Johnni Langer
Pós-doutorando em História Medieval pela USP. São Paulo – São Paulo, Brasil. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br (bolsista da FAPESP)
GRUZINSKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019). São Paulo: Companhia. das Letras, 2006
Uma das maiores dificuldades no trabalho do historiador é referente ao modo de analisar ou utilizar fontes visuais. Isso ocorre tanto pelo legado de uma tradição historiográfica que privilegiava somente os documentos escritos, quanto pela escassa quantidade de publicações teóricas ou estudos de caso que possam servir como escopo teórico e metodológico aos pesquisadores. A recente publicação de A guerra das imagens do historiador francês Serge Gruzinski,1 em parte, vem sanar essa lacuna em nosso país.
Logo em sua introdução, o autor dispõe a principal estrutura analítica em que o livro foi construído. Desvinculando-se de uma produção acadêmica voltada para considerações restritivas sobre história da arte e semiótica, as mais comuns em se tratando de estudos históricos,2 Gruzinski deixa de lado as teorias sobre conteúdo e forma do objeto visual (tradicionalmente advindo das artes plásticas), preocupando-se antes com a recepção dos objetos materiais (as intervenções, os papéis) na sociedade européia e latino-americana, especialmente durante os séculos XVII ao XVIII.
As imagens religiosas constituem o objeto da pesquisa. Em um primeiro momento, a partir de 1492 com Cristóvão Colombo, elas constituem os materiais de devoção dos ameríndios – os cemíes –, que recebem as primeiras representações européias, de caráter equivocado e ditadas pelo etnocentrismo. Logo após os primeiros contatos, temos o que o autor considera como uma "domesticação das imagens", onde os objetos indígenas perdem a estranheza inicial e penetram no universo cultural do Velho Mundo. Neste momento, Gruzinski vai além de algumas pesquisa que analisaram o fenômeno de contato entre o mundo indígena e o espanhol, especialmente pelo choque do viés econômico e social,3 preocupando-se muito mais com uma dinâmica cultural que percebe as diversas transformações que ambos os lados sofreram ao longo dos séculos XVI e XVII.
Após o processo de destruição dos ícones e estatuárias religiosas dos ameríndios (utilizada, por exemplo, por Cortez como pretexto para a conquista), iniciou-se o momento de evangelização, utilizando objetos oriundos de um patrimônio visual europeu, basicamente para educar o olhar indígena, especialmente com o teatro. Neste momento, o autor se envereda pelo tema que dá título a sua obra, a guerra das imagens, em que os colonizadores organizam a substituição das imagens religiosas dos povos ameríndios pelos ícones cristãos. A adaptação dos indígenas a essa cultura imposta é muito detalhada pelo autor, revelando que a imagem, desta forma, serviu ao mesmo tempo tanto como veículo de poder como de resistência: "Imagens e imaginários, por sua vez, retomados, mestiçados e adaptados pelas populações dominadas" (p. 303).
O auge do culto às imagens, durante o período barroco do século XVII, revela também a sobrevivência de categorias visuais dos povos indígenas, culminando com o grande prestígio da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Gruzinski também atenta muito para o dinamismo interno ao próprio processo de imposição cultural, como as desavenças entre o pensamento franciscano e os teóricos da inquisição espanhola e mexicana e mesmo da administração colonial, ou ainda para a presença cotidiana de mecanismos individuais e psicológicos, como o uso de imagens para fins eróticos e a sua ocorrência em festivais. Apesar da presença coercitiva de categorias visuais advindas da Europa, a guerra entre as imagens acaba sempre resultando em um sistema híbrido – o sincretismo – pela própria natureza do imaginário social: "escambo, regateio, compensação, substituições, trocas, reinterpretações, as circulações de objetos jogam com as identidades, os valores e os significados" (p. 69). Isso fica bem nítido no momento em que os artistas indígenas, já avançados na cristianização durante o século XVII, passam a reproduzir ícones católicos dentro das suas expressões, valores, patrimônio visual e cultural, mostrando que nunca foram consumidores totalmente passivos da coroa e da Igreja. Já durante o Setecentos, no auge do movimento barroco, também os administradores se serviram de mecanismos imagéticos para exaltação de seu poder, fracassando pela sua fraca assimilação perante as massas indígenas: "Tenderíamos a concluir pelo fracasso da imagem política diante do grande e duradouro êxito da imagem religiosa" (p. 205). Uma constatação que também já foi abordada em nossa historiografia, mas em outro momento e situação histórico-social.4
Ao fim do livro, que examina as experiências imagéticas e religiosas no México do século XX, percebemos a opção de Gruzinski por um enquadramento da cultura visual e das imagens em geral em categorias mais amplas, que escapam ao controle do indivíduo e da própria sociedade: "O imaginário, ao longo de sua trajetória, extrapola os criadores e os fiéis, abala suas expectativas e interpretações, prefigura outros caminhos" (p. 239). Uma herança direta da teoria da longa duração, especialmente dos historiadores franceses vinculados ao imaginário social,5 mas ao invés de privilegiar somente a unidade e a permanência a exemplo de Michel Vovelle e Philippe Ariès, o autor optou também por demonstrar a ruptura neste processo diacrônico. A grande vantagem deste referencial metodológico, em relação a outras análises visuais sobre os indígenas latino-americanos,6 é demonstrar o dinamismo entre as representações tanto dos europeus quanto ameríndias, ao mesmo tempo que também aponta uma cultura imagética derivada deste mesmo processo conflituoso. Aqui o autor também foi influenciado pelas pesquisas da História Cultural e da Antropologia, especialmente as de Carlo Ginzburg, em que a noção de circularidade cultural permite compreender melhor as relações entre representações, objetos materiais e sociedade.
