A raiva e os sonhos dos condenados
Betty Mindlin
JEAN-PIERRE KRIEF, experiente realizador de mais de vinte documentários, professor da Universidade de Paris 7, recebeu o Grande Prêmio do Festival Internacional de Cinema da Unesco, em 2002, e fez, em 2005, um filme sobre o julgamento de Saddam Hussein, História de um processo anunciado.
Seu filme A raiva e o sonho dos condenados, de 2002, um documentário de cerca de uma hora, traz esperança para quem acredita que é possível encontrar um sentido na vida mesmo depois do crime e do horror, e para quem aposta que há meios de mudar o sistema carcerário. É uma lição exemplar para pensar sobre a violência nas prisões, alvo de denúncias corajosas freqüentes na imprensa, como a reportagem de Fábio Mazzitelli, "Jovens rezam pelo crime na Febem" (O Estado de S. Paulo, 9.4.2006) sobre a Febem de Tatuapé.
Seu personagem central é Jimmy Boyle, hoje um renomado escultor e escritor de cerca de sessenta anos, que aos 23, em 1967, foi condenado à prisão perpétua. Criado em Glasgow na mais dura pobreza, é na travessia da Escócia, ao ser levado para a temida prisão de Inverness, que pela primeira vez tem a oportunidade de apreciar a beleza da paisagem de seu país – de dentro de um furgão policial. O filme não nos conta sobre os crimes que Jimmy e outros presos-personagens teriam cometido – ele era tido como o mais violento criminoso da época, líder de levantes e protestos na cadeia. Com essa fama, em Inverness, foi enjaulado, completamente nu, numa cela solitária, durante seis anos, recebendo comida no chão por uma portinhola. Suas falas na tela são carregadas de uma emoção desesperada, e de um tom espiritual que arrasta os espectadores. Foi reduzido à condição animal, ao nada, evocando, noutra chave, um Kasper Hausen ou uma besta humana exótica excluída da sociedade e exibida em circos. (As lembranças de Jimmy nos fazem pensar que era visto como um ser monstruoso, como os que eram imaginados na Europa desde a Idade Média, descritos, por exemplo, nos livros do antropólogo Roger Bartra (1997 e 1998).) Jimmy conta que seus sentidos privados de qualquer satisfação ficavam tão exacerbados que podia aspirar o cigarro que os guardas, andando pelo corredor, guardavam no bolso, ou a cera de seus sapatos, percebia o ranger do tecido de seus uniformes. Outras celas solitárias foram instaladas, contra todas as leis, e Jimmy ouvia os companheiros batendo com a cabeça nas grades, drogados, tentando suicidar-se com lençóis – alguns conseguiam. Ele, no entanto, encontrou forças interiores para manter-se. Tinha sido obrigado a desfazer-se dos hábitos humanos mais elementares, como pôr as mãos no bolso ou sentar-se numa cadeira – precisava descobrir quem era de fato.
Depois desses seis anos, Jimmy teve a sorte de ser transferido a outra prisão, Barlinnie, participando de um programa piloto carcerário centrado na reabilitação pela arte. A chegada foi um impacto – até então ninguém lhe falava. Mas um guarda o recebeu retirando-lhe as algemas e perguntando-lhe: "Você quer chá, Jimmy? Com leite ou com açúcar?", como se ele ainda fosse um ser humano... e a vida pareceu recomeçar, com tão pouco. Jimmy nos diz que a primeira coisa boa que fez na sua vida foi o busto de um colega esculpido em argila, e que experimentou então uma explosão de sentimentos bons, uma liberação, um jorro criativo, que o fez tornar-se para sempre inteiramente outro.
