sábado, 28 de novembro de 2009

O canibalismo como invenção colonial


Giovana Acácia Tempesta
Doutoranda do Departamento de Antropologia – UnB


Obeyesekere, G. Cannibal Talk: the man-eating myth and human sacrifice in the South Seas, Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 2005, 320 pp.



O canibalismo como invenção colonial

Cannibal Talk: the man-eating myth and human sacrifice in the South Seas é uma coletânea de artigos escritos pelo antropólogo G. Obeyesekere, que retoma de modo polêmico o tema clássico do canibalismo, baseado em fontes escritas sobre a Polinésia deixadas pelos colonizadores britânicos dos séculos XVIII e XIX. Nesta resenha, diante da repetição dos temas centrais nos vários artigos do livro, optei por recuperar as idéias mestras da obra sem respeitar a seqüência linear dos capítulos.

O livro de Obeyesekere filia-se a uma certa tendência da antropologia contemporânea de crítica às origens coloniais da disciplina. Em Cannibal Talk, essa tendência aparece combinada ao estilo dos "estudos subalternos", que na última década se fizeram presentes em várias áreas das humanidades e se caracterizam pela defesa da politização do conhecimento.

Obeyesekere recorre à psicanálise para examinar as crueldades de que os seres humanos são capazes quando envolvidos em relações assimétricas de poder, porque acredita que a antropologia não oferece um instrumental adequado para pensar tais relações. Nesse sentido, o autor não focaliza propriamente o canibalismo entre os polinésios, como o título do livro poderia sugerir, mas sim os relatos sobre canibalismo escritos pelos exploradores com o intuito de subjugar os polinésios. O cerne da proposta de Obeyesekere consiste em demonstrar que o tópico do canibalismo existe apenas no interior de um discurso sobre selvageria e civilização, e que historicamente ele foi utilizado para justificar a dominação de povos nativos. O canibalismo seria, pois, uma forma de classificar a alteridade com efeitos políticos claros. Assim, imagens de barbárie, selvageria, irracionalidade, inumanidade estariam associadas à "cena canibal", compondo uma fronteira simbólica, ética e política que permite ao "eu" dominador manter-se a distância e afirmar que canibais são os "outros".

O tema de fundo de Cannibal Talk é, pois, a maneira como o Ocidente relaciona-se com outras culturas e as representa. Sua premissa é a impossibilidade de empregar relatos de viajantes como dados etnográficos para se compreender o fenômeno do canibalismo. Claramente, o alvo principal do argumento de Obeyesekere é Sahlins e, assim, Cannibal Talk dá continuidade à polêmica relativa às fontes documentais sobre a Polinésia, iniciada com The Apotheosis of Captain Cook: European Mythmaking in the Pacific (Obeyesekere, 1992) e alimentada com a réplica de Sahlins, Como pensam os nativos (1995). Sumariamente, o canibalismo de que trata Obeyesekere é o elemento central da imagem poderosa que um povo elabora sobre outro que deseja submeter. O objeto de seu livro consiste, portanto, nas práticas discursivas ocidentais que atribuem ao nativo dos "Mares do Sul" propensões ao canibalismo, o "discurso canibal" referindo-se, no caso, ao discurso britânico sobre a prática da antropofagia entre os nativos sul-asiáticos (Obeyesekere, 2005, p. 43). Significativamente, os povos polinésios (Maori, haitianos, fijianos, taitianos) são retratados nos textos dos britânicos sobretudo como canibais, sendo essa a associação simbólica que Obeyesekere pretende desconstruir, com o auxílio dos assim chamados "teóricos da suspeita" – Ricoeur, Derrida, Nietzsche, Foucault e Freud (id., p. 266).

