Elite da tropa
Cristina Neme; Viviane Cubas
AINDA QUE sob a forma de narrativas fictícias apresentadas pelo personagem de um policial, Elite da tropa é resultado de uma combinação das experiências de seus autores na corporação policial e na gestão da segurança pública. O livro tem a autoria do antropólogo Luiz Eduardo Soares, que atuou na gestão da segurança pública como coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do governo do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000, e como secretário nacional de Segurança Pública em 2003; de André Batista e Rodrigo Pimentel que, durante os anos 1990, integraram o Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope).
Elite da tropa apresenta um panorama sombrio da segurança pública no Rio de Janeiro, explicitando que as "políticas" de segurança não prescindem da violência policial no trato da criminalidade, que a corrupção está profundamente arraigada nas instituições e que existe uma forte relação entre violência e corrupção.
Dividido em duas partes, o livro se inicia com um conjunto de 22 episódios nos quais se sobressai o padrão violento de atuação policial nas áreas pobres do Rio de Janeiro, para em seguida detalhar a estreita relação entre o poder público e o crime organizado, sustentada por uma rede de corrupção que envolve figuras políticas de diferentes níveis, empresários, policiais e traficantes. Embora limitado literariamente, Elite da tropa procura esclarecer por meio da ficção como se articulam os principais elementos que contribuem para a manutenção do quadro caótico da segurança pública no Rio de Janeiro.
Na primeira parte, denominada "Diário de guerra", são narrados variados episódios de incursões policiais, sobretudo do Bope, nos morros cariocas. Nessas incursões, destaca-se a violência policial como padrão de atuação no combate à criminalidade – violência policial aqui entendida como o uso arbitrário, truculento e ilegal da força pelos agentes policiais. Se, para aqueles que dedicam uma leitura mais atenta aos noticiários policiais, esses casos não constituem novidade, para quem está alheio à realidade da relação entre polícia e população pobre o livro traz uma forte denúncia.
Assim denominado em 1991, o Bope foi criado em 1978, após ganhar força a idéia de que a polícia militar necessitava de um grupo especial para atuar em situações de crise (sobretudo depois de 1974, quando o diretor de um presídio rebelado foi morto após a invasão do prédio pela polícia [www.policiamilitar.rj.gov.br/bope]). Entre as suas missões estão o combate ao crime organizado, a captura de delinqüentes fortemente armados, o resgate de reféns e a contenção de rebeliões, entre outras operações de alto risco. Para tanto, os policiais recebem uma formação diferenciada, voltada para operações de guerra urbana, que inclui um processo severo de seleção e treinamento. No livro, o Bope é considerado uma tropa de elite que se distingue dos demais integrantes da corporação policial militar e da polícia civil em razão de sua alta qualificação técnica e de sua resistência à corrupção, ao menos no período em que o grupo congregava no máximo 150 homens. O orgulho profissional e pessoal de pertencer a um grupo de elite funcionaria como um elemento inibidor da corrupção, apresentada como um problema generalizado na "polícia convencional"; porém, com o aumento do número de seus integrantes, o grupo não resistiria a essa prática.
O Bope é apresentado como uma força de guerra treinada para atuar na segurança pública, uma tropa de guerra urbana destinada a intervir em territórios onde o trabalho policial de investigação e prevenção, pautado pela normalidade democrática, praticamente não existe. Se, por um lado, a cultura organizacional do Bope condenava a corrupção e cultivava o sentimento de honestidade entre os seus integrantes, por outro, valorizava o recurso à violência como meio de atuação policial. O polêmico grito de guerra apresentado no prefácio dá a tônica das ações do grupo cuja missão seria "invadir favela e deixar corpo no chão [...] espalhando a violência, a morte e o terror [...] somos apenas selvagens cães de guerra".