Alguns teóricos apontam a perspectiva de que a produção, a circulação e o consumo das imagens constituem o caminho mais adequado ao trabalho do historiador quando envolver o uso de fontes visuais, especialmente atentando para o caráter material e social desses mesmos recursos.7 Neste sentido, o livro A guerra das imagens é exemplar, constituindo um excelente exemplo metodológico, por isso mesmo altamente recomendado não somente para os pesquisadores de História da América, mas aos historiadores em geral que têm a preocupação de recorrer às imagens como fonte ou objeto de estudo.
NOTAS:
1 Serge Gruzinski (n. 1949) é historiador e paleógrafo, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e dirige um núcleo de pesquisas no CNRS. O presente livro (originalmente publicado em 1990) é um dos mais recentes de uma série de estudos sobre o México colonial pelo autor: Les Hommes-dieux du Méxique, 1985; La colonisation de l'imaginaire, 1988; De l'idolatrie, 1988; La pensée métisse, 1999. [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]
2 Para exemplos de aplicação das teorias semióticas em análises imagéticas de fontes históricas, consultar: CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 401-17; CARDOSO, Ciro Flamarion. Os historiadores e as imagens. In: Narrativa, sentido, história. São Paulo: Papirus, 2005. p. 204-19. Com relação às teorias e metodologias da história da arte para objetos visuais históricos, verificar: GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. p. 237-71; FREITAS, Artur. História e imagem artística: por uma abordagem tríplice. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 34, 2004. p. 1-22; BURKE, Peter. Iconografia e iconologia. In: Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: Edusc, 2004. p. 43-56. Para uma discussão entre as aproximações da história da imagem com a história da arte, especialmente as teorias da ultura visual da academia norte-americana, consultar: KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, 2006. [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]
3 Especialmente em TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993. [ Links ]
4 O historiador José Murilo de Carvalho observou que a alegoria feminina de república, importada da França pelos primeiros republicanos no Brasil, fracassou devido à escassa identidade simbólica existente entre a população e os ideais da elite, triunfando a imagem de Aparecida como representação feminina da nação: "Além de deitar raízes na profunda tradição católica e mariana, apresenta a vantagem de ser brasileira e negra ... A batalha pela alegoria feminina terminou em derrota republicana. Mais ainda, em derrota do cívico perante o religioso" (CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário republicano no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 94). [ Links ]
5 No caso de pesquisas francesas vinculadas diretamente com análise de imagens, citamos: VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história: fantasmas e certezas das mentalidades desde a Idade Média atéo século XX. São Paulo: Ática, 1997. Em nosso país, influenciado por esta linha historiográfica, existemos trabalhos do historiador Hilário Franco Júnior, que sempre procura inserir as fontes visuais emarticulação com os mitos do imaginário medieval: FRANCO JR., Hilário. O fogo de Prometeu e o escudode Perseu: reflexões sobre mentalidade e imaginário. Signum, ABREM, n. 5, 2003. p. 73-116; FRANCOJR., Hilário. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Ed. USP, 1996. [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]
6 Um exemplo da limitação metodológica no estudo dos indígenas latino-americanos é SANTOS, Yolanda Lhullier dos. Imagem do índio: o selvagem americano na visão do homem branco. São Paulo:Ibrasa, 2000, onde a autora ainda privilegia as representações escritas pelos europeus como preponderantes para resgatar a história indígena, sendo as fontes imagéticas meramente ilustrativas. Para um exemplo oposto, citamos a obra do historiador Ronald Raminelli, que, utilizando teóricos da arte como Ernst Gombrich, W. Mitchell e Panofsky, estudou as diversas representações sobre os indígenas criadas pelos europeus durante o Brasil colonial, demonstrando com muita perspicácia a interdependência entre texto e imagem na popularização de um imaginário ocidental sobre os antigos habitantes do país :RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. Outra pesquisa competente que explora as relações entre texto e imagem (especialmente fontes cartográficas) para a constituição do imaginário colonial brasileiro é: COSTA, Maria de Fátima. História de um país inexistente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Liberdade/Kosmos, 1999. Anteriormente, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda já procurava analisar o complexo imaginário europeu sobre o Brasil, mas sem utilizar as ricas e variadas fontes imagéticas de nosso passado colonial, ainda sem uma sistematização devida: HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994 (edição original de 1959). [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]Y [ Links ]
7 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura material. História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, ANPUH, v. 23, n. 45, p. 33. Também o historiador britânico Peter Burke aposta nesta tendência: "É este enfoque que, na minha visão, promete ser o de maior valor nos próximos anos. Ele poderia ser descrito como a 'história cultural das imagens', ou, ainda, a 'antropologia histórica da imagem', uma vez que pretende reconstruir as regras ou convenções, conscientes ou inconscientes, que reagem a percepção e a interpretação de imagens numa determinada cultura" (BURKE, op. cit., p. 227).
Revista de Historia - UNESP
Nenhum comentário:
Postar um comentário