terça-feira, 3 de novembro de 2009

Imagens do poder em Sêneca: estudo sobre o De Clementia


Fábio Duarte Joly

Professor adjunto de História Antiga e Medieval no Centro de Artes, Humanidades e Letras, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: joly@uol.com.br

VIZENTIN, Marilena. Imagens do poder em Sêneca: estudo sobre o De Clementia. Cotia, SP: Ateliê Editorial/Fapesp, 2005.

Produto de dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, em 2001, o livro de Marilena Vizentin aborda o tratado sobre a clemência, escrito pelo filósofo Sêneca no século I d.C.

Sêneca escreveu outros tratados – sobre o ócio, a brevidade da vida, a sabedoria, a providência, a ira e até mesmo sobre as relações de reciprocidade –, mas talvez nenhum outro tratado tenha recebido tanta atenção quanto seu De Clementia. Endereçado ao imperador Nero, esse tratado é considerado a peça mais explicitamente política que a pena de Sêneca produziu. Temos assim um documento ímpar para o estudo do Principado, como desenvolvido sob os Júlio-Cláudios, isto é, no momento de montagem e afirmação do sistema imperial.

O primeiro mérito do livro é propor uma abordagem histórica, e não meramente filosófica e literária, do De Clementia. Isso significa que a autora teve que se defrontar com a difícil questão da inter-relação entre a conjuntura de sua produção e os objetivos da obra. De forma original, Marilena Vizentin se pergunta se tais objetivos transcendiam a própria época de Nero, permitindo supor que Sêneca teria de fato composto uma "teoria geral do Estado", entendida "como um modelo de governo mais abrangente, passível de apreensão em diferentes contextos históricos" (p. 29), uma teoria "a ser apreendida por governantes de diferentes épocas" (p. 30). Para demonstrar essa tese a autora dividiu seu texto em três partes.

No primeiro capítulo, "O De Clementia e sua teoria de poder", o escrito de Sêneca é situado no contexto mais amplo do Principado e naquele mais específico do governo de Nero (54-68). Ao lançar as bases do Principado, Augusto construiu um modelo de exercício do poder imperial que pautou o governo dos imperadores subseqüentes e, por conseguinte, serviu de parâmetro para as reflexões sobre a natureza desse poder. É o caso do De Clementia, em que Sêneca recorrentemente remete a Augusto como referência para delinear as características de que se deveria revestir o poder de Nero. É nesse capítulo que a autora inicia o desenvolvimento de sua tese. Analisando com minúcia os relatos de Tácito, Suetônio e Dião Cássio acerca do Principado neroniano, bem como as legendas das emissões monetárias sob Nero, Marilena Vizentin conclui "não haver elementos suficientes que comprovem a prática da orientação política proposta por Sêneca no De Clementia" (p. 77). Nesse ponto, a autora distancia-se de parte considerável da historiografia que insiste em procurar a influência de Sêneca em todos os aspectos do governo de Nero, como se este estivesse em contínua tutela do filósofo.

O segundo capítulo, intitulado "Questões gerais sobre o De Clementia", apresenta um balanço historiográfico das obras que se detiveram nesse tratado. Tarefa nada fácil, visto que desde o século XIX estudiosos europeus dedicam-se a perscrutar questões de interesse, como datação e estrutura de composição. Tais aspectos ainda são alvos de contendas. Tanto a data precisa de escrita como a própria ordenação dos manuscritos restantes não são consensuais. Quanto ao gênero, a autora concorda com a adequação do De Clementia ao modelo dos "espelhos de príncipes", gênero que deita suas raízes no período de formação das monarquias helenísticas, contexto que igualmente explica as bases filosóficas do tratado, uma vez que o estoicismo antigo – como exemplificado, por exemplo, em Zenão – enfatizava muito mais as virtudes ideais do governante do que especificamente a cidade-Estado como forma de organização política. Dentre tais virtudes, a escolhida por Sêneca é a clemência (clementia), cujas definições e mecanismos de exercício são analisados pela autora, que aponta a sua estreita relação com o conceito de justiça. Uma virtude que

dirigir-se-ia então não apenas a um grupo genérico de indivíduos (todo o povo romano ou, em última instância, a toda população do Império), porém mais especificamente àqueles que, estando próximos da esfera do Imperador, pudessem oferecer algum tipo de ameaça ao poder imperial, representando o elemento de manifestação da clementia principesca numa instância mais circunscrita. (p.131)

Logo, a clemência visaria sobretudo àqueles pretendentes ao trono que colocariam em risco mais imediato a posição do imperador.

O terceiro e último capítulo, "Estrutura do De Clementia", como o título indica, é essencialmente de caráter formal. A autora examina, em detalhe, o plano da argumentação de Sêneca, os exemplos históricos e míticos citados, a ordenação temática da obra e, por fim, o que chama de "contradições, lapsos e omissões" do tratado. Entre as omissões, Marilena Vizentin enfatiza que Sêneca

ao esboçar sua teoria de governo, não se refere a qualquer tipo de instituição humana sobre a qual estaria fundado o poder do príncipe. Assim, não se encontram quaisquer referências ao Senado – com quem dividiria o governo do Estado e do qual emanaria seu poder –, ao Exército – como meio de legitimação de sua soberania –, ou mesmo à esfera da administração pública do Império. (p.200)

Em suma, tratar-se-ia de um poder sem quaisquer fundamentos humanos.

É sobre tal conclusão que gostaria agora de tecer algumas considerações. A autora usa indistintamente "teoria geral do Estado", "teoria do poder" e "teoria de governo" para descrever a linha de força do De Clementia. Mas tais termos não são equivalentes. O fato de Sêneca não se deter nas instituições formais de governo da Roma imperial – o que ocorre não só nesse tratado, mas em sua obra como um todo – revela que sua preocupação é fixar mais um modelo de poder do que de Estado. Uma teoria geral do Estado significa principalmente uma análise da ordenação jurídica estatal e não "um modelo de governo mais abrangente, passível de apreensão em diferentes contextos históricos" (p.29). Por esse motivo, penso ser mais adequado referir-se a uma teoria do poder imperial, termo que, aliás, acaba por predominar no livro de Marilena Vizentin.

Enfim, Imagens do poder em Sêneca revela-se um estudo profundo, sério e competente sobre essa importante obra de Sêneca, que tanto tem atraído os olhares de vários pesquisadores brasileiros.

Revista História - Unesp

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