O resultado dessa lógica é explicitado no conjunto de casos cujo enredo se repete: policiais sobem o morro e promovem o extermínio de seus opositores, os delinqüentes, normalmente denominados "vagabundos" ou "marginais". Além de valorizadas, a ponto de serem consideradas legítimas aos olhos dos policiais, essas ações truculentas, arbitrárias e ilegais praticamente não encontram a barreira dos mecanismos institucionais, internos ou externos, que deveriam detê-las e permanecem impunes. Esse padrão de atuação violenta não afeta apenas os chamados bandidos: a vitimização de policiais é alta e "inocentes" também são atingidos, como crianças vítimas de balas perdidas ou testemunhas da ação policial que são eliminadas. Porém, diante da missão de exterminar "bandidos", as demais vítimas aparecem como danos colaterais, para usar uma expressão atual. Na grande maioria dos casos, o perfil das vítimas segue o mesmo padrão indicado pelas pesquisas de vitimização e freqüentemente denunciado por organizações de direitos humanos: são majoritariamente homens, jovens, negros, moradores das favelas. Os poucos casos em que vítimas do sexo feminino não escapam aos abusos policiais vêm confirmar a regra.
A violência policial relatada compreende desde "pequenas" crueldades e espancamentos até tortura e execução sumária de supostos delinqüentes, e não raramente é orientada pelo racismo. A tortura é empregada recorrentemente como castigo ao infrator ou como método de trabalho policial: nesse caso, trata-se de infligir sofrimento ao outro por meio de técnicas com objetivo de obter confissões. E para tanto, os policiais contam com a autorização de seus superiores e a conivência dos pares, até mesmo da corregedoria.
São raros os momentos em que o narrador demonstra ambigüidade ao tratar de temas tão espinhosos como tortura e execuções de pessoas. Mas, assim como na guerra, o uso desmedido da força é validado por meio da desumanização do inimigo, invariavelmente um "marginal" que "deve" ser eliminado. A capacidade de o indivíduo julgar e se contrapor à lógica em uso da corporação parece não resistir aos primeiros tempos da carreira: acostuma-se.
Ao mesmo tempo, a forma como a ação policial é conduzida durante as incursões não permite desfechos não violentos. Por um lado, o objetivo de enfrentar e eliminar o inimigo resulta em altíssima letalidade; por outro, quanto mais os policiais se expõem em abordagens que colocam em risco sua integridade física, mais eles recorrem a meios violentos para sua própria proteção, aumentando o risco de tiros acidentais que vitimam pares. Os "inimigos", por sua vez, cientes de que não há opção de rendição, reagem na mesma proporção. Prevalece a lógica do extermínio e da vingança: no cotidiano de homicídios no Rio de Janeiro, a ação policial é equiparada a uma vingança contra a morte de civis e de policiais provocada por criminosos durante assaltos e perseguições. Interessante é o claro reconhecimento de que essa política de extermínio provocou o aumento da violência contra os policiais, visto que ao delinqüente sem possibilidade de rendição restou a reação armada, e de que os ataques promovidos contra a corporação policial também são reflexo da vingança que os policiais praticam às vezes contra uma favela inteira.
Ao contrário da primeira parte do livro, a segunda parte narra uma única história, ou uma história única, focada no uso político das polícias em um intricado jogo de interesses. O envolvimento de políticos e dos comandos das forças policiais com as atividades ilícitas faz que o mundo público e o privado se confundam de tal maneira que a leitura acaba demandando um esforço maior, dada a estranheza das situações relatadas.
Em "Dois anos depois: a cidade beija a lona", ultrapassa-se o cenário das incursões nos morros, predominante na primeira parte, em que os personagens são basicamente policiais e "bandidos". Novos personagens entram em cena nesse relato sobre uma rede de corrupção e violência que envolve autoridades públicas, políticos, policiais, empresários e criminosos que não freqüentam os circuitos das favelas, além dos cidadãos comuns que acabam involuntariamente envolvidos na trama.
