segunda-feira, 10 de novembro de 2008

NOBRES E ANJOS - UM ESTUDO DE TÓXICOS E HIERARQUIA

GILBERTO VELHO
Boêmios e surfistas
11/Jul/98
Maria Filomena Gregori



Para aqueles que ainda não completaram 40 anos, a imagem da juventude dos anos 60 e início dos 70 foi desenhada com vigor a partir dos personagens que sofreram direta e fisicamente os efeitos da ditadura militar. Livros com grande impacto na década de 80 - "O Que É Isso, Companheiro?", de Fernando Gabeira (1979), "Os Carbonários - Memórias da Guerrilha Perdida", de Alfredo Sirkis (1980), "Reflexos do Baile", de Antonio Callado (1976)- descrevem uma geração, por intermédio dos seus heróis. A militância de esquerda, radicalizada pela luta armada e arbitrariamente reprimida, constitui o material de nossa memória: ainda que estatisticamente pouco significativos, esses jovens foram sendo tomados como os protagonistas de uma história a ser lembrada e, também, a ser revista.
Comparados com tal referência "heroificada", os outros segmentos juvenis permaneceram obscuros. Não sabemos exatamente quais foram os efeitos da ditadura sobre as suas escolhas e aspirações. O único relato da dureza da ditadura sobre jovens que, contrários a ela, mas distantes de uma militância efetiva, sofreram punições absurdas está no livro de Caetano Veloso, "Verdade Tropical" (1997). A descrição honesta sobre a sua ingenuidade diante das autoridades que o sequestraram pela manhã, sobre a apoplexia que o acometeu na prisão sem nunca ter sido esclarecido por que estava preso e sobre a vida "cinza" no exílio, mostra a difusão do terror naqueles que adotavam comportamentos não-convencionais.
Esse medo que se espraia na sociedade explica por que o livro do antropólogo Gilberto Velho, defendido como tese de doutoramento na USP em 1975, só foi publicado 22 anos depois. O autor manteve a versão original, mas, no prefácio, escrito agora, revela que limitar o estudo às estantes universitárias significou proteger a segurança do universo social investigado, salvaguardando-o da exposição pública. Além do valor documental, este livro veio em boa hora. Ao acompanhar os resultados da investigação sobre o uso de tóxicos por jovens de classe média alta, residentes na zona sul do Rio de Janeiro, encontramos reflexões que não perderam a atualidade.
Uma das principais contribuições de Gilberto Velho na consolidação de estudos antropológicos em meio urbano no Brasil é adensar o conhecimento sobre as camadas sociais médias, com pesquisas sobre segmentos que vivem na zona sul do Rio de Janeiro. Na sua dissertação de mestrado, publicada em livro, "A Utopia Urbana" (1973), ele já perseguia uma mesma questão: tratar um segmento localizado como classe na estrutura social sem cair na armadilha reducionista que associa o comportamento cultural a uma condição material de existência.
Os estratos sociais inseridos numa sociedade complexa não podem ser tomados como setores homogêneos, dada a proliferação de experiências sociais pautadas pela heterogeneidade, simultaneidade de papéis e aspirações diversificadas. Essa heterogeneidade produzida pela intensificação da divisão social do trabalho encontra expressão vívida na multiplicidade de estilos de vida e de visões de mundo. O autor busca entender os mecanismos simbólicos que revestem as atividades sociais, extraindo deles procedimentos de distinção social capazes de criar fronteiras entre os grupos (nesse caso, grupos de "status", conceito weberiano particularmente fecundo em sociedades em que a hierarquia desempenha um papel singular).
Na tese de doutorado, Gilberto Velho estuda o uso de tóxicos e se pergunta até que ponto essa atividade social estabelece fronteiras na sociedade. Mas, como pondera o autor, o consumo de drogas deve ser visto como ponto de partida para uma análise -essa sim fundamental- sobre o etos associado ao comportamento considerado desviante: "O tóxico só pode ser compreendido contextualmente", no interior de uma rede de relações sociais que comporta, além de uma circunscrição sociológica, laços afetivos e o desenvolvimento de certos padrões emocionais.
