terça-feira, 3 de novembro de 2009

A geografia do crime: Violência nas Minas Setecentistas


Rodrigo Leonardo de Sousa Oliveira*


ANASTASIA, Carla. A geografia do crime: Violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte:Editora UFMG. 2005.

A obra A Geografia do crime – Violência nas Minas setecentistas foi elaborada pela professora do departamento de História da UFMG Carla Anastasia. Utilizando-se dos mesmos procedimentos teórico-metodológicos de sua obra anterior, Vassalos Rebeldes, a autora procurou analisar o comportamento de determinadas quadrilhas localizadas nos sertões mineiros, áreas onde o poder da Coroa não conseguia penetrar.

A obra consolidou algumas análises já trabalhadas pela autora em palestras, artigos ou capítulos de livros, mesmo que um e outro possa ter partido de perspectivas opostas. Mas o que importa é o seu grande empreendimento em relacionar os espaços da violência com fatores essencialmente político-administrativos.

Anastasia procurou defender a tese de que a indisciplina e o descompasso na ação das autoridades mineiras colaborou de forma decisiva para a generalizada desorganização administrativa, os variados conflitos, os levantamentos da população e as dificuldades da Coroa em submeter a população da capitania mineira (Anastasia, 2005: 47). A manutenção do equilíbrio social, nessa região, esbarrou na autonomização burocrática.

Seguindo essa premissa, a autora procurou reconhecer a forma pouco consensual de se tratar a política colonizadora e a administração portuguesa. No entanto, há certo consenso quando se fala do sucesso da imposição da ordem pública e a eficácia do aparelho burocrático repressivo e fiscalizador nas Minas setecentistas. Raymundo Faoro e Caio Prado Júnior são exemplos dessa posição. O primeiro considerava que a camada dos fiéis agentes da Coroa conseguiu neutralizar os diversos tipos de violência nas Minas. O último, apesar de relativizar a posição de Faoro, não considerou a indisciplina dos funcionários reais, e sim da população colonial.

Os autores que mais se aproximaram de uma apresentação mais realista da administração metropolitana nas Minas foram Francisco Iglésias e Fábio Wanderley Reis. Ambos reconhecem a impossibilidade do exercício pleno do poder devido a conflitos de jurisdição, como entre governadores e funcionários reais. O Estado não teria prevalecido sobre a sociedade, pois as forças desagregadoras dessa instituição comprometeram seriamente a possibilidade da ação unitária e disciplinadora. Dessa forma, o aparelho burocrático seria, até mesmo, uma nova fonte de focos locais de poder. Portanto, a posição apresentada por Anastasia estaria focada nessas idéias, uma vez que ela defende a premissa de que a disfunção e/ou autonomização burocrática comprometeu a previsibilidade da ordem social nas Minas setecentistas.

De início, a autora procurou realizar um balanço geral de sua obra. Seguindo esse caminho, ela realizou um estudo geral sobre o processo de formação da capitania mineira desde os seus primórdios e os tipos de violência a que estavam submetidos os moradores das Minas do século XVIII. Seria importante destacar que os negros, os denominados homens pobres livres e os brancos fugidos da justiça régia representavam um perigo previsto para a sociedade. Eram estes que, individualmente ou em bandos, assaltavam e/ou matavam fundamentalmente nos sertões, paragens ou serras. Além disso, houve o medo dos seres sobrenaturais que poderiam habitar os lugares contíguos às estradas. Lobisomens, caipiras, caiporas e sacis vagavam pelos sertões, sempre à espera de suas vítimas desavisadas.

No entanto, tem-se o perigo imprevisto, ocasionado, muitas vezes, por diversas autoridades mineiras e por ricos fazendeiros desse período. Por meio da formação de verdadeiras áreas de mando, esses potentados formavam redes de solidariedades, que poderiam unir ricos e pobres, brancos e negros, desde que o poder do potentado prevalecesse.

Os perigos previstos e imprevistos propiciaram os diversos medos sentidos pela sociedade mineira desse período. Segundo Monteiro Lobato, a noite era o lugar propício para o surgimento dos diversos tipos de seres fantásticos e aterrorizadores. A noite era pai dos diabinhos, das bruxas, dos lobisomens e das diversas entidades maléficas vindas das trevas noturnas (Lobato, citado por Anastasia, 2005:21). Porém, o medo era também ocasionado pelos salteadores e quilombolas, e pelas imprevisíveis atitudes pouco ortodoxas de soldados, governadores, ouvidores, demais autoridades civis e ricos proprietários de terras. A capitania mineira vivia tempos de temor e insegurança. Os sertões, depositários da esperança de novos descobertos auríferos, eram, paradoxalmente, a imagem e semelhança do inferno.