O programa de arte existia em várias outras prisões, e outros países. Abarcava todo um conjunto de mudanças carcerárias – quartos individuais para cada preso, mobiliados e decorados como quisessem, portas abertas, estímulo à relação e ao apoio mútuo entre os condenados, diálogo com os carcereiros, exposição das obras de arte, prêmios, intercâmbio com jurados e críticos de arte. Um dos artistas, um preso espanhol, conta que roubara de uma biblioteca um livro de Leonardo, e que, maravilhado, dedicara-se desde então a tentar a mesma qualidade em suas criações. "Se um homem é capaz de tais efeitos, por que não eu?" E ao tomar tintas e pincéis, percebia o quanto lhe faltava. As obras de arte exibidas no filme impressionam, fortíssimas. Esse espanhol, por boa conduta, obteve um indulto – mas foi imediatamente extraditado, e como só podia levar dez quilos consigo, suas telas, guardadas tão cuidadosamente durante meses ou anos debaixo do colchão, foram deixadas para trás.
O próprio programa de arte de Barlinnie foi interrompido, pois a opinião pública escocesa protestou, afirmando que os criminosos estavam sendo tratados a pão-de-ló à custa do erário público. No entanto, a taxa de reincidência do crime entre os egressos do programa de Barlinnie havia se tornado mínima, de uns 4%, enquanto a média de reincidência no crime de detentos liberados na Escócia aproxima-se de 60%.
Quanto a Boyle (1977), em 1982 obteve a liberdade condicional, passando a viver como artista e escritor em Edimburgo e na Côte-d'Azur. É autor de uma autobiografia comovente, escrita na prisão.
O que é o mal, o que é a justiça, quais os limites da punição; para que serve o sistema carcerário, se não tiver como objetivo reinserir no convívio social os que cometeram crimes? Um caminho viável explícito no filme é o papel da arte para a redenção e para preservar a dignidade humana, subvertendo o inferno. Uma espécie de Crime e castigo em que a Sônia salvadora é a expressão do imaginário em qualquer das formas de criação artística.
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A grande parceira e colaboradora de Krief é Christiane Succab-Goldman, nascida em Guadeloupe, autora de documentários sobre a região, um dos mais instigantes descrevendo um inflamado movimento estudantil na Guiana.
Ela acrescenta à de Krief uma reflexão profunda sobre presídios e sobre o crime, até mesmo por sua experiência de vida. Seu primeiro marido, francês militante de esquerda, filho de judeus vítimas do holocausto, condenado à prisão perpétua por suposto assassinato, foi absolvido depois de anos de encarceramento e de um processo kafkiano. Ele escreveu uma autobiografia, traduzida para o português, Lembranças obscuras de um judeu polonês nascido na França (Goldman, 1984). Em 1979, poucos meses depois de ser solto, foi assassinado na rua, deixando Christiane grávida de um filho, que foi Jean-Pierre que criou, como pai verdadeiro, embora não-biológico. A sombra da prisão e da voz dos erroneamente inculpados está na obra desse par de cineastas, que não hesitam em iluminar as muitas faces do bem e do mal.
Referências bibliográficas
BARTRA, R. El salvaje artificial. México: Era, 1997.
_______. El salvaje en el espejo. México: Era, 1998.
BOYLE, J. A sense o f freedom. London: Pan Books, 1977.
GOLDMAN, P. Lembranças obscuras de um judeu polonês nascido na França. Trad. Maria Lúcia Autran Dourado. São Paulo: Francisco Alves, 1984.
KRIEF, J.-P. La rage et les rêves des condamnés. KS Visions, 2005.
Betty Mindlin é doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Economia pela Universidade de Cornell, EUA. É pesquisadora do IAMÁ (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente) e ex-professora visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. Publicou seis livros de mitos em co-autoria com narradores indígenas, entre os quais Moqueca de maridos (Rosa dos Tempos/Record, 1977) e Couro dos espíritos (Senac/Terceiro Nome, 2001). Sua oba mais recente é Diários da floresta (Terceiro Nome, 2006). @ – arampia@uol.com.br
Revista Estudos Avançados - USP
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