Ely Bergo de Carvalho*
DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
O livro História & Natureza, de Regina Horta Duarte, faz parte da série História &... Reflexões, da editora Autêntica. Como sugere o título, a série se propõe a apresentar discussões teórico-metodológicas de campos e canteiros da história. No caso, a obra de Regina Horta Duarte vem suprir uma demanda de reflexões sobre a relação dos historiadores com a natureza. propondo-se a ser uma introdução didática ao estado da arte, de como os historiadores abordam a natureza. Desta forma, a autora suprime as notas de rodapé, adotando um estilo leve de escrita, o que o transforma em uma leitura agradável, a ser consumida de uma única vez. A grande proeza do livro é ser "didático", sem ser superficial; não caindo em uma busca da origem dos problemas ambientais, na primeira vez que um ser humano controlou o fogo; não caindo em uma discussão teórica descarnada de contextos específicos; e, também, atentando à necessária participação dos historiadores nas questões do seu tempo, sem com isso ser panfletário.
A autora conduz, no primeiro capítulo, a forma como, na segunda metade do século XX, a questão ambiental passou de uma preocupação de alguns amantes da natureza para uma preocupação generalizada da sociedade. Situa como, nos EUA, começa a se falar em uma Environmental History, com a fundação, em 1977, de uma Sociedade Americana de História Ambiental, e bem mais recentemente, em 1999, o surgimento da Sociedade Européia de História Ambiental. Assim, os historiadores respondem aos problemas colocados pelo seu próprio tempo.
No segundo capítulo, a autora desmonta alguns mitos sobre as relações humanas com a natureza, por exemplo, aquele de ver as sociedades indígenas como parte da natureza ou, por outro lado, de ver as sociedades humanas como essencialmente destruidores da natureza.
Apresenta, ainda, estudos sobre a formação do imaginário e da sensibilidade ocidental sobre a natureza, bem como fontes e fases para esta questão no Brasil. Todavia, a autora se recusa a fazer uma história de origens. Pois, quando "procuramos uma origem para qualquer coisa, enxergamos apenas o que reafirma o nosso ponto de partida. Este, por sua vez, passa a ser apresentado como o único ponto de chegada possível".1 Ignorando, teleologicamente, o campo de possibilidades dos sujeitos.
No terceiro e último capítulo, a autora enfrenta a questão da construção social e simbólica da realidade, pois admitir tal construção implica recusar o "Homem e a Natureza" como entes universais, sem, contudo, cair no idealismo, pois a autora argumenta que as "catástrofes naturais" lembram, ainda hoje, que a natureza age, mas quem constrói os sentidos sobre a natureza são os seres humanos.
Por fim, critica autores que apontam a história ambiental como uma novidade, apontando os primeiros Annales – atentos às interações com a natureza, pois foram fortemente influenciados pela geografia de Vidal de La Blac e, no Brasil, aponta autores como: João Capistrano de Abreu, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, que abordaram as interações sociedade-natureza. Não sendo, portanto, nova a preocupação dos historiadores com a natureza. Todavia, explicita que não se deve ver nestes autores uma "origem" da atual história ambiental, pois isto seria cair em uma "busca das origens". Entretanto, depois de abordar as posições e perspectivas de vários historiadores ambientais contemporâneos, ela conclui que: "mesmo que não concordemos com a pretensão de originalidade absoluta da história ambiental", há um pioneirismo, "certamente nunca houve uma preocupação tão grande em sistematizar e estabelecer métodos de pesquisa e análise da questão, como tem sido feito nas últimas décadas."2
Mas o que distingue uma história ambiental e uma história não-ambiental? O que é exatamente história ambiental?
Donald Worster afirma que, no início do século XX, a história se restringia à "política do passado". No decorrer do século, os historiadores duvidaram que tão poucos homens ocupados com o poder do Estado poderiam ter tal controle sobre o passado e passaram a fazer de toda a sociedade objeto da história. Agora chega um novo grupo de reformadores, "os historiadores ambientais, que insistem em dizer que temos de ir ainda mais fundo, até encontrarmos a própria terra, entendida como um agente e uma presença na história."3
Assim, devem-se levar em conta estes outros "sujeitos da história", os "elementos naturais", que têm a capacidade de condicionar significativamente a sociedade. Logo, a história ambiental é aquela na qual a natureza é uma presença e um agente na história humana.