Após apresentar os espaços da violência e os atores sociais nele envolvidos, Anastasia descreveu o comportamento de quatro quadrilhas de assaltantes desse período, além de descrever, como contraponto, sobre o polêmico e pouco ortodoxo Ouvidor Seixas Abranches.

Os sertões da capitania mineira tornaram-se conhecidos, tradicionalmente, como terra de ninguém. A ausência, a omissão e/ou a inépcia das autoridades propiciaram a essa comarca a exacerbação da violência. Essas paragens tornaram-se redutos do mandonismo bandoleiro, ou seja, constituição de territórios de mando comandados por poderosos potentados que por meio da força armada e da intimação física dominavam determinadas paragens. Devido à falta de autoridades ou à existência de conflitos de jurisdição, "o direito a violência passava a ser alimentada pela anarquia, e o banditismo era, portanto, mais legítimo do que a autoridade ausente ou litigante" (Anastasia, 2005: 55). Sendo assim, desordens, assassinatos e as mais variadas transgressões eram algo comum na realidade violenta, prevista e imprevista desses sertões. Nesse sentido, a criminalidade e os desmandos atingiam todos os segmentos sociais. Daí o surgimento de poderosas organizações criminosas no período em questão.

O palco da violência desses bandos propagou-se às estradas, sertões, serras e, em menor escala, às vilas. Ninguém era poupado: homens, mulheres e até crianças e idosos poderiam ser vítimas desses salteadores dos tempos do ouro. Cada grupo possuía seus modos de ação. Porém, todos apresentavam um objetivo comum: roubar as riquezas dos viajantes que se arriscavam nos perigosos caminhos mineiros. As quadrilhas que se destacaram no século XVIII mineiro foram os bandos dos "Vira Saia", das "Sete Orelhas", do"Mão de Luva", "da Mantiqueira" e os contrabandistas da Serra de Santo Antonio de Itacambiruçu.

A partir do ano de 1755, os sertões da Mantiqueira passaram a ser considerados áreas proibidas à ocupação. Devido a esse decreto, inúmeros bandos de salteadores passaram a invadir esses locais, o que colaborou, juntamente com os fatores político-administrativos apresentados acima, para o aumento da criminalidade nessas paragens.

D. Rodrigo de Meneses, governador mineiro que tomou posse em 20 de fevereiro de 1780, preocupou-se em explorar os sertões da Mantiqueira. Percebe-se que havia o interesse da Coroa, inclusive de Martinho de Melo e Castro, em iniciar a repartição de suas terras minerais e agrícolas. Assim, a ocupação dos matos gerais da Mantiqueira por concessões de sesmarias foi uma solução para os problemas constantes de violência verificados na região, além de estimular novas descobertas. Em outras palavras, tentou-se a institucionalização política da Mantiqueira. No entanto, devido ao baixo grau de institucionalização política, aos conflitos de jurisdição, e aos interesses privados se sobrepondo aos interesses públicos, essa região continuou tomada por bandos de facinorosos.

A quadrilha da Mantiqueira foi um exemplo de organização criminal que aterrorizou a Mantiqueira. Ela compunha-se de mestiços e ciganos e era liderada por um cigano chamado Joaquim de Oliveira, por alcunha "Montanha". Possuía engenhosos expedientes, sendo responsável pela morte de respeitáveis homens de negócios, como Antônio Sanhudo de Araújo, morador no Sabará. Seus membros acabaram sendo presos e sentenciados no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro. No entanto, mesmo com o aniquilamento desse bando, a violência coletiva nessas paragens permaneceu por todo o período colonial, seja pela ação de quadrilhas compostas por indivíduos oriundos de diversos estratos sociais, seja por quilombolas.

Nos sertões da Cachoeira de Macacu, sertões do leste, atuou o bando de contrabandistas comandado pelo lendário Mão de Luva. Composta por brancos pobres, escravos, libertos e indígenas, este bando ocupava-se do extravio ilegal de ouro para o Rio de Janeiro, procurando, dessa forma, fugir dos registros e dos destacamentos localizados naquelas proximidades. Acabaram sendo presos, inclusive o Luva, por meio do sistema de engano proposto por Cunha Menezes. Procurou-se infiltrar na extração um cabo e alguns soldados para que estes ganhassem a confiança dos extraviadores como novos aliados. O Vice-Rei chegou a contestar tal sistema. Ele acreditava que a abertura de um caminho às margens do Paraibuna proposto por Cunha Meneses estaria facilitando os extravios com a conivência de tal governador. Apesar disso, o plano proposto foi concretizado, e os componentes da quadrilha presos e sentenciados.

