de 1837, a cidade da Bahia amanheceu sob governo de sabinos e diversos. Na primeira hora, rebeldes liderados por Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira e João Carneiro da Silva tomaram a Câmara Municipal de Salvador e declararam a província livre do mando imperial. A operação revolucionária entrara em execução na noite anterior com a ocupação do Forte de São Pedro. Após noite e madrugada tensas, fizeram soar, logo na alvorada, os sinos da casa da vereança. Os sonidos ecoavam pela cidade anunciando a nova. Comoviam uns, amedrontavam outros, e eram indiferentes a uns e outros tantos. Os primeiros corriam para a praça do Palácio. Os outros fugiam para o refúgio do governo deposto: Cachoeira. Os diversos uns e outros tantos continuavam a dormir ou levar a vida normalmente. Esse estado de exceção perdurou por mais de quatro meses. Durante esse período, os revolucionários lançaram mão de toda sorte e artimanha para efetivar seu poder. Ensaiaram alternativas. Construíram possibilidades. Geraram tendências. O conjunto dessas tendências é o objeto de Sabinos e diversos de Douglas Guimarães Leite; que amplia, com déficit de vinte anos, a senda aberta por Paulo César Souza de A Sabinada.
Em maio de 1987, Paulo César apresentava ao público sua análise sobre a referida revolta separatista baiana. Seu estudo foi logo tornado referencial indispensável à compreensão do ocorrido. Estudiosos das coisas de Bahia e Brasil oitocentistas consideraram-no obra definitiva. Isso gerou consenso acerca da impossibilidade de se ter algo novo a dizer sobre a revolta. A contribuição decisiva do estudo de Douglas Leite consiste na dessacralização desse consenso a partir do lembrete de que, em história, temas e assuntos são incomensuráveis como possibilidade analítica; porquanto, a revolta baiana de 1837-1838 merece novos exames e interpretações. Esses lembrete e recomendação conferem ao Sabinos e diversos o estatuto de abordagem inescapável aos navegantes do Oceano História política de Bahia e Brasil do oitocentos.
Cauteloso no trato de palavras e conceitos, Douglas procura efetuar interpretação política dos horizontes de expectativas e das formas de sociabilidade daqueles que assaltaram o poder na Bahia no "memorável 7 de novembro de 1837". De início, admite que isso foi uma "revolução" instrumentalizada por sabinos e diversos depositários de acúmulo político implementado desde a Independência baiana, 1822-1823. Observa que os rebeldes – ou melhor, revolucionários – envolvidos por arranjos políticos e identitários consideraram sua "revolução" a segunda e verdadeira Independência perseguida por outros meios. Essa continuidade por outros meios visava reparar fragilidades institucionais que impediam o Estado de suprimir aporias políticas que alimentavam desigualdades diversas. A pilhagem do poder foi a alternativa dos rebeldes para resolver essas questões. A manutenção desse poder, sob domínio rebelde, impunha a ampliação do espaço de atuação e consentimento revolucionários. Ou seja, exigia a aceitação da causa para além das cercanias de Salvador e a persuasão de pessoas capazes de legitimar econômica e ideologicamente o processo. essas condicionantes tiveram insucesso. Esse insucesso foi considerado razão importante do ocaso do movimento. De modo preciso, expressou o "limite da revolução". Acrescido a ele esteve a indiferença e o temor angustioso das incertezas da "revolução"; o rareamento e encarecimento de produtos de primeira necessidade, o que promovia e generalizava a fome; o "sabor do antigo" a causar desilusão; e amotinados de primeira hora – como Almeida Sande, Francisco Vicente Viana, Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva e João Gonçalves Cezimbra e outros – a debandar para Cachoeira à procura do abrigo do statu quo ante.
Além desses complicadores, Douglas indica outro, pouco observado, que é a divergência programática entre sabinos e não-sabinos; ou seja, sabinos e diversos. Esse é o ponto nodal de sua análise e de seu desacordo frontal com Paulo César.
No plano revolucionário apresentado pelos rebeldes no dia 7 de novembro, constava a seguinte determinação: "A província da Bahia fica inteira e perfeitamente desligada do governo denominado central do Rio de Janeiro". Quatro dias depois, dia 11, essa determinação sofreu reparo que propunha a necessidade de "considerar-se a Independência somente até a maioridade do Imperador o Sr. D. Pedro 2º".
Douglas sugere que esse reparo evidencia divergências no movimento. Segundo ele, os defensores do fixado no dia 7 eram liderados por Francisco Sabino e estavam imbuídos de republicanismo antimonarquista. Os outros seguiam João Carneiro da Silva e militavam pela Monarquia. Em suma, considera que o projeto dos "sabinos" era "republicanista, separatista e antimonarquista", e o dos "diversos", "federalista, unionista, nacional e imperialista".
Paulo César, acusa Douglas, não admite – ou, quiçá, não percebe – distinção nessas tendências, e por isso considera o movimento "contraditório", especialmente ao indagar "como conciliar lealdade a um monarca com fé republicana?" e propor o seu reconhecimento enquanto "república sui generis". Em contraponto, Douglas esclarece: "República é uma coisa, federação é outra". E sugere que os "sabinos" não intentaram conciliação com os "carneiros"; as pautas eram diferentes.