Um problema desta forma de se pensar a história ambiental é sua amplitude, pois, "mesmo se delimitarmos uma parte da totalidade e a chamarmos de ambiente, ainda assim ficaremos como a trabalheira inadministrável de tentar escrever a história de quase tudo." Para Worster, "infelizmente, não existe mais nenhuma outra alternativa diante de nós".4
A história ambiental seria uma história de tudo? Toda história seria história ambiental? A história social teve um problema semelhante, de ser tão abrangente, a ponto de perder a sua própria identidade. Se toda a história for história social, logo a história social não seria nada, pois perderia a sua capacidade de distinguir um objeto próprio. Analisando esta questão, Eric Hobsbawm afirma que: "Os aspectos sociais ou societais da essência do homem não podem ser separados dos outros aspectos de seu ser, exceto à custa da tautologia ou da extrema banalização."5
Ou seja, a história social realmente não é um campo que possa ser isolado, mas mantém seu nexo básico de constituição, enquanto "forma de abordagem que prioriza a experiência humana e os processos de diferenciação e individuação dos comportamentos e identidades coletivos – sociais – na explicação histórica."6 Como já se afirmou, é possível escrever tanto uma história social do mercado de grãos como uma história social da arte. Isso não nos traz de volta à identificação entre história social e toda a história, "porque é possível (e freqüente), hoje, uma história econômica ou uma história cultural que prescinda da vivência humana e de sua experiência socialmente diferenciada como variáveis explicativas."7
Pode-se fazer uma analogia para afirmar que os aspectos "ambientais" não podem ser separados dos outros aspectos do ser, mas isso não implica que toda a história seja ambiental, pois há um nexo básico de constituição, na história ambiental, não como campo, mas como forma de abordagem que procure compreender a interação entre as antropossociedades e os ambientes, dos quais fazem parte.8
Uma história que aborde apenas os elementos naturais independentes dos seres humanos é possível, mas não desejável. E uma abordagem apenas das antropossociedades, como se estas existissem à parte do seu ambiente, é prática comum entre os historiadores. É na interação desses elementos que se situa a história ambiental.
Mas tentar pensar a história ambiental como uma abordagem ainda é, por um lado, demasiadamente amplo, pois recobre boa parte do campo da geografia e da ecologia que hoje dominam os estudos das interações sociedade-ambiente, só acrescentando a elas, a primazia da diacronia e possíveis contribuições metodológicas da matriz disciplinar da história; e, por outro lado, é demasiado restrito, pois, em especial nos estudos sobre as "idéias de natureza", não necessariamente a interação com o ambiente tem um papel importante nas explicações, o que jogaria tais trabalhos para fora da abordagem de história ambiental.9
Desta forma, é compreensível que no primeiro Simpósio de História Ambiental Americano (Latina), realizado em 2003 em Santiago no Chile, os especialistas na área apenas tenham conseguido concordar que a História Ambiental é uma arena acadêmica, na qual há uma convergência de preocupações ambientais, ou seja, de pesquisadores que "olham" a história a partir destas preocupações. E que, no Segundo Simpósio, realizado em 2004, em Cuba, apesar de alguns quererem definir em termos teórico-metodológicos a história ambiental, tal proposta tenha sido recusada para a criação da Sociedade Latino-americana e Caribenha de História Ambiental (Solcha), a qual se constituiu como um grupo de pesquisadores de diversas áreas acadêmicas, que buscam "olhar" a história a partir destas preocupações presentes. Não se trata evidentemente de buscar as origens dos problemas ambientais atuais, mas de formular problemas de pesquisas informados por tais preocupações.
Assim, pode-se entender a não formulação de uma definição rigorosa de história ambiental por parte de Duarte.
