Resenha do livro “Kissinger e o Brasil”, de Matias Spektor, por Thiago Gehre Galvão
05/11/2009
A trama desenvolvida por Matias Spektor em “Kissinger e o Brasil” encapsula um importante episódio das relações bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos e narra como Henry Kissinger tornou-se um ponto focal para a diplomacia brasileira na consecução do projeto de Brasil Potência. Jovem intelectual da nova geração de historiadores das relações internacionais brasileiros, Matias Spektor coordena o Centro de Estudos sobre Relações Internacionais do CPDOC/FGV e vive intensamente a realidade da pesquisa arquivística no Brasil. No livro, o argumento central é que o Brasil construiu seu caminho no sistema internacional, procurando impor seus próprios termos e desígnios nacionais às relações com os outros países. Perante os EUA procurou exercer um papel protagônico em três sentidos: a) afastou-se de uma postura de rivalidade ou de submissão; b) buscou estabelecer-se como um dos alicerces da ordem global; e c) evitou seguir inadvertidamente os preceitos do “gigante do norte”.
O objetivo da obra é traçar a evolução da aproximação entre os governos de Washington e Brasília sob os comandos diplomáticos de Henry Kissinger e Azeredo da Silveira durante a década de 1970. Portanto, não se trata de uma biografia sobre um Homem de Estado, mas um estudo histórico das idéias de mandatários como Geisel e Nixon, mas principalmente Silveira e Kissinger, que impactaram diretamente nas relações entre o Brasil e os Estados Unidos.
Para tanto, o autor divide o livro em oito capítulos que cuidam da evolução da parceria Brasil-EUA: do tubo de ensaio, de Kissinger, de trazer o Brasil para o foco da política externa estadunidense, até alcançar o estranhamento com a chegada ao poder de Jimmy Carter. Assim, o recorte temporal vai da ascensão de Kissinger como Assessor de Segurança Nacional em 1969 até a sua substituição por Cyrus Vance em 1977 e o desmonte da parceria por Ronald Reagan, já nos anos 80 do século 20.
O primeiro capítulo, “Kissinger e seu experimento”, detalha a fórmula estabelecida por Henry Kissinger para modificar o panorama estático das relações brasileiro-estadunidense. O conceito principal seria o da “delegação”, ou seja, a cessão de responsabilidades a grandes atores regionais. Nesse caso, Spektor mostra que, ao procurar dar maior consistência conceitual e filosófica à política externa norte-americana, Kissinger abriu espaço para que países como Brasil, China, Indonésia e África do Sul ganhassem peso relativo nas relações com os EUA. Logo, o objetivo era livrar os EUA do estigma de imperialismo colonialista e criar um espírito de afinidade que legitimasse a atuação global do país.
No capítulo 2, “Washington, 1971”, delineia-se o perfil da parceria com a visita de Geisel à capital norte-americana em 7 de dezembro do referido ano. A preparação da viagem foi turbulenta, pois incluía as desconfianças brasileiras com a ideia da delegação como um neocolonialismo. Além disso, havia uma tensão mal resolvida entre ativismo e retração no comportamento internacional do Brasil, que refletia o racha entre o Palácio do Planalto e o Itamaraty. Logo, isso se traduziria em maneiras divergentes de se conceber a parceria. Como afirma Spektor, “do ponto de vista americano, a aproximação ao Brasil seria conscientemente intangível e, de certa maneira, etérea” (p.50). De qualquer forma, dado o primeiro passo, alcançou-se uma agregação de valor para ambos os países nas relações internacionais com um mecanismo de baixa institucionalidade que dependia do vínculo pessoal entre os decisores.
A continuidade do processo de aproximação é relatada, então, pela ótica de “O experimento de Silveira”, tema do terceiro capítulo. A gestão de Antônio Francisco Azeredo da Silveira é tida como a de maior ativismo do país, quando “as ambições internacionais do Brasil cresceram mais que [em] qualquer período anterior” (p.63). Silveira entrou em sintonia com o presidente Geisel na gestação de um novo modelo estratégico que preconizava a busca por novas parcerias e uma revisão, mesmo que “morna”, das relações com a Argentina e com os EUA.
Além disso, Silveira tinha como alvo a busca de “pequenos espaços de ‘autonomia’ nas margens do Ocidente liberal”, conseguindo externamente os insumos para o projeto de desenvolvimento nacional. Logo, procurou atualizar conceitualmente a política externa brasileira para lidar com o crescimento econômico e com a influência internacional do país. Spektor afirma que o problema não estava no sistema internacional, “mas em casa: os conceitos estratégicos do Brasil haviam ficado arcaicos” (p.75).
O capítulo 4, “Quebrando o molde” exalta a atração e compatibilidade entre Silveira e Kissinger e a sua resultante: a substituição do princípio da delegação por um engajamento mais construtivo em termos de um “relacionamento especial não alinhado”. Isso porque o mundo nos anos 1970 testemunhou a ascensão das potências periféricas e a crise das potências tradicionais, um fenômeno que movimentaria, nas palavras do autor, “as placas tectônicas da política internacional” (p.90). Na pauta bilateral questões comerciais, crise energética mundial, proliferação nuclear, inserção no continente africano pós-independências e a presença cubana no norte da América do Sul. O Brasil esforçou-se em unir desconfianças, falta de entusiasmo e ansiedade pelo reconhecimento do status de potência. Já os EUA mantiveram o diálogo aberto enquanto continham a vontade universalista do Brasil. Por exemplo, Spektor lembra uma curiosa anedota, na qual Kissinger interveio junto a Silveira para trazer Pelé para o New York Cosmos, equipe da liga de soccer dos EUA, indicando esse ato como um ganho para a parceria Brasil-EUA.
