quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Meditatio Mortis. A poesia de Joan Reventós




Meditatio Mortis. A poesia de Joan Reventós

Alfredo Bosi


A MORTE é um acontecimento irrealizável em nossa mente, pois a consciência não pode apreender o momento em que o nada vai assediá-la e (quem sabe?) suprimi-la. Foi o existencialismo agônico de Heidegger e do primeiro sartre que nos abriu os olhos para o que a palavra trágica de Pirandello já chamara o limite da "nossa involuntária jornada sobre a terra". O ser-aqui é o ser-para-a-morte.

Irrealizável no plano do entendimento abstrato, a morte pode, no entanto, ser vivida antecipadamente nas esferas do sentimento e da imaginação, que são as autênticas matrizes da poesia. Nesse universo de sentido, a morte suscita reações existenciais intensas e contraditórias: a angústia da finitude temporal ou a euforia da libertação; o temor do vácuo absoluto, de que a natureza é avessa, ou o êxtase que o arroubo místico inspira nas almas que anseiam despreender-se do cárcere do corpo.

Tânatos, como Eros, atravessa a história inteira da poesia. Está gravado nas inscrições egípcias e babilônicas com toda a sua aura solene de mistério; e perpassa o verso homérico e os coros dos trágicos gregos. Os deuses imortais divertem-se com a sorte dos seres mortais chamados homens. Tânatos será o companheiro sombrio do ascetismo monacal e penetrará na lírica trovadoresca suscitando o arrepio do perecimento da carne nas exaltações do amor cortês. As festas da Renascença e a parafernália das encenações barrocas, ao mesmo tempo que celebram a beleza da vida aqui e agora, alegorizam a voracidade da hora que passa. Tempus edax, tempo roaz. Primeiro carpe diem, depois memento mori. Colhe a flor de hoje, a rosa que dura uma só manhã, pois a tarde cairá em breve trazendo a noite sem a esperança da aurora.

Amor e Morte voltarão nas vozes românticas de Blake e Lamartine, no classicismo atemporal de Leopardi e, com força inexcedível, na imaginação de Baudelaire, primeiro grande poeta moderno.

Inexaurível como a vontade de viver, a pulsão de morte foi detectada pelo último Freud que nela reconheceu a cupio dissolvi. E o fato de essa descoberta ter sido camuflada por tantos terapeutas pávidos apenas confirma a máxima de La Rochefoucauld: "Nem o sol nem a morte podem ser olhados de frente".

Mas a poesia não se cala, pois as forças contraditórias da existência não cessam de exigir que ela lhes ceda voz e canto. Quando Leopold Rodés, o tradutor fiel dos poemas de Joan Reventós, me deu a conhecer Els àngels no saben vetllar els morts, percebi de chofre que estava diante de um dos maiores poetas da morte do século que há pouco findou. A impressão foi intensa, e não menor terá sido o pasmo de verificar que, embora nada haja de novo sob o sol, tudo se renova e se rediz quando a realidade se repropõe, implacável, a cada um de nós, indivíduos irrepetíveis que somos. O destino pessoal não será assumido por outrem. Pouco ou nada aprendemos com a morte alheia. A cada um é dado viver e morrer a própria morte na forma de constante aprendizado. "La morte si sconta vivendo" – é a palavra essencial de Ungaretti.

Joan Reventós reinventou, na poesia catalã contemporânea, o tópos da morte, o lugar-comum em que nos encontramos todos. O tema é um só: conhece-se a fatalidade, logo a monotonia universal da indesejada das gentes. Mas as modulações semânticas e poéticas são múltiplas, o que dá a este livro aparentemente monocórdio uma riqueza desconcertante de perspectivas. Pois a morte pode ser pressentida e contemplada sob diferentes ângulos, espelhos das diferentes situações com que se defrontam os mortais.

A morte é túnel que abre para o mistério; para desvendá-lo cabe esperar a hora imprevisível, aquele "fim longínquo" que tampouco se sabe se e quando virá:

"Deixai, pois, para o fim
longínquo dos seres vivos
o reencontro das pegadas
do seu passo pelo mundo".
(A inútil procura)

Em ricochete, a pergunta sobre a vida, tão enigmática quanto a sua extinção:

"Por que existe a vida ardente?"
(Uma grande incerteza)
Dialeticamente: a origem da vida pode ter-se dado "lá no buraco onde tudo some"; e aqui entramos no labirinto da ciência pós-moderna onde o acaso e o caos brincam de esconde-esconde com as leis deterministas...

A morte, além do enigma do seu serem-si, é também um evento único, cujo para-si ronda cada homem que sabe que vai morrer. Daí, o sentimento de angústia que acompanha o ser finito quando pressente a sua vida. A poesia de Reventós modula admiravelmente essa imagem da morte como ameaça, luto antecipado:

"e também a sensação de melancolia,
vasta mutação da harmonia
onde a putrefação no corpo
todo progride".
(É bom discursar sobre a morte?)
A interiorização da idéia da morte é vista como "sempre amarga e prematura".

Uma outra dimensão é a do silêncio que rodeia o instante derradeiro. Não há diálogo com a morte; por isso, o poeta a chama de Muda, nome feito de pura perplexidade:

"Nunca vou saber se a Muda
me perdoa
............................................
Reiterado estertor e, no fim,
um suspiro
empurra o ilimitado
querer sobreviver".
(Como se o morrer não existisse)
É também verdade que alguns acolhem a morte religiosamente, confiantes na "invisível eternidade". Não é a crença deste poeta formado na escola desencantada da modernidade, "ausente de Deus", ou, quando muito, na fé imanente das esperanças revolucionárias.

Há, enfim, as almas estóicas que a aceitam, "por uma decisão radical, cristalizada em serena convicção", mas essa atitude orgulhosa se arrisca a desumanizar uma experiência vital que, a rigor, se dá fora do domínio da pura razão. Mas não fora da esfera da vontade, como dizem animosamente os versos de Quisera superar o medo ("venha o que vier, será bem-vindo") e de O medo que não tenho, duas jóias da poesia de Joan Reventós.

Piedade é, a meu ver, o mais terrível poema da coletânea. o seu tema latente é a eutanásia que recusamos por escrúpulo ético e, no entanto, parece às vezes impor-se à nossa compaixão pelo ente querido pedindo alívio.


Chamo igualmente a atenção do leitor para a série A morte concreta que se volta para a morte alheia, perda intolerável e tantas vezes incompreensível quando se trata de crianças e jovens aos quais o destino ceifou antes do tempo:

"a morte dos outros me afeta:
o seu morrer, a sua morte
são partes da minha vida,
são marcos ao limite último".
A poesia de Reventós empurra-nos contra a parede última da nossa jornada; e, como tal, se situa na fronteira que ora une, ora separa a palavra poética e o sentido mesmo da existência.


Alfredo Bosi é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo. É editor da revista Estudos Avançados e membro da Academia Brasileira de Letras. @ – abosi@usp.br

Revista Estudos Avançados - USP

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