Enrique Leff, por sua vez, propõe que a história ambiental pode ser definida justamente em termos de formulação do problema de pesquisa, vinculado-o à emergência contemporânea da "complexidade ambiental". Para Leff, deve-se superar a concepção que dominou certa história ambiental, que ele prefere chamar de "história ecológica", na qual se percebe o ser humano apenas como um agente destruidor. Nesta perspectiva não se consegue entender a complexidade ambiental "como um processo enraizado em formas de racionalidade e de identidade cultural que, como princípios de organização social, definem as relações de toda sociedade com a natureza".10
Para Leff a história ambiental, também, deverá "transcender os paradigmas transdisciplinares que colonizaram o campo das relações sociedade-natureza – a geografia, a ecologia – para abordar as inter-relações da complexidade ambiental, interrogando o tempo humano desde diferentes racionalidades culturais".11 Tais paradigmas, por um lado, ficaram demasiado presos à idéia de equilíbrio dos ecossistemas, subestimando a dinâmica dos ecossistemas, tributários de um modelo de ciência a-histórico. Mas não apenas se faz necessário inserir a "flecha do tempo" na natureza, para usar e expressão de Ilya Prigogine, não se trata apenas de produzir modelos diacrônicos e dinâmicos de interação. A ecologia, por exemplo, na busca de legitimidade científica, buscou construir modelos matemáticos que parecem explicar mais os ecossistemas naturais, todavia não contribuíram muito para se entender a relação com as sociedades humanas e, em sua sanha "objetificante", impede a criação de uma dimensão reflexiva, que permita às ciências se perceberem dentro de relações de poder.12 Para Leff, entender a complexidade ambiental é superar o paradigma "matematizante-objetificante-cartesiano" de ciência, passando a entendê-la como parte da produção cultural de uma sociedade, estabelecendo um diálogo entre as diferentes racionalidades que informam as inter-relações dos diferentes grupos sociais com o ambiente. Por tudo isso, a história ambiental levaria à "necessidade de repensar o tempo para construir uma história do ser".13
Para Leff, o amplo campo "das relações sociedade-natureza" sofreria um recorte epistemológico para estabelecer o "campo próprio da história ambiental", que se dá na construção de um novo conceito, o de ambiente como algo complexo, ou seja: "A irrupção da crise ambiental abre uma nova visão do processo histórico. Por isso, a história ambiental é um campo disciplinar que se inaugura com a construção social do conceito de ambiente."14 Deste ponto surge um novo "olhar" sobre o passado e o futuro, a partir do qual se construiria uma história ambiental.
Pensar a história ambiental de tal forma é pensá-la como algo que vai além das fronteiras da disciplina História, e que vai além dos limites da ciência tradicional.
Tal desafio, que Leff faz aos "historiadores ambientais", revela a grande lacuna do livro de Regina Duarte, que apenas constata que a "interdisciplinaridade – ou seja, o encontro de várias áreas do conhecimento – é uma das maiores tônicas da autodenominada história ambiental",15 mas não apresenta uma reflexão sobre a interdisciplinaridade, ou ainda, sobre a posição da história ambiental na redefinição atual do próprio quadro da ciência, ou seja, no processo de transição paradigmática por que, talvez, se esteja passando.16 Até porque muitos dos trabalhos de "historiadores ambientais", em termos internacionais, são elaborados por pessoas que não são historiadores de ofício. A autora passa ao largo disso, para efetuar uma reflexão de historiadora e para historiadores, o que é o maior mérito e, talvez, a maior lacuna da obra.
Todavia, para todo aquele que se pretenda introduzir no debate sobre história ambiental no Brasil, o livro de Regina H. Duarte é uma leitura obrigatória.
