sábado, 8 de novembro de 2008

VERDADE E MÉTODO (TRAÇOS FUNDAMENTAIS DE UMA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA)

HANS GEORGE GADAMER
Nós somos um diálogo
08/Ago/98
Benedito Nunes


Depois dos anos 60, publicou-se pelo menos um livro filosófico raro, daqueles que espelham na sua diversificada matéria, na sua exposição dubitativa e tortuosa, o embate do pensamento para dar forma à questão investigada: "Verdade e Método".
Desde a Antiguidade grega, sob a custódia do deus mensageiro Hermes, patrono-mor da interpretação de Homero na época helenística e depois do labor interpretativo das Escrituras hebráico-cristãs, a hermenêutica é, na acepção corrente e generalizada, a arte de extrair as mensagens implícita ou explicitamente contidas nos escritos literários, jurídicos ou religiosos. Sua incumbência consiste, portanto, na interpretação dos textos, mediante um trabalho de exegese. Como então passar dessa hermenêutica-arte, ou técnica, para a hermenêutica filosófica, de que "Verdade e Método" traz o delineamento? A passagem talvez nos seja indicada pelo uso, mais dilatado do que se imagina, até fora do domínio da escrita, do ato de interpretar, pois que nos basta falar com alguém em nossa própria língua ou numa língua estrangeira, para já estarmos interpretando e sendo interpretados, na medida em que compreendemos e nos fazemos compreender.
Ora, é precisamente desse fato curial da compreensão a relevante questão investigada no livro de Gadamer de que depende a arte ou a técnica da interpretação dos textos. A compreensão não vem depois da vida, mas a permeia em seus momentos todos. Compreendemos o outro quando com ele falamos; uma ferramenta quando a utilizamos; os acontecimentos cotidianos quando nos atingem; o ambiente ou o mundo em que vivemos. Compreender é uma atitude mais primária do que o exercício do conhecimento científico, a teoria no sentido estrito. Por ser primária, é curial, e por ser curial, inapercebida. Podemos compreender sem conhecer cientificamente, mas não podemos conhecer cientificamente sem antes termos compreendido a coisa de que se trata. Daí dizer-se que a compreensão é adesiva, envolvendo, como diz Gadamer, uma relação de pertença ao que nos rodeia.
No que chamamos de interpretação, a compreensão se expressa, se traduz, se explicita. Daí a afirmativa de Heidegger, no parágrafo 32 de "Ser e Tempo" (um dos mais próximos e reconhecidos antecedentes de "Verdade e Método", que dele faz expressa menção), de que interpretar é desenvolver "as possibilidades projetadas na compreensão". Mais ainda, a interpretação não pode fazer-se sem pressuposto; e esse pressuposto é a prévia compreensão daquilo que se interpreta, ou seja, a adesão, a pertença a que antes nos referimos, e que se desdobra num nexo referencial (a situação na qual estamos), numa perspectiva que lhe é correlata (modo de ver) e nos conceitos em que se explicita (modo de conceber). Desse modo, o interpretar manifesta, antes de tudo, o compreender a que se acha aderido. Se assim é, os enunciados heideggerianos, que acabamos de registrar, implicam a admissão de uma intrínseca circularidade da interpretação.
Quer isso dizer que nesse círculo hermenêutico, traçado por Heidegger e adotado por Gadamer, e dentro do qual já nos encontramos, recai a mesma hermenêutica-arte, a partir de nosso enquadramento fáctico no mundo, como esse ente temporal, falante, capaz de discurso, que somos, com a dupla aptidão de compreender-se e interpretar-se -de compreender-se porque esse ente, o "Dasein" (1), existe projetando as suas possibilidades, e de interpretar-se, porque primeiramente se dá conta, segundo elas, de si mesmo, das coisas e dos objetos que se lhe apresentam, percebendo-se e percebendo-os "como" isso ou "como" aquilo. O "Dasein" está sempre nesse círculo de uma compreensão já atuante, abrindo-nos sempre ao mundo, na situação de intérpretes para os quais nada é indiferente e tudo adquire imediato sentido, e que é a matriz da experiência e de seu caráter antecipativo, como estrutura significativa que condiciona e possibilita a exegese dos textos, o conhecimento científico, o fazer artístico, as expectativas do futuro e as interrogações sobre o passado.
Interpreto os textos pelo mesmo movimento compreensor que me permite interpretar-me. A exegese de um escrito não constitui um mero ato de saber e de erudição; é um ato que me empenha, que me compromete, que me põe em causa como existente, mobilizando-me a condição temporal inserta entre "o presente das coisas presentes" e aquele outro presente, a mim disponível mediante testemunhos, sejam escritos sejam orais, das coisas passadas. Pelo laço de pertença, estaria a interpretação do lado da verdade originária do "Dasein".
