Josinei Lopes da Silva1
FRANCO, S. M. S. Luzes e sombras na construção da nação argentina: os manuais de história nacional (1868-1912). Bragança Paulista: EDUSF, 2003. 170 p. (Estudos CDAPH. Série historiografia).
Os programas brasileiros de Pós-graduação em História têm contribuído, nos últimos anos, para o aumento de pesquisas sobre a América Latina. Este aumento é bem vindo, pois há muito que pesquisar, com abordagem brasileira, sobre história latino-americana. O livro de Stella Maris Scatena Franco é um exemplo feliz desse fluxo.
A autora é doutoranda em História Social pela USP, e o livro Luzes e Sombras na construção da nação argentina é resultado de sua dissertação de mestrado no mesmo programa. Sua intenção foi fazer uma análise das representações que os manuais de História Nacional construíram, entre 1868 e 1912, sobre a nação argentina. Para esta tarefa, foram escolhidos manuais adotados nos Colégios Nacionais da República, que tiveram seguidas reedições e cujos autores fossem expressivos nas respectivas correntes historiográficas das quais eram representantes. Assim, os escolhidos foram: José Manuel Estrada (Lecciones sobre la Historia de la República Argentina, 1868), Clemente Leóncio Fregeiro (Lecciones de Historia Argentina, 1886), Vicente Fidel López (Manual de Historia Argentina, 1898) e Ricardo Levene (Lecciones de Historia Argentina, 1912). O período escolhido é o da implantação do sistema público de educação em todo o território argentino. Os autores, não por acaso, pertenciam à elite dirigente e estavam interessados em formar um "forte espírito patriótico".
Para a análise desse objeto, Franco apropriou-se de conceitos propostos e desenvolvidos por Benedict Anderson, Eric Hobsbawm e Roger Chartier. Os conceitos de nação, Estado e representação foram importantes e decisivos para a abordagem daquele material didático. Um perfeito exemplo é a convergência da autora com o pensamento de Hobsbawm, de que são os Estados e os nacionalismos que formam as nações e não o contrário. Toda a pesquisa da autora evidencia a preocupação do nascente Estado argentino em construir uma nação, até aquele momento, inexistente. Nesse sentido, a pesquisa pode ser considerada um estudo de caso que comprovou a tese do historiador inglês.
O período abordado, basicamente da segunda metade do século XIX até 1912, é singular para o estudo dos projetos de Estado e nação, que pululavam nas regiões americanas anteriormente dominadas pela Coroa espanhola. O período pós-indepedência na América Latina foi marcado por choques de interesses entre atores sociais, dentro dos próprios limites dos antigos vice-reinados. As elites políticas, além de objetivarem introjetar um espírito patriótico na população, também pretendiam que esse espírito fosse a imagem e semelhança do projeto de Estado-nação vitorioso nas disputas entre federalistas e unitários argentinos. Em vista disso, uma das hipóteses centrais do estudo é que no referido período o papel da história como disciplina, nas escolas primárias e secundárias, foi importante para a construção da nacionalidade argentina.
No primeiro capítulo, Estado nacional e educação pública na Argentina no século XIX, a autora discute as políticas educacionais em sua relação com o processo político e as disputas ideológicas. Nesse capítulo são tratados os conflitos entre unitários e federalistas, a rivalidade entre Buenos Aires e as outras províncias, a oposição ao governo ditatorial de Juan Manuel de Rosas (1829-1852) promovida pela "Geração de 37" - políticos e intelectuais, marcados pelo iluminismo, que propunham um regime republicano liberal para a Argentina, dentre os quais destacam-se Juan Bautista Alberdi, Juan María Gutierrez, Estebán Echeverría e o próprio Vicente Fidel López - e a configuração do Sistema de Instrução Pública.
No governo de Rosas o sistema escolar esteve sob a direção dos jesuítas - foi obrigatória, em todo o território argentino, a utilização de catecismos -, os mestres juravam fidelidade ao federalismo e todos os alunos e professores deviam usar um adereço vermelho na roupa, para simbolizar adesão ao regime. Após a queda de Rosas, as províncias obtiveram maior autonomia para organizar o ensino primário. Mas desde a década de 1860 até o início do século XX, houve uma tendência centralizadora do Estado e uma laicização do ensino. A instauração de um Sistema de Instrução Pública, que institucionalizou as escolas do ensino secundário e a publicação dos primeiros manuais de História Nacional para esse nível, relacionam-se com essa tendência. Quando esteve na presidência, entre 1862 e 1868, Bartolomeu Mitre criou as primeiras escolas secundárias oficiais e fundou o Colégio Nacional de Buenos Aires, como modelo para as outras escolas do país. O governo de Domingo F. Sarmiento (1868-1874) insistiu na popularização do ensino público, prioritariamente para o nível primário e a alfabetização, e investiu na formação de professores. Por sua vez, o governo de Nicolás Avellaneda (1874-1880) destacou-se, na educação, pela alfabetização de adultos. Vários outros dirigentes políticos e intelectuais preocuparam-se com os rumos da educação na Argentina. Em 1882, realizou-se o Primeiro Congresso Pedagógico Argentino e Sul-Americano cujas conclusões foram utilizadas, pelo governo, para regulamentar a educação na Argentina. Dentre outros aspectos, tornou-se obrigatório o ensino até os catorze anos, estipulou-se o ensino gratuito nas escolas oficiais, e o ensino religioso foi excluído do programa curricular.