A autora, entretanto, tem uma visão extremamente otimista a respeito da corporação dos historiadores, quando afirma que os historiadores "mostram-se afinados ao seu tempo e sensíveis ao diálogo com os seus contemporâneos".17 Nos anos 60, foram os cientistas naturais os primeiros a procurar construir modelos de inter-relação sociedade-natureza, quando perceberam que apenas as variáveis naturais eram insuficientes para dar conta dos problemas ambientais, que então afloravam na preocupação pública. Na verdade, as ciências sociais, como um todo, chegaram tarde ao debate sobre os problemas ambientais.18 Os "pais" das ciências sociais, Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, se voltaram contra seus predecessores, como Augusto Comte e Herbert Spencer, para quem a Sociologia deveria estar ontológica e epistemologicamente dependente da Biologia; opuseram-se, assim como Durkheim, ao afirmar que "o fato social explica o fato social", não chegando a desconsiderar a relação entre seres humanos e ambientes em suas teorias sociais, mas relegando-a a um segundo plano.19 Foi a partir da década de 1970 que sociólogos e antropólogos se voltaram mais seriamente para as questões suscitadas pela questão ambiental contemporânea e construíram um corpo de reflexões teórico-metodológicas que buscavam dar conta destas novas questões. A criação de uma Environmental History nos Estados Unidos se enquadra neste esforço, mas somente muito recentemente começou um debate mais sistemático fora dos EUA, por exemplo, uma Sociedade Latino-americana e Caribenha de História Ambiental foi constituída em 2006, no III Simpósio Latino-americano e Caribenho de História Ambiental, e mesmo nos Estados Unidos a história ambiental é um grupo secundário da historiografia. No Brasil, na década de 1980, houve raros historiadores que buscaram fazer uma reflexão sobre as inter-relações entre sociedades humanas e a natureza. Na década de 1990 surgiram vários trabalhos esparsos pelo Brasil, que de forma crescente e variada abordam tal conjuntos de questões. Mas foi somente no XXIII Simpósio Nacional de História (da ANPUH), de 2005, que se conseguiu promover um simpósio, ou melhor, foram dois simpósios, sobre tal temática, resultado deste acúmulo de trabalhos nos últimos anos dos historiadores que, só muito tardiamente, com uns 30 anos de atraso, buscam dar uma resposta à questão ambiental contemporânea.20 Deve-se, portanto, considerar que os atuais debates da questão ambiental pelos historiadores são respostas bastante tardias da "corporação" às demandas da época atual.
Entretanto, tal discordância só reforça a importância da obra de Duarte para ampliar a reflexão entre os historiadores a respeito da historicidade das relações humanas com a natureza.
* Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. UFSC. Florianópolis – Santa Catarina – Brasil. E-mail: elycarvalho@zipmail.com.br (Bolsista CNPq).
1 DUARTE, R. H. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 72.
2 DUARTE, op. cit., p. 102
3 WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 198-215, 1991. p. 198-199 grifo meu.
4 Ibid., p. 214.
5 HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 87.
6 CASTRO, H. História Social. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.). Domínios da história: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus: 1997, pp. 45-59. p. 54.
7 Ibid., p. 54.
8 CARVALHO, E. B. de. História ambiental: muitas dúvidas, poucas certezas e um desafio epistemológico. Semana de Iniciação Científica, Campo Mourão, n. 2, pp. 165-181, 2001. pp. 170-171.
9 Ibid.
10 LEFF, E. Construindo a História Ambiental da América Latina. Esboços, Florianópolis, n. 1, v. 13, pp. 11-30, 2005.
11 Ibid., p.14.
12 DELÉAGE, J. História da ecologia: uma ciência do homem e da natureza. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p. 13.
13 LEFF, op. cit., p. 14.
14 Ibid., p. 14.
15 DUARTE, op. cit., p. 14
16 CARVALHO, op. cit.; LEFF, op. cit.
17 DUARTE, op. cit., p. 88
18 DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 177-197, 1991.
19 GOLDBLATT, D. Teoria Social e Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
20 Veja os dossiês em revista de história no Brasil que abordam tal temática: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 177-197, 1991. Projeto História, São Paulo, n. 23, nov. 2001. Varia História, Belo Horizonte, n. 26, jan. 2002 e n. 33, jan. 2005. Esboços, Florianópolis, v. 13, 2005.