Por sua vez, o conhecimento científico, como possibilidade determinada do "Dasein", tem no método o meio de acesso aos seus vários campos. O método é a via que lhe permite concretizar-se objetificando-os, isto é, convertendo-os em objetos de proposições coerentes, por sua vez fundamentadas nesse mesmo processo metodológico. Dá-se, porém, que a objetificação metodológica traz em si mesma uma atitude de distanciamento relativamente ao que se conhece, atitude essa que não só se opõe à anterior atitude de adesão, de pertença, correspondente à verdade situacional do "Dasein", como também a desconecta, neutraliza ou abstrai, alienando-nos dela, onde quer que possa introduzir-se, no fazer artístico ou no conhecimento histórico, que responde às interrogações sobre o passado.
Restabelecer as conexões da verdade nesses domínios, recuperá-los, portanto, como um prolongamento daquela experiência matricial pré-científica, de que mesmo a ciência se origina, e que se trata de desalienar; soltar as amarras metodológicas do conhecimento histórico, que encontra sempre na interpretação dos textos-fontes o seu teste crucial; retirar da avaliação da arte a servidão moderna, mais schilleriana do que kantiana, ao juízo estético; firmar as condições do compreender -a compreensão da compreensão; restaurar, enfim, o direito da interpretação em sua maior generalidade, circulando do texto para o mundo, lido como um texto que tem significações várias, sustentadas todas pela linguagem, que é o solo mesmo da nossa experiência (Gadamer chama à linguagem de "ser") e, ainda, levar essa generalidade reconquistada ao pólo de uma reflexão das filosofias, todas dependendo de uma cadeia histórica de atos interpretativos -eis o movediço espectro da filosofia hermenêutica delineada em "Verdade e Método".
"A questão é de saber", propõe-nos Paul Ricoeur num comentário arguto, "até que ponto a obra de Gadamer merece denominar-se: 'Verdade e Método'; talvez fosse preferível intitular-se 'Verdade ou Método'".
A verdade da experiência hermenêutica vai de encontro ao método nas duas grandes verificações feitas por Gadamer: primeiramente, sua crítica à cultura estética -cultura das aparências- pela qual começa seu livro, recapitulando a ascensão das noções de gosto e de vivência ("Erlebnis"), esta última posta em vigor, de diferentes maneiras por Dilthey e Husserl -e, em seguida, na segunda parte toda ("A Extensão da Questão da Verdade à Compreensão nas Ciências do Espírito"), num esforço analítico de destrinçamento da consciência histórica, sua crítica à hermenêutica romântica de Schleiermacher, à "Aufklärung" (Ilustração) e ao historicismo de Droysen, Ranke, Dilthey e Hegel.
A consciência estética, que legitima a obra de arte como objeto de juízo de gosto, enquanto produto da vivência do artista referendada pela vivência do receptor, é sempre, como observa Gadamer, num escrito de 1965 ("A Universalidade do Problema Hermenêutico"), "uma consciência segunda, segunda relativamente à pretensão imediata à verdade que emana da obra de arte". Essa verdade consiste num modo lúdico de representação, que se elabora como um jogo e que opera como tal: um jogo de configuração, semelhante àquele levado a cabo pelo ator quando "imita" o seu personagem, isto é, quando interpreta-o. Rembrandt interpreta-se, configurando seus diversos auto-retratos. Cézanne configura a "natureza morta" das maçãs, interpretando-as de diferentes maneiras. A pintura não pode fugir a uma gestualística sacramental, que vem do porte religioso da imagem, a crédito do status ontológico do quadro. Quando o pintor pega no pincel, estaria trazendo para dentro do quadro, independentemente de sua vontade, com uma certa técnica, com um certo estilo, uma tradição invasora, por ele aceita ou contrariada. De qualquer forma, o que se lê no quadro não é a alma do pintor.
Se fosse o contrário, Schleiermacher teria razão: interpretar a obra de um artista, de um poeta, seria determinar-lhe a intenção autoral; o exegeta a conheceria mais de perto do que o seu próprio autor. A ter Schleiermacher razão, conhecer o Evangelho de São João seria, antes de nada, conhecer São João. Gadamer rejeita esse postulado da escola romântica. O sentido de um texto literário ou religioso subsiste para além de seu autor e independentemente dele. O texto nos fala, nos diz algo e, por isso, é interpretável hoje, como será interpretável amanhã, de modo diferente. "Vamos aos fatos", dir-nos-ia porém um representante da "Aufklärung". "Este lê o texto joanino como protestante, aquele como católico, um terceiro como historiador da Palestina. Se varrêssemos todas essas pressuposições, talvez nas linhas escritas pudesse assomar um sentido prístino."
A resposta de Gadamer é que não há sentido prístino e que varrer as pressuposições implicaria, como se fosse possível sair do círculo hermenêutico, em impedir as interpretações, uma vez que, como vimos anteriormente, estas não existem sem aquelas. O que a "Aufklärung" visava, ao encontro desse sentido prisco, era a interpretação não preconceituosa, que afastasse a tradição da autoridade e a autoridade da tradição, tal como defendida pelos românticos. Mas nisso os românticos estavam certos.