Apesar de haver uma diferenciação entre o ensino para a elite e o ensino destinado ao "povo", a autora ressalva que o ensino secundário argentino era considerado, por muitos dirigentes, como tão importante quanto o superior, pois o secundário visava a formar e preparar os futuros dirigentes da nação. Para a maioria da população bastaria o ensino primário, enquanto para as classes médias estaria destinado o ensino técnico. Por isso, o secundário, fosse técnico ou normal, deveria contemplar a História Nacional para formar uma "consciência cívica". Este papel foi reforçado pela imigração européia, intensificada a partir da década de 1870: para a elite dirigente, era preciso "argentinizar" o imigrante, para que não ocorresse uma "desagregação da nacionalidade". A preocupação com a imigração permaneceu até o fim do período estudado pela autora e, junto com o propósito de formar dirigentes, influiu nos projetos educacionais durante a maior parte da permanência dos liberais no poder (1862-1916).
Lições de História Nacional: os quatro manuais escolhidos é o segundo capítulo e o mais curto. Nele, a autora apresenta as características gerais dos manuais, justificando sua escolha por obras cujos autores tiveram participação na vida intelectual e política no país e que, por essa razão, contribuíram para a idéia de nação argentina. Todos os autores dividiram seus manuais em duas partes: a primeira, dedicada ao período colonial, e a Segunda, ao período independente. Sem exceção, os manuais apresentam a História Colonial de forma negativa e conferem maior espaço, relativamente, para a história nacional após a Revolução de Maio de 1810. De José Manuel Estrada, o mais importante ideólogo católico conservador argentino do século XIX, a autora destaca a moral religiosa e sua divergência com o positivismo. Corrente esta que marca o manual de Clemente Fregeiro, para quem a história seria um processo evolutivo. O manual de Vicente Fidel López apresenta Buenos Aires como símbolo da nação Argentina e os caudilhos das províncias são atacados, inclusive por suas qualidades morais e sua vida pessoal. Ricardo Levene foi o único que incluiu em seu manual, entre outras imagens, mapas, cópias de documentos e desenhos de bustos de personagens. Esse autor tornou-se posteriormente um dos fundadores da Nova Escola Histórica, que propunha a profissionalização da pesquisa em História e uma maior isenção na análise do período colonial, condicionada, até aquele momento, pela posição política dos autores, preocupados em consolidar o Estado Nacional.
No capítulo seguinte, "Prenúncios" da nacionalidade no período colonial [aspas da autora], o foco está na periodização, proposta pelos autores, da história nacional e seu vínculo com os interesses de forjar a nacionalidade argentina. Franco verificou que o período colonial foi apresentado de forma negativa nos manuais, pois aos autores interessava valorizar o "nascimento efetivo da nação", quando "a nação se concretiza de fato": a Revolução de Maio de 1810, início das lutas pela independência. Não obstante, os autores dos livros afirmam que a Argentina já mostrava indícios de que era uma nação predestinada ao desenvolvimento e prosperidade material. Isto ocorreria devido à herança européia de civilização que o homem espanhol (branco) legou para os argentinos. A autora constatou que até mesmo a emancipação política teve, nos manuais, sua origem diagnosticada no século XVI. Esta contradição pode ser melhor entendida se forem consideradas as preocupações que os autores-políticos tinham quando escreviam seus livros: minimizar as disputas internas para consolidar o Estado nacional e, desta maneira, legitimar o regime que a elite liberal vinha tentando impor.
No quarto capítulo, A Independência: personagens, símbolos e lugares da Revolução de Maio de 1810, a autora investiga as interpretações dadas para a independência argentina. Os autores enfatizam certas datas em suas explicações, erigindo a Revolução de Maio em símbolo maior da ruptura indelével com o período colonial, representando o rompimento com a "Mãe Pátria". Foi pela representação de heróis nacionais - pensadores, ideólogos e ilustres guerreiros - que esse episódio apareceu nos manuais. Novamente é o manual de Ricardo Levene, último na ordem cronológica de publicação (1912), que se constitui exceção: apresenta uma tímida proposta de caráter social da história, ainda que siga valorizando o "fator individual".
O quinto e último capítulo, Modelos de nação, discute as representações, nos manuais, dos temas desenvolvidos no primeiro capítulo. A preocupação da autora foi conhecer como os federalistas, o governo de Rosas, o universo rural e as querelas entre Buenos Aires e as demais províncias foram analisados pelos autores, todos liberais. As interpretações que esses autores realizaram, em seus manuais, indica que pertenciam a uma elite liberal, letrada, marcada pelo seu presente, que vivia nas cidades e tinha a Europa como referência de civilização. Por essa razão, o gaúcho e o caudilho são depreciativamente representados como defensores de hábitos antigos.
Enfim, a leitura de Luzes e sombras nos remete às representações que autores liberais, na segunda metade do século XIX e início do XX, davam à História Argentina. Essas representações estavam profundamente ligadas ao projeto de construção da nação argentina, o que permite entender a visão negativa da colonização espanhola, ao lado da supervalorização das lutas pela independência e suas conseqüências. A autora, em algumas passagens, ensaia algumas tímidas comparações com outros países latino-americanos, ainda que sem aprofundá-las. Neste sentido, seria produtivo compararmos os manuais com obras similares dos outros países da América Latina, e, deste modo, conhecer melhor como a disciplina História contribuiu para construir a idéia de nação nesta região.
NOTA
1 Doutorando no Programa de Pós-graduação em História. – FCL – UNESP – CEP 19806-900 – Assis – SP.
Revista Historia - UNESP
Nenhum comentário:
Postar um comentário