O episódio começa com o resgate de um traficante por policiais, a mando do delegado chefe da polícia civil do Rio de Janeiro. O objetivo da ação não era prendê-lo, mas obrigá-lo a retomar suas atividades no tráfico de drogas da Rocinha, onde os negócios eram altamente rentáveis por não envolver o trabalho de crianças ou conflitos violentos e, assim, não atrair a atenção das autoridades. O dinheiro arrecadado com o tráfico seria usado pelo delegado para saldar suas dívidas de campanha a deputado estadual. Entre os personagens da primeira parte do livro que reaparecem nessa história, está Santiago, um policial militar íntegro ao entrar na polícia, que se corrompeu quando passou a trabalhar na capital. Participa de esquemas de extorsão, usa da violência e abusa de sua prerrogativa de policial para praticar atividades ilegais.
Para retomar o comando dos negócios e afastar os agentes do Bope que ocupavam a Rocinha, policiais que participavam do conluio realizam um seqüestro, provocam guerras e conflitos em outros morros da cidade. Também grampeiam linhas telefônicas e fazem dossiês que ficam guardados e funcionam como "cartas na manga" tanto para chantagear quanto para derrubar pessoas que ocupam postos de comando. O grupo atua na tentativa de criar um problema em outro morro para desviar a atenção das autoridades e conseguir a transferência dos homens do Bope, até então incorruptíveis, para outro lugar. No entanto, nem tudo ocorre conforme o planejando. Isso acaba desencadeando uma série de acontecimentos que, vistos pelo cidadão comum, se caracterizam como casos isolados, sem nenhuma relação. Por exemplo, o chefe do tráfico manda promover um quebra-quebra com ataques e ônibus incendiados, o presídio onde esse traficante está preso passa por uma rebelião, pessoas são assassinadas, da noite para o dia surgem escândalos envolvendo pessoas públicas. O que aparentemente se apresenta como mais um problema pontual no cotidiano violento de uma grande cidade trata-se, na verdade, de uma reação ou resposta às movimentações que ocorrem nos bastidores das polícias e da política, dentro de esquemas de corrupção e poder. Somente aqueles que participam direta ou indiretamente dos esquemas conseguem conectar os fatos e, às vezes, até mesmo essas pessoas não têm muita clareza sobre os acontecimentos, pois os propósitos dos envolvidos nunca são facilmente apreendidos e a confiança não é um bem durável nessas relações.
Pode-se dizer que o grande mérito desse trabalho é o fato de a denúncia, dessa vez, ter partido de policiais que participaram ativamente do cotidiano da segurança pública em uma grande cidade. E mais ainda, de enfatizar que a corrupção é um problema generalizado, envolve altos escalões e não está restrita aos praças e policiais que operam nas ruas. Se, por um lado, os policiais de baixo escalão se envolvem em ilegalidades cotidianas, por outro, à medida que sobem na hierarquia policial, mais complexas, organizadas e rentáveis se tornam as associações criminosas. Denúncias como essa, até então feitas por órgãos externos, tais como organizações de defesa dos direitos humanos, jornalistas ou acadêmicos, ganham outra dimensão quando seus próprios atores vêm a público expor o que as "políticas públicas" impõem aos agentes da segurança e à população.
O livro dá os detalhes de uma realidade espinhosa: a ilegalidade é fonte de lucro para os policiais envolvidos, juntamente com outros atores, em redes de corrupção com origem em negócios de transporte clandestino, serviços de segurança privada, jogos eletrônicos, jogo do bicho e transações com traficantes. Explicita a relação entre corrupção e violência: essa é uma moeda corrente, empregada por policiais e traficantes quando acordos relacionados a extorsões e venda de armas são rompidos, e que atinge não só a população dos morros, mas também desce para o asfalto. Por fim, revela a fragilidade institucional, visto que, se a polícia é tão forte para empregar a violência contra as populações pobres, é incapaz de resistir ao uso político da instituição pelos governos ou a pressões políticas que visam gerar benefícios pessoais a autoridades. E, principalmente, aponta para a funcionalidade da inexistência de uma política pública efetiva na área da segurança, para que interesses outros de diferentes escalões do poder sejam protegidos.