Revista Historia - UNESP
DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
O livro História & Natureza, de Regina Horta Duarte, faz parte da série História &... Reflexões, da editora Autêntica. Como sugere o título, a série se propõe a apresentar discussões teórico-metodológicas de campos e canteiros da história. No caso, a obra de Regina Horta Duarte vem suprir uma demanda de reflexões sobre a relação dos historiadores com a natureza. propondo-se a ser uma introdução didática ao estado da arte, de como os historiadores abordam a natureza. Desta forma, a autora suprime as notas de rodapé, adotando um estilo leve de escrita, o que o transforma em uma leitura agradável, a ser consumida de uma única vez. A grande proeza do livro é ser "didático", sem ser superficial; não caindo em uma busca da origem dos problemas ambientais, na primeira vez que um ser humano controlou o fogo; não caindo em uma discussão teórica descarnada de contextos específicos; e, também, atentando à necessária participação dos historiadores nas questões do seu tempo, sem com isso ser panfletário.
A autora conduz, no primeiro capítulo, a forma como, na segunda metade do século XX, a questão ambiental passou de uma preocupação de alguns amantes da natureza para uma preocupação generalizada da sociedade. Situa como, nos EUA, começa a se falar em uma Environmental History, com a fundação, em 1977, de uma Sociedade Americana de História Ambiental, e bem mais recentemente, em 1999, o surgimento da Sociedade Européia de História Ambiental. Assim, os historiadores respondem aos problemas colocados pelo seu próprio tempo.
No segundo capítulo, a autora desmonta alguns mitos sobre as relações humanas com a natureza, por exemplo, aquele de ver as sociedades indígenas como parte da natureza ou, por outro lado, de ver as sociedades humanas como essencialmente destruidores da natureza.
Apresenta, ainda, estudos sobre a formação do imaginário e da sensibilidade ocidental sobre a natureza, bem como fontes e fases para esta questão no Brasil. Todavia, a autora se recusa a fazer uma história de origens. Pois, quando "procuramos uma origem para qualquer coisa, enxergamos apenas o que reafirma o nosso ponto de partida. Este, por sua vez, passa a ser apresentado como o único ponto de chegada possível".1 Ignorando, teleologicamente, o campo de possibilidades dos sujeitos.
No terceiro e último capítulo, a autora enfrenta a questão da construção social e simbólica da realidade, pois admitir tal construção implica recusar o "Homem e a Natureza" como entes universais, sem, contudo, cair no idealismo, pois a autora argumenta que as "catástrofes naturais" lembram, ainda hoje, que a natureza age, mas quem constrói os sentidos sobre a natureza são os seres humanos.
Por fim, critica autores que apontam a história ambiental como uma novidade, apontando os primeiros Annales – atentos às interações com a natureza, pois foram fortemente influenciados pela geografia de Vidal de La Blac e, no Brasil, aponta autores como: João Capistrano de Abreu, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, que abordaram as interações sociedade-natureza. Não sendo, portanto, nova a preocupação dos historiadores com a natureza. Todavia, explicita que não se deve ver nestes autores uma "origem" da atual história ambiental, pois isto seria cair em uma "busca das origens". Entretanto, depois de abordar as posições e perspectivas de vários historiadores ambientais contemporâneos, ela conclui que: "mesmo que não concordemos com a pretensão de originalidade absoluta da história ambiental", há um pioneirismo, "certamente nunca houve uma preocupação tão grande em sistematizar e estabelecer métodos de pesquisa e análise da questão, como tem sido feito nas últimas décadas."2
Mas o que distingue uma história ambiental e uma história não-ambiental? O que é exatamente história ambiental?
Donald Worster afirma que, no início do século XX, a história se restringia à "política do passado". No decorrer do século, os historiadores duvidaram que tão poucos homens ocupados com o poder do Estado poderiam ter tal controle sobre o passado e passaram a fazer de toda a sociedade objeto da história. Agora chega um novo grupo de reformadores, "os historiadores ambientais, que insistem em dizer que temos de ir ainda mais fundo, até encontrarmos a própria terra, entendida como um agente e uma presença na história."3
Assim, devem-se levar em conta estes outros "sujeitos da história", os "elementos naturais", que têm a capacidade de condicionar significativamente a sociedade. Logo, a história ambiental é aquela na qual a natureza é uma presença e um agente na história humana.