Em princípio, os diversos artigos reunidos no livro têm o mérito de nos convidar a ponderar o impacto da conquista sobre culturas nativas e a refletir sobre o emprego de categorias em antropologia, levando-nos a pensar criticamente a própria narrativa antropológica. É digno de nota que Obeyesekere retoma o valioso ensinamento dos historiadores de acordo com o qual se deve desconfiar das fontes pesquisadas e levar em conta a intencionalidade e os objetivos políticos concretos de seus autores. Dessa forma, os longos trechos dos diários dos exploradores e de outros documentos transcritos por Obeyesekere dão a clara medida das intenções dos exploradores europeus em abrir novos mercados e das dos missionários em salvaguardar seu direito de catequizar os "infiéis" das terras distantes.

Mas o autor concentra-se sobretudo em demonstrar que aquelas descrições são impregnadas da fantasia de que "o Outro irá me comer", associada ao horror do esquartejamento, fortemente presente no imaginário europeu do século XVIII. Obeyesekere insiste em ressaltar, em todos os artigos, a ausência de testemunho ocular de uma refeição canibal nos relatos dos colonizadores britânicos. Desse modo, no capítulo 1, "Antropologia e o mito do devorador de homens", o autor argumenta que a descoberta da América forneceu a demonstração empírica para as fantasias que compõem estruturas de longa duração do imaginário europeu, como os "maravilhosos canibais com cabeça de cachorro e caudas" famosos na Idade Média (p. 9), fantasias estas que alimentariam os "mitemas" – "temas míticos circulando num campo de ansiedades, angústias e compulsões" –, o campo dos encontros coloniais (id.).

De acordo com o autor, o canibalismo entre os nativos sul-asiáticos deriva das tensões psicológicas vividas em situações de contato violento: "a raiva pode produzir uma reação canibal, mas a reação canibal não é prova de que essas pessoas eram canibais" (p. 17). Observa-se que Obeyesekere desconsidera o papel mediador da cultura na modelação de sentimentos como a raiva. Obeyesekere define cultura como mundos de significados dinâmicos mediados pela consciência, objeto de disputa constante (p. 78). O ponto a destacar é que esse conceito é submetido a várias guinadas psicanalíticas e não se articula satisfatoriamente à análise política das relações coloniais que Obeyesekere parecia desejar empreender.

Tanto assim que no capítulo 8, "Sobre esquartejamento, canibalismo e discursos de selvagismo", Obeyesekere fala numa "monstruosidade psíquica" comum a toda a humanidade que aflora em situações de ansiedade e medo (p. 250). Assim, "aqueles que vêem o mundo através de lentes paranóicas falham ao distinguir entre perigos reais e imaginários porque, para eles, perigos imaginários são reais" (p. 252). Para o autor, a importância política desse tipo de confusão mental reside em que ele tem relações intrínsecas com o "ódio aos indígenas" ("Indian hating") e, conseqüentemente, serve para justificar práticas de dominação.

Obeyesekere propõe assim que o conjunto de práticas antropofágicas rotineiras, banais e indiscriminadas relatadas nos diários de navegantes e missionários europeus seria um componente fundamental do "selvagismo", conceito central no livro, que evoca o Orientalismo de E. Said (p. 1) e remete ao campo discursivo estruturado a partir do contraponto dialético com a idéia de civilização. Como bem aponta Obeyesekere, "provar" que os nativos do sul da Ásia eram bárbaros canibais contribuía para justificar sua colonização, escravização, catequização e mesmo assassínio. Nesse sentido, é possível pensar o texto dos viajantes em si como arma da conquista, uma espécie de dispositivo simbólico para delimitar a alteridade com eficácia prática.

Obeyesekere esforça-se, então, em desconstruir as próprias evidências de canibalismo na Polinésia. O autor demonstra que mesmo as descrições supostamente testemunhais de banquetes canibais, como a oferecida pelo capitão Peter Dillon sobre as ilhas Fiji, em 1813 (p. 199 e ss.), não se fundamentam de fato no testemunho ocular de práticas antropofágicas, mas na ficcionalização de eventos violentos, a imaginação dos conquistadores preenchendo as lacunas na descrição do que não pôde ser observado in situ. Assim concebidas como produto da imaginação colonial, tais histórias resvalam para o campo da subjetividade e ficam despojadas de conteúdo etnográfico e do aspecto político. Reduzidas a invenções de personalidades atípicas, as narrativas sobre canibalismo perdem momentaneamente o caráter de conseqüência de relações de poder assimétricas para se tornarem alvo de uma análise psicanalítica apressada.