O que se pratica, por meio das forças policiais, é uma contenção dos conflitos mediante a repressão ilegítima. O grau da repressão adotada varia de acordo com a intensidade dos conflitos entre as facções rivais dos morros ou conforme os interesses escusos de políticos e empresários.
As ações voltadas para o combate ao tráfico de drogas nos morros cariocas provam que o trabalho da polícia se resume em eliminar pessoas e abrir vagas para os mais novos ascenderem na carreira do tráfico. Como a mão-de-obra disponível é enorme, cria-se o ciclo em que a polícia mata e novos indivíduos assumem os postos, mesmo conscientes de que não terão longevidade. Isso não é combate ao crime organizado, é matança generalizada. Combater o narcotráfico exige a intervenção na forte e complexa rede de corrupção que agrega autoridades políticas, instituições em suas altas hierarquias e criminosos que vivem no asfalto, inseridos no circuito econômico "legal" e freqüentando as colunas sociais. Enquanto esses mantêm os seus negócios, policiais aterrorizam a população e se beneficiam da corrupção, seja no atacado seja no varejo, e a (des)ordem social é mantida no seu lugar. O cidadão comum, que muitas vezes tem seu cotidiano alterado em razão das ondas de violência, não conhece as verdadeiras razões das crises e os principais fatores da insegurança pública que acometem grandes cidades como o Rio de Janeiro.
Se o contexto exige uma demonstração de força mais incisiva por parte do governo na área da segurança, é a polícia que exerce esse papel e sobre ela é que recaem tanto a pressão para um resultado "eficiente" quanto a responsabilidade por ações desastrosas. Se o resultado político da ação policial é positivo, a violência empregada é facilmente justificada, alegando-se a proporcionalidade no uso da força e a inevitabilidade das mortes. Todavia, essa violência não se aplica de forma homogênea à população, visto que as vítimas preferenciais são pobres e negras, "prováveis" traficantes; à elite branca, que alimenta o tráfico de entorpecentes, o tratamento dispensado é completamente diferente.
Outro aspecto que se sobressai são os diferentes propósitos da truculência da polícia que ora funciona como procedimento de "limpeza social" para eliminar os bandidos, ora funciona como meio de resolução de disputas entre quadrilhas que têm policiais entre os seus integrantes. Entre as mortes causadas pela polícia, diariamente publicadas nos jornais, fica difícil identificar o que realmente é resultado de um confronto inevitável daquilo que é resultado de disputas que não atendem aos interesses civis democráticos. Tal "política de segurança" delineia um perfil violento às ações policiais, facilita a corrupção entre seus agentes, não pune o mau profissional e oferece ao bom policial no mínimo a opção de conivência. Qual é o resultado dessa lógica? A violência policial empregada nos morros, em princípio considerada eficiente, não rompe com a dinâmica do crime organizado cuja centralidade passa longe das favelas.
Assustador é o fato de que o livro não remete apenas à situação da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. O caos na gestão dos recursos materiais e humanos no sistema de segurança e justiça criminal e a tênue fronteira entre o mundo da legalidade e da ilegalidade parecem ser a regra e não a exceção no contexto brasileiro.
O desejo dos três autores é de que um dia a reconciliação entre a sociedade e polícia, que tem sua imagem e credibilidade tão desgastadas atualmente, seja possível. Para que esse processo se inicie, consideram necessário, primeiramente, encarar a verdade e reconhecê-la, sem hipocrisia, mesmo que seja pela mediação da ficção. No entanto, ir além da ficção e reconhecer essa verdade no nível institucional e social em busca de mudanças é o que parece ser o mais complicado, visto que o custo político e mesmo pessoal pode ser altíssimo. Os poucos que tentam se aventurar nessa direção são eliminados, derrubados ou desmoralizados. Enquanto isso, o cidadão comum figura como mero espectador prostrado diante dos eventos.
Cristina Neme é mestre em Ciência Política e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência NEV/USP. @ – crisneme@usp.br
Viviane Cubas é mestre em Sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência NEV/USP. @ – vocubas@usp.br
Revista Estudos Avançados - USP
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