Um problema desta forma de se pensar a história ambiental é sua amplitude, pois, "mesmo se delimitarmos uma parte da totalidade e a chamarmos de ambiente, ainda assim ficaremos como a trabalheira inadministrável de tentar escrever a história de quase tudo." Para Worster, "infelizmente, não existe mais nenhuma outra alternativa diante de nós".4
A história ambiental seria uma história de tudo? Toda história seria história ambiental? A história social teve um problema semelhante, de ser tão abrangente, a ponto de perder a sua própria identidade. Se toda a história for história social, logo a história social não seria nada, pois perderia a sua capacidade de distinguir um objeto próprio. Analisando esta questão, Eric Hobsbawm afirma que: "Os aspectos sociais ou societais da essência do homem não podem ser separados dos outros aspectos de seu ser, exceto à custa da tautologia ou da extrema banalização."5
Ou seja, a história social realmente não é um campo que possa ser isolado, mas mantém seu nexo básico de constituição, enquanto "forma de abordagem que prioriza a experiência humana e os processos de diferenciação e individuação dos comportamentos e identidades coletivos – sociais – na explicação histórica."6 Como já se afirmou, é possível escrever tanto uma história social do mercado de grãos como uma história social da arte. Isso não nos traz de volta à identificação entre história social e toda a história, "porque é possível (e freqüente), hoje, uma história econômica ou uma história cultural que prescinda da vivência humana e de sua experiência socialmente diferenciada como variáveis explicativas."7
Pode-se fazer uma analogia para afirmar que os aspectos "ambientais" não podem ser separados dos outros aspectos do ser, mas isso não implica que toda a história seja ambiental, pois há um nexo básico de constituição, na história ambiental, não como campo, mas como forma de abordagem que procure compreender a interação entre as antropossociedades e os ambientes, dos quais fazem parte.8
Uma história que aborde apenas os elementos naturais independentes dos seres humanos é possível, mas não desejável. E uma abordagem apenas das antropossociedades, como se estas existissem à parte do seu ambiente, é prática comum entre os historiadores. É na interação desses elementos que se situa a história ambiental.
Mas tentar pensar a história ambiental como uma abordagem ainda é, por um lado, demasiadamente amplo, pois recobre boa parte do campo da geografia e da ecologia que hoje dominam os estudos das interações sociedade-ambiente, só acrescentando a elas, a primazia da diacronia e possíveis contribuições metodológicas da matriz disciplinar da história; e, por outro lado, é demasiado restrito, pois, em especial nos estudos sobre as "idéias de natureza", não necessariamente a interação com o ambiente tem um papel importante nas explicações, o que jogaria tais trabalhos para fora da abordagem de história ambiental.9
Desta forma, é compreensível que no primeiro Simpósio de História Ambiental Americano (Latina), realizado em 2003 em Santiago no Chile, os especialistas na área apenas tenham conseguido concordar que a História Ambiental é uma arena acadêmica, na qual há uma convergência de preocupações ambientais, ou seja, de pesquisadores que "olham" a história a partir destas preocupações. E que, no Segundo Simpósio, realizado em 2004, em Cuba, apesar de alguns quererem definir em termos teórico-metodológicos a história ambiental, tal proposta tenha sido recusada para a criação da Sociedade Latino-americana e Caribenha de História Ambiental (Solcha), a qual se constituiu como um grupo de pesquisadores de diversas áreas acadêmicas, que buscam "olhar" a história a partir destas preocupações presentes. Não se trata evidentemente de buscar as origens dos problemas ambientais atuais, mas de formular problemas de pesquisas informados por tais preocupações.
Assim, pode-se entender a não formulação de uma definição rigorosa de história ambiental por parte de Duarte.