Desse modo, no capítulo 7, "Narrativas do eu: as aventuras canibais do cavalheiro Peter Dillon em Fiji", ficamos sabendo que o capitão Peter Dillon, uma personalidade "megalomaníaca, autoritária, narcisista e imaginativa", elaborava narrativas de auto-engrandecimento, repletas de fantasias e exageros, em que o encadeamento dos eventos favorecia as performances gloriosas dos britânicos. Claramente, Obeyesekere opõe-se com energia à perspectiva etnocêntrica de exotização das práticas antropofágicas polinésias, pois sabe que tradicionalmente elas foram usadas como prova de inferioridade natural dos povos indígenas. De modo irônico, utiliza excertos de obras clássicas, como o Don Juan de Lord Byron ou a Ilíada de Homero, para sugerir a existência (absurda a nossos olhos) de canibalismo entre os ocidentais, reposicionando o espelho em direção ao "Ocidente" para refletir a imagem que os subalternos fazem dos dominadores. Afinal, Obeyesekere, um cingalês, identifica-se com os polinésios "dominados" e deixa transparecer no texto o desejo de reabilitar a imagem desse povo, arranhada pelas atribuições de canibalismo desregrado, sinônimo de selvageria. Em certo ponto (p. 189), o autor chega mesmo a suplantar os relatos dos viajantes com sua experiência de "nativo" para examinar o suposto costume fijiano de pendurar partes de corpos humanos em árvores.

É certo que Obeyesekere não nega explicitamente a existência de práticas antropofágicas entre os polinésios, mas sublinha que, anteriormente à chegada dos europeus, elas se restringiam a cerimônias sacrificiais, situações rituais altamente regradas, cercadas de diversos tabus e presenciadas apenas pelos membros de uma "comunidade de substância". No capítulo 3, "Sobre a violência. Uma viagem retrospectiva à antropofagia Maori", Obeyesekere lança a hipótese de que o canibalismo maori consistiu numa resposta desse povo ao contato com os britânicos. De outro ângulo, porém, cabe a pergunta: pode-se, então, negar a existência de práticas canibais entre os polinésios com base na ausência de observação direta, por um europeu, de tais práticas? Atribuir tal poder de legitimação da realidade aos britânicos não seria o mesmo que endossar o imperialismo intelectual que Obeyesekere tanto condena?

Na Polinésia, a antropofagia, há muito praticada por marinheiros europeus em situações de naufrágio, foi reclassificada como canibalismo, passando a condensar os espectros fantásticos da monstruosidade, e os povos nativos sul-asiáticos passaram a ser concebidos pelos europeus como a encarnação da selvageria, sendo encerrados numa categoria atemporal e despojados de sua complexidade cultural (p. 14). A monstruosidade aliou-se ao bizarro, ao perverso, ao bestial, o que contribuiu para a animalização simbólica desses povos. Detentores de uma "imaginação paranóica", os colonizadores viam nas práticas havaianas a atualização de seus temores (p. 29).

Dessa forma – eis um ponto positivo a destacar –, "a prática Maori se perde no discurso britânico que fala de antropofagia indiscriminada resultando num banquete canibal" (p. 107). Efeito da imaginação paranóica que estruturou os jogos de linguagem coloniais, o canibalismo na Polinésia banalizou-se, e as evidências etnográficas deixaram de ser necessárias para a reprodução do discurso canibal em textos literários e acadêmicos.

Assim situados no limiar da humanidade, os povos nativos do sul da Ásia puderam ser justificadamente colonizados. O problema aqui é que a articulação entre subjetividade, simbolismo e relações de poder nunca se realiza plenamente. Em que pese o componente psicológico do "ódio aos indígenas", a análise de seu aspecto político deixa a desejar. Obeyesekere não nos diz nada, por exemplo, sobre a existência de instituições coloniais encarregadas da administração dos territórios, que possivelmente desenvolveriam uma retórica própria para justificar a colonização.