Resolvido o caso com o bando da Mantiqueira e do Macacu, o governador, D. Rodrigo José de Meneses, iria se ocupar com bandos de extraviadores de diamantes, como o grupo do também lendário José Costa, que atuavam na Serra de Santo Antonio de Itacambiruçu, na Comarca do Serro do Frio. Porém, o bando armado que mais preocupou D. Rodrigo, e posteriormente Cunha Meneses nessa Serra foi o famoso grupo dos Vira Saias. Estes se ocupavam de assaltos a fazendas, arraiais e aos viajantes nos caminhos. Era composto por centenas de pessoas, sendo liderado por João Nunes Giraldes e por sua mulher, a crudelíssima Mariana de Jesus Mendonça, além de dois irmãos de Giraldes. Agiam no julgado de São Romão, no sertão do São Francisco, e Serra de Santo Antonio de Itacambiruçu. Foramdominados somente nos primeiros anos do século XIX.

Por fim, D. Rodrigo teria que enfrentar outro bando lendário dos sertões do Rio das Mortes, a quadrilha dos Sete Orelhas. Comandado por Januário Garcia Leal, seu tio Matheus Garcia Leal e seu irmão Salvador Garcia Leal, o bando tinha como característica agir movido por vingança. Conta-se que um irmão de Januário foi morto cruelmente por sete homens e dessa forma Januário, por uma questão de honra, abandonou o sítio onde morava com o intuito de perseguir e assassinar tais assassinos de seu irmão. A sua alcunha Sete Orelhas se explica pelo fato de ele usar um colar de sete orelhas salgadas dos assassinos deste seu irmão. Mesmo com a vingança consumada, tal bando continuou a agir nesses sertões, atingindo, portanto, a categoria de malfeitores comuns.

Não se sabe o destino desses homens. Especula-se que Januário teria espalhado o boato de sua morte, e uma vez consumada a sua morte jurídica, ele teria partido para São Paulo ou para o Rio das Velhas. Seu tio Matheus esperava pelo pronunciamento final da justiça, mas também seu destino é incerto. Seja como for, o importante é classificar essa organização criminosa como constituída por assassinos frios e impiedosos, que tanto deram trabalho para as autoridades mineiras.

As dificuldades de repressão a todos esses bandos só corroboram a tese de que as áreas proibidas tornaram-se áreas de "non-droit, redutos de poder privado, onde a justiça não conseguiu prevalecer, as quais desafiaram continuamente o poder metropolitano" (Anastasia, 2005: 109).

Os moradores da Comarca do Serro do Frio teriam que conviver, ainda, com os desmandos do ouvidor Seixas Abranches. Entre 1779 e 1783, promoveu desmandos e arbitrariedades, principalmente no distrito de Minas Novas do Araçuaí. Praticou correições irregulares, falsificou documentos e desafiou a jurisdição do Governador D. Rodrigo José de Meneses ao suspender todos os oficiais da intendência do ouro e substituí-los por outros de sua confiança. Devido a isso, acabou sendo preso e os seus bens colocados em depósitos pelo Juiz Ordinário da Vila do Príncipe. Portanto, a atuação de Abranches permitiu o exercício da violência nessa localidade, no caso desse ouvidor contra a população da dita comarca. Manifestou-se, aí, um claro exemplo de violência política nas Minas setecentistas.

Para finalizar, seria importante destacar que a região das Minas esteve envolvida, durante todo o século XVIII, pelo denominado direito costumeiro. Ou seja, formaram-se na capitania mineira verdadeiras áreas de mando comandadaspor poderosos potentados. Estes homens constituíram grandes redutos de poder, onde o poder privado sempre se sobrepunha ao público. Portanto, o costume e a tradição prevaleciam perante o poder ausente ou litigante da Coroa. E a violência seguia seu rumo constante na dinâmica sociedade mineira setecentista.


* Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora – MG: UFJF (Departamento de Pós-Graduação em História). Juiz de Fora, Minas Gerais, Cep 36036-030, Brasil.

Revista História - UNESP

Um comentário:

LUCIANO.DALESSANDRO@GMAIL.COM disse...

Sr. Rodrigo, a história de "Sete Orelhas" é objeto de livro de minha autoria que se encontra no prelo. Este livro vai de encontro ao que Carla Anastásia escreveu sobre estes personagens, baseando-se em obra de Marcos Paulo de Sousa Miranda. Ambos estão equivocados. O bando "Sete Orelhas" não existiu, ele foi criado em meio às perseguições políticas aos descendentes dos colonos emboabas, dos quais os Garcia, ou Garcia Leal, faziam parte.