Enrique Leff, por sua vez, propõe que a história ambiental pode ser definida justamente em termos de formulação do problema de pesquisa, vinculado-o à emergência contemporânea da "complexidade ambiental". Para Leff, deve-se superar a concepção que dominou certa história ambiental, que ele prefere chamar de "história ecológica", na qual se percebe o ser humano apenas como um agente destruidor. Nesta perspectiva não se consegue entender a complexidade ambiental "como um processo enraizado em formas de racionalidade e de identidade cultural que, como princípios de organização social, definem as relações de toda sociedade com a natureza".10
Para Leff a história ambiental, também, deverá "transcender os paradigmas transdisciplinares que colonizaram o campo das relações sociedade-natureza – a geografia, a ecologia – para abordar as inter-relações da complexidade ambiental, interrogando o tempo humano desde diferentes racionalidades culturais".11 Tais paradigmas, por um lado, ficaram demasiado presos à idéia de equilíbrio dos ecossistemas, subestimando a dinâmica dos ecossistemas, tributários de um modelo de ciência a-histórico. Mas não apenas se faz necessário inserir a "flecha do tempo" na natureza, para usar e expressão de Ilya Prigogine, não se trata apenas de produzir modelos diacrônicos e dinâmicos de interação. A ecologia, por exemplo, na busca de legitimidade científica, buscou construir modelos matemáticos que parecem explicar mais os ecossistemas naturais, todavia não contribuíram muito para se entender a relação com as sociedades humanas e, em sua sanha "objetificante", impede a criação de uma dimensão reflexiva, que permita às ciências se perceberem dentro de relações de poder.12 Para Leff, entender a complexidade ambiental é superar o paradigma "matematizante-objetificante-cartesiano" de ciência, passando a entendê-la como parte da produção cultural de uma sociedade, estabelecendo um diálogo entre as diferentes racionalidades que informam as inter-relações dos diferentes grupos sociais com o ambiente. Por tudo isso, a história ambiental levaria à "necessidade de repensar o tempo para construir uma história do ser".13
Para Leff, o amplo campo "das relações sociedade-natureza" sofreria um recorte epistemológico para estabelecer o "campo próprio da história ambiental", que se dá na construção de um novo conceito, o de ambiente como algo complexo, ou seja: "A irrupção da crise ambiental abre uma nova visão do processo histórico. Por isso, a história ambiental é um campo disciplinar que se inaugura com a construção social do conceito de ambiente."14 Deste ponto surge um novo "olhar" sobre o passado e o futuro, a partir do qual se construiria uma história ambiental.
Pensar a história ambiental de tal forma é pensá-la como algo que vai além das fronteiras da disciplina História, e que vai além dos limites da ciência tradicional.
Tal desafio, que Leff faz aos "historiadores ambientais", revela a grande lacuna do livro de Regina Duarte, que apenas constata que a "interdisciplinaridade – ou seja, o encontro de várias áreas do conhecimento – é uma das maiores tônicas da autodenominada história ambiental",15 mas não apresenta uma reflexão sobre a interdisciplinaridade, ou ainda, sobre a posição da história ambiental na redefinição atual do próprio quadro da ciência, ou seja, no processo de transição paradigmática por que, talvez, se esteja passando.16 Até porque muitos dos trabalhos de "historiadores ambientais", em termos internacionais, são elaborados por pessoas que não são historiadores de ofício. A autora passa ao largo disso, para efetuar uma reflexão de historiadora e para historiadores, o que é o maior mérito e, talvez, a maior lacuna da obra.
Todavia, para todo aquele que se pretenda introduzir no debate sobre história ambiental no Brasil, o livro de Regina H. Duarte é uma leitura obrigatória.