Seria cabotino tomar partido da polêmica de Douglas e Paulo César. Ela é mais que controvérsia analítico-interpretativa. Expressa a interlocução de duas gerações de estudos baianos mediada pela orientação de João José Reis. De todo modo, seria improcedente e penoso deixar de ponderar sobre o conjunto de algumas questões que essa interlocução, vista em perspectiva, suscita.
É inegável a contribuição de A Sabinada de Paulo César Souza. Da mesma forma, do Sabinos e diversos de Douglas Leite. Ambos desvelam aspectos expressivos da revolta e são significativos mesmo no que divergem.
A análise de Douglas procura se impor. Nalgumas vezes, consegue e desconjunta afirmações de Paulo César. Mas um e outro, ao que parece, padecem de mal comum: falta de história. Essa carência de história se deve a pelo menos dois fatores. O primeiro é a aparente ausência de respaldo analítico-interpretativo dos estudos baiano-brasileiros sobre o assunto. O segundo é o amplo desmerecimento atribuído às mudanças estruturais que inferiram nas histórias do Brasil, da Bahia e da revolta.
Paulo César e Douglas Leite não admitem de forma séria a revolta como expressão de tensões políticas, econômicas e sociais do ruidoso processo de formação e efetivação da modernidade, e modernização, que implodiu o Antigo Regime e o Antigo Sistema Colonial e orquestrou a emergência de Estados Nacionais no mundo ocidental. Esse processo, que cobriu o Ocidente de 1776 a 1848, produziu nova era. Nova forma de se pensar e praticar a política. Novos atores, espaços, condições, demandas, política. O Estado nacional brasileiro foi fruto disso. E a Bahia, enquanto porção expressiva do território e da sociedade brasílicos, atuou de forma decisiva.
Por esse pressuposto, o substantivo da revolta está para além da polêmica entorno da identificação de seu caráter "republicanista, separatista e antimonarquista" ou "federalista, unionista, nacional e imperialista". Reside na admissão de que essas concepções eram produto de campo semântico dinâmico que traduzia desejos e alternativas no interior do processo de mudança estrutural de esferas da existência que ultrapassava as fronteiras da cidade sitiada, da Província conturbada e da própria sociedade brasileira em construção. Eram reflexos centrífugos e centrípetos de acomodação e superação de crises forjadas por contradições e conflitos, revoltas e revoluções permanentes que modificavam, de forma drástica, a percepção objetiva da vida.
De forma específica e retrospectiva, o baiano, acometido pelo caráter replicante e desviante da identidade portuguesa durante o período colonial, foi se tornando brasílico ao longo do setecentos e com a implosão do mundo colonial foi instado a "ser brasileiro". Cada indivíduo, circunscrito a determinada esfera social e localização territorial na Bahia, respondeu de maneira própria a essa imposição. Com o fim do primeiro reinado e a instauração da regência em 1831, essa condição de brasileiro foi se afigurando inevitável.
Cipriano Barata, em escrito de 1831, ano terrível na Bahia, no Brasil e alhures, caracterizou com precisão essa situação ao julgar que "duas gerações há só diferente, virtude e vício; tudo mais é engano". "Virtude" era admitir a condição de cidadão brasileiro e concorrer, de forma incondicional, para a consolidação do Estado e da nação. "Vício" era reiterar práticas do antigo sistema lusitano que a manutenção da escravidão relutava em sepultar.
Em suma, o passado presente e o futuro passado estavam em substantiva negociação.
No "Plano e Fim Revolucionário" – documento encontrado na matula de Francisco Sabino quando preso no dia 22 de março de 1838, sete dias após o fim da revolta separatista baiana – constava a seguinte advertência: "Esta Província deve se por a salvo dos golpes do partido e facção aristocrática-portuguesa". Se essa premissa compunha o ideário dos revolucionários baianos de 1837, o que é quase indubitável, o elemento principal da revolta era contestar, aniquilar a estrutura de dominação do passado, o vício que se fazia presente na Bahia e obstruía a perpetuação da "virtude". A via pela qual isso iria se processar – fosse republicana, separatista, antimonarquista, federalista, unionista, nacional e imperialista – poderia até ser assunto expressivo. Mas não era o essencial. Observe-se que, quando o movimento se viu esgotado, o general Sérgio José Velloso, comandante em chefe das forças revolucionárias e responsável pela rendição do grupo, expressou isso com muita clareza ao informar que os rebeldes se entregavam para "evitar de uma vez o derramamento de sangue brasileiro". Ou seja, os rebeldes se consideravam brasileiros e virtuosos e desejavam a contemplação plena dessa sua condição que a recorrência do passado, leia-se o "partido e facção aristocrática-portuguesa", obstava concretizar.
Reconstituir a revolta baiana por um diapasão sedento de mais história, certamente, ajudará a preencher o vazio de História que acomete a sua explicação e a conferir maior inteligibilidade às histórias da Bahia e do Brasil do período.
Daniel Afonso da Silva é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. @ – daniel.afonso@usp.br
Revista Estudos Avançados - USP
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