A intensidade das relações Brasil-EUA contrasta com o breve período de diálogo entre Kissinger e Silveira. Assim, o capítulo 5, “Crise e retomada”, é sintomático da onda criadora da parceria que avança em meio à crise energética da década de 1970; à decisão de Geisel de apoiar os árabes contra o governo de Israel; ao envolvimento do Brasil na independência de Angola. Nesses três eventos o grau da resiliência norte-americana foi testado por Silveira até o ponto ideal de se propor a formalização da parceria. Consequentemente, o Brasil preferiu militar em nenhum lado na questão do petróleo, assumindo um distanciamento pragmático; optou primeiro pela abstenção e depois pela condenação da votação da resolução que colocava o sionismo como uma forma de racismo e discriminação; e se retraiu quando a identidade cultural, que sustentava a presença brasileira em Angola, contrastou com a grande estratégia dos EUA de combate ao comunismo.
Silveira aproveitou-se das minicrises para catalisar um projeto mais consistente. “A parceria formalizada” é, então, tema do sexto capítulo, no qual Spektor descreve a segunda viagem de Kissinger ao Brasil e seus desdobramentos para as relações Brasil-EUA. O desafio brasileiro era montar uma parceria flexível que promovesse um espírito de proximidade entre os dois países, mas que não amarasse o país a compromissos conjuntos e que garantisse a Geisel controle sobre o processo de abertura política. O gesto mais importante seria o Memorando de Entendimento que deveria ser “simples e vago”, permitindo “liberdade máxima de manobra para cada lado” (p.140). Logo, a qualidade da parceria seria testada em um imbróglio diplomático sobre a independência do Timor Leste; em um suposto, mas não comprovado, plano de invasão brasileiro da Guiana; e na tensa relação entre Washington e Santiago. Em todos eles, o Memorando garantiu canais abertos para tratá-los de forma específica e à luz dos interesses comuns.
Os avanços foram surpreendidos pelo medo brasileiro de gerar e depois frustrar expectativas norte-americanas, para Spektor, um dos principais empecilhos para a parceria (p.148). O “Estranhamento”, tema do sétimo capítulo, enuncia a reviravolta que a chegada de Jimmy Carter produziu nas relações entre Washington e Brasília. O desconforto causado pelo sistemático desrespeito aos direitos humanos e o temor gerado pelo acordo nuclear entre Brasil e Alemanha acirraram os ânimos. Nesse contexto, o Memorando era a única defesa disponível, um escudo contra o revisionismo do governo Carter.
O livro se encerra em “Epílogo: Legados”. Com a chegada ao poder de Ronald Reagan, Kissinger sai de cena e Silveira assume a embaixada brasileira em Washington. A estratégia brasileira passa a ser do distanciamento consciente diante da impossibilidade do diálogo e do avanço neoliberal. Mesmo assim, conclui Spektor, o Brasil catapultou sua posição da hierarquia internacional de um agente anticomunista a um polo de poder internacional, garantindo a autonomia do país no contexto de avassaladora assimetria em relação à Washington.
Matias Spektor contribui de três formas principais com seu livro. Primeiro, disserta de forma clara e objetiva, o que torna a leitura agradável e palatável para aqueles que não são da área de Relações Internacionais. Segundo, revela novos e marcantes acontecimentos, derivados da abertura de arquivos e do acesso às fontes inéditas nacionais e estrangeiras, adensando o conjunto do conhecimento da História das Relações Internacionais do Brasil. Em terceiro, dialoga de maneira parcimoniosa com a teoria das relações internacionais, diluindo-a na narrativa a ponto de torná-la imperceptível ao olhar dos leigos. Por exemplo, quando interpreta os memorandos enviados por Silveira da embaixada do Brasil em Buenos Aires à luz do conceito realista de bandwagon. Assim, países relativamente mais fracos (caso da Argentina naquele momento) “não tentariam resistir ao mais forte [caso do Brasil na América do Sul]; iriam a reboque dele” (p.66).
Não obstante, valoriza, excessivamente, o voluntarismo do Homem de Estado em promover mudanças no mundo. Lembra Spektor que “a política internacional não é predestinada. Havendo ideias e líderes dispostos a arriscar, as visões existentes podem ser ajustadas ou trocadas por outras melhores” (p. 16). Assim, cabe um questionamento: Kissinger teria feito do Brasil seu laboratório particular para experiências com potências regionais ou Azeredo da Silveira teria descoberto em Kissinger a cura para o mal da “potência invisível”? Em ambos os casos, o Brasil e sua circunstância, a vizinhança sul-americana, pesaram sobre o voluntarismo dos decisores.
SPEKTOR, Matias. Kissinger e o Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 234p. ISBN: 978-85-378-0156-7.
Thiago Gehre Galvão é Professor de História das Relações Internacionais do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (thiago.gehre@gmail.com).
Meridiano 47
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