A autora, entretanto, tem uma visão extremamente otimista a respeito da corporação dos historiadores, quando afirma que os historiadores "mostram-se afinados ao seu tempo e sensíveis ao diálogo com os seus contemporâneos".17 Nos anos 60, foram os cientistas naturais os primeiros a procurar construir modelos de inter-relação sociedade-natureza, quando perceberam que apenas as variáveis naturais eram insuficientes para dar conta dos problemas ambientais, que então afloravam na preocupação pública. Na verdade, as ciências sociais, como um todo, chegaram tarde ao debate sobre os problemas ambientais.18 Os "pais" das ciências sociais, Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, se voltaram contra seus predecessores, como Augusto Comte e Herbert Spencer, para quem a Sociologia deveria estar ontológica e epistemologicamente dependente da Biologia; opuseram-se, assim como Durkheim, ao afirmar que "o fato social explica o fato social", não chegando a desconsiderar a relação entre seres humanos e ambientes em suas teorias sociais, mas relegando-a a um segundo plano.19 Foi a partir da década de 1970 que sociólogos e antropólogos se voltaram mais seriamente para as questões suscitadas pela questão ambiental contemporânea e construíram um corpo de reflexões teórico-metodológicas que buscavam dar conta destas novas questões. A criação de uma Environmental History nos Estados Unidos se enquadra neste esforço, mas somente muito recentemente começou um debate mais sistemático fora dos EUA, por exemplo, uma Sociedade Latino-americana e Caribenha de História Ambiental foi constituída em 2006, no III Simpósio Latino-americano e Caribenho de História Ambiental, e mesmo nos Estados Unidos a história ambiental é um grupo secundário da historiografia. No Brasil, na década de 1980, houve raros historiadores que buscaram fazer uma reflexão sobre as inter-relações entre sociedades humanas e a natureza. Na década de 1990 surgiram vários trabalhos esparsos pelo Brasil, que de forma crescente e variada abordam tal conjuntos de questões. Mas foi somente no XXIII Simpósio Nacional de História (da ANPUH), de 2005, que se conseguiu promover um simpósio, ou melhor, foram dois simpósios, sobre tal temática, resultado deste acúmulo de trabalhos nos últimos anos dos historiadores que, só muito tardiamente, com uns 30 anos de atraso, buscam dar uma resposta à questão ambiental contemporânea.20 Deve-se, portanto, considerar que os atuais debates da questão ambiental pelos historiadores são respostas bastante tardias da "corporação" às demandas da época atual.
Entretanto, tal discordância só reforça a importância da obra de Duarte para ampliar a reflexão entre os historiadores a respeito da historicidade das relações humanas com a natureza.
* Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. UFSC. Florianópolis – Santa Catarina – Brasil. E-mail: elycarvalho@zipmail.com.br (Bolsista CNPq).
1 DUARTE, R. H. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 72.
2 DUARTE, op. cit., p. 102
3 WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 198-215, 1991. p. 198-199 grifo meu.
4 Ibid., p. 214.
5 HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 87.
6 CASTRO, H. História Social. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.). Domínios da história: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus: 1997, pp. 45-59. p. 54.
7 Ibid., p. 54.
8 CARVALHO, E. B. de. História ambiental: muitas dúvidas, poucas certezas e um desafio epistemológico. Semana de Iniciação Científica, Campo Mourão, n. 2, pp. 165-181, 2001. pp. 170-171.
9 Ibid.
10 LEFF, E. Construindo a História Ambiental da América Latina. Esboços, Florianópolis, n. 1, v. 13, pp. 11-30, 2005.
11 Ibid., p.14.
12 DELÉAGE, J. História da ecologia: uma ciência do homem e da natureza. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p. 13.
13 LEFF, op. cit., p. 14.
14 Ibid., p. 14.
15 DUARTE, op. cit., p. 14
16 CARVALHO, op. cit.; LEFF, op. cit.
17 DUARTE, op. cit., p. 88
18 DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 177-197, 1991.
19 GOLDBLATT, D. Teoria Social e Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
20 Veja os dossiês em revista de história no Brasil que abordam tal temática: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 177-197, 1991. Projeto História, São Paulo, n. 23, nov. 2001. Varia História, Belo Horizonte, n. 26, jan. 2002 e n. 33, jan. 2005. Esboços, Florianópolis, v. 13, 2005.
Revista Historia - UNESP
Nenhum comentário:
Postar um comentário