A interpretação de um texto não começa no grau zero da escrita ou num patamar de sentido nulo a ser preenchido, pouco a pouco, pelo verdadeiro. Ela começa "in media res", com certos referenciais, numa determinada perspectiva. O preconceito nada mais é do que o correspondente histórico da antecipação da experiência humana. Mas constitui a única entrada possível na matéria -entrada a que necessariamente não ficaremos presos. Podemos corrigir adiante o preconceito; mas, sem jamais rompermos inteiramente com as pressuposições, nossa interpretação avança segundo uma dialética peculiar, imposta pelo próprio texto, e que vale para toda consciência histórica.
Numa medida mais larga, o preconceito, como antecipação da experiência humana, atesta o vínculo com a tradição de que somos partícipes. É o que Gadamer chama de "consciência-da-história dos efeitos" ("Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein"): consciência a meias, certamente, porque, segundo nos diz em outro de seus escritos, "determinada por um devir histórico real, de tal forma que ela não possui a liberdade de situar-se em face do passado". No entanto, é na direção do passado que avança o historiador, seguindo a pista, o vestígio, que lhe deixou uma fonte documental. E nisso cumpre a regra hermenêutica de chegar ao todo por meio da parte, ao universal por meio do particular. Mas como avança? Ainda aqui a iniciativa não vem por completo do historiador. Pois se ele, historiador, interpela o texto, deve-se isso à capacidade do texto de propor-lhe as perguntas cujas respostas somente o que está escrito pode lhe dar, fazendo com que avance na direção do passado.
Mas não avançamos para dentro de uma época, de um período do passado, reconstituído com a precisão que os historicistas, os positivistas da história, esperariam alcançar. O tempo decorrido não é neutro: interpôs entre nós e a sociedade pretérita uma distância insuperável -o que não significa bloqueio, fechamento, mas a abertura, sobre essa sociedade outra, de uma perspectiva que só o nosso presente pode dar-nos. Compreendemos essa época distante, infamiliar, aproximando-a do presente, do familiar, onde nos situamos. Essa dialética da proximidade e da distância, completa-se pela apreensão da diferença entre as duas sociedades, a nossa e a pretérita, afastadas entre si pelo tempo. Uma não se identifica com a outra; são os contornos, os "horizontes" das duas que se fundem; e, por isso, ao compreendermos aquela em função da nossa, compreendêmo-la de modo diferente. É um problema semelhante ao da aplicação das leis do direito -redimensionadas pelas necessidades do presente. Para Gadamer, a hermenêutica jurídica é o guia prático da experiência hermenêutica, cujos limites e possibilidades estão circunscritos pela linguagem, assunto da terceira e última parte de "Verdade e Método" ("A Virada Ontológica da Hermenêutica no Fio Condutor da Linguagem"), sobre a qual vou ser brevíssimo.
A linguagem que o filósofo considera é a que, como suporte da experiência humana, extravasa a ciência da linguagem, resvalando do método para a verdade da pertença ao mundo, ao tempo e à história. A experiência humana não é linguística e sim linguajeira ("spraclich"): o falar dos textos, das obras de arte, o entender-se e o desentender-se uns com os outros, a imensa, penetrante conversação humana e a sua tradutibilidade de universo linguístico para universo linguístico. Parece que estamos a ouvir a ressonância do ensinamento de Heidegger extraído de Hölderlin: nós somos um diálogo.
Por último, gostaria de ressaltar, diante das dificuldades extremas que oferece um texto tortuoso, labiríntico, como esse de Gadamer, a tarefa meritória que foi traduzir "Verdade e Método". Mas a tradução incorre em inúmeras falhas. Erros de revisão? Não só. Nenhuma dúvida tenho acerca da competência do tradutor no manejo da língua alemã. Mas tantas são as impropriedades de expressão e os déficits sintáticos em nossa língua, que só poderíamos desejar, em defesa da "última flor do Lácio", que a obra traduzida viesse a ter logo uma segunda edição, rigorosamente revista e aportuguesada.
Nota:
1. A palavra alemã "Dasein" significa "existência" ou "estar presente". Entretanto, no pensamento de Heidegger, esta palavra se converte em conceito e, assim, traduz o objeto da análise do homem enquanto existente: a presença do ser humano no mundo ou, ainda, o modo de ser do homem. Traduz-se, também, enquanto conceito heideggeriano, pela expressão "ser-aí" (nota da Redação).
Benedito Nunes é professor na Universidade Federal do Pará e autor de "Crivo de Papel" (Ática), entre outros.


Folha de São Paulo

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