No capítulo 5, "O destino final das cabeças: canibalismo, decapitação e capitalismo", Obeyesekere declara que os Maori foram "catapultados" no sistema capitalista por meio do engajamento no tráfico de cabeças decoradas. Ao trocar cabeças por armas de fogo e outras mercadorias, os Maori estariam vivenciando o esgotamento da ordem sacrificial tradicional. Dessa forma, a "nova guerra" não respeitaria códigos de conduta, sanções sociais ou hierarquia de poder, e seria muito mais letal, produzindo grandes estoques de cadáveres a serem canibalizados – um ciclo vicioso que teria levado à antropofagia generalizada factual. Ainda assim, a antropofagia contra europeus no início do século XIX, uma novidade para os Maori, seria praticada apenas como vingança (motivada psicologicamente) contra os desmandos dos conquistadores.

Obeyesekere atribui esse processo de "comodificação do corpo Maori" (p. 129) ao desejo nativo de adquirir poder para subjugar grupos rivais – mas a essa altura o autor já fala do surgimento de um novo tipo de chefe, ambicioso e violento, distinto do chefe "tradicional". É certo que as alianças com europeus e o escambo envolvendo cabeças, bens manufaturados e escravos alteraram profundamente as relações intertribais e a composição da chefatura. Entretanto, é temerária a hipótese de que os Maori teriam sido seduzidos pelos "poderes fálicos das armas de fogo" e pelas "potencialidades econômicas do capitalismo florescente" – qualidades que, de outro modo, parecem ter impulsionado os empreendimentos britânicos (p. 126). Nesse ponto, torna-se flagrante a dificuldade que Obeyesekere encontra em pensar os polinésios, e também os britânicos, como sujeitos políticos.

Tal interpretação, como outras análogas que aparecem ao longo do livro, indica que Obeyesekere crê na determinação da psique humana sobre a ação social. Para ele, o encontro entre povos em situações desiguais de poder gera sempre angústia e medo e, assim, as ações e reações são determinadas psicologicamente. Dessa forma, o autor nega o papel ativo, culturalmente fundamentado, dos polinésios na apropriação das novidades estrangeiras. O modo superficial como o autor se vale do aporte psicanalítico e de conceitos como trauma, angústias, projeção do ego, imaginação paranóica etc. não permite que ele estabeleça a articulação necessária com a atividade simbólica e, assim, a especificidade do contexto pesquisado dissipa-se. Ao fim e ao cabo, é com lentes etnocêntricas (e é sempre bom lembrar que o etnocentrismo não é apanágio dos ocidentais, dos quais Obeyesekere tanto deseja afastar-se) que o autor examina as fontes escritas sobre os polinésios, recusando-se a dialogar com elas.

O que resta, pois, é uma denúncia da hecatombe cultural que os europeus provocaram nessa região, a título de discurso politicamente engajado. Porém, se tal denúncia tem o poder de provocar no leitor uma reação de indignação, não deixa, por outro lado, de produzir um retrato da conquista com contornos maniqueístas e reducionistas, em que os polinésios surgem como vítimas impotentes diante de uma força que os compele a abandonar ou a intensificar automaticamente certas práticas culturais, como a antropofagia. Dessa forma, Obeyesekere acaba por negligenciar a capacidade de resistência, engajamento voluntário ou apropriação criativa dos povos sul-asiáticos.

Sem dúvida, o contato desestabiliza esquemas tradicionais, mas povos nativos sobreviventes não se cansam de dar mostras de vitalidade e incessante reelaboração cultural. As insuficiências de Cannibal Talk ensinam que, tão grave quanto encaixar povos nativos num estereótipo de selvageria, é postular sua vitimização. Pois, entre afirmar que esses povos foram subjugados ou que se renderam, há uma grande diferença, com implicações teóricas, políticas e éticas que a antropologia não deve se furtar a analisar.

Revista de Antropologia - USP

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