Para tanto, seleciona dois grupos de jovens que, mesmo ocupando uma posição social comum -a alta classe média-, desenvolvem uma posição diversa não só em relação ao uso de drogas, como na configuração de seus valores e estilos de vida. O primeiro grupo -os "nobres"- é constituído por jovens adultos, recém-casados, em início de carreira vinculada à produção cultural, enredados numa sociabilidade "artístico-boêmio-esquerdista". O segundo grupo -os "anjos"- está localizado entre jovens mais novos, estudantes secundaristas, residentes com as famílias, surfistas por opção lúdico-afetiva.
Sobre os primeiros, analisados de forma mais detida, o autor revela a faceta "vanguardista-aristocrática" de uma gente que, tendo tido alguma participação política na década de 60, abandona essa preocupação e adota um modo de vida centrado na busca do autoconhecimento, estimulados pelas drogas, mas, também, pela psicanálise, pelas viagens ao exterior, pelos restaurantes caros e por um convívio sofisticado e culturalmente antenado. Nos "anjos", grupo de referência para fins comparativos, o autor identifica uma inclinação voltada para o culto ao corpo, por meio de esportes e de "liberdade" sexual. Eles desvalorizam a expressão discursiva e superestimam a "curtição".
Para além de uma etnografia de grupos de classe média alta, este livro lança reflexões relevantes. De um lado, mostra que as elites brasileiras constroem suas fronteiras aristocráticas mesmo em meio a comportamentos transgressores. O desvio passa a ser uma conduta impune que traz como consequência o mero reforço de "status". De outro, permite vislumbrar algo que vai se delinear com muita intensidade nas décadas de 80 e 90: o florescimento de um tipo de individualismo fortemente hedonista. Guardadas as diferenças entre os grupos, é a busca de prazer que organiza e orienta suas ações e escolhas.
Essa também é a preocupação de um outro autor, Richard Sennet, que publica o seu "O Declínio do Homem Público" em 1974. Os dois estavam elaborando seus estudos no período de intervalo entre os movimentos estudantis de 68 e as ainda embrionárias formas de ação política libertárias que consolidaram na militância o slogan "O pessoal é político" (os movimentos feminista e homossexual serão expressões decisivas dessas novas formas). Ambos demonstram perplexidade diante de um quadro semelhante: a exacerbação de um individualismo narcisista, fazendo da intimidade uma tirania, no caso de Sennet; e o individualismo hedonístico calcado na dificuldade de enfrentar o medo da ditadura, no caso de Gilberto Velho.
Eles esboçam críticas ao comportamento individualista que sublima o político e reduz a convivência pública, exacerbando a privatização das relações sociais.
Nesses 20 anos, o cenário se tornou mais complexo: o individualismo hedonista ganhou uma conotação agonística. Para entender a intensificação dessa face do individualismo, o exame das drogas se torna particularmente exemplar: comparado com o contexto descrito por Gilberto Velho -em que o sentido da droga era o de "abrir cabeças" e "curtir"- , hoje o problema é mais sério. É inegável que o tóxico está ligado a um tráfico que articula, de forma perversa, características "empresariais", ilegítimas e violentas, como bem aponta Alba Zaluar no livro "Condomínio do Diabo" (1995).
O que significa atração de "trabalhadores" (cada vez mais jovens) para a expansão da rede de distribuição da droga, conflitos terríveis entre grupos rivais e um custo social extraordinariamente mais elevado.
Se já existem estudos que analisam as motivações e relações dessas novas formas do tráfico com os jovens pobres, falta uma investigação do mesmo tipo, tomando os jovens de outros estratos sociais. Aí está a atualidade do livro de Gilberto Velho: ele mostra a importância de buscar o sentido fundo do uso da droga, seus significados de distinção e, principalmente, como o consumo se liga a um conjunto mais extenso de práticas, valores e estilos. Decifrar esse conjunto implica enfrentar o desafio de entender que sociedade é essa, em que a droga permite cristalizar suas perversões, seus descontroles e sua violência.

Maria Filomena Gregori é professora de antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Cebrap.


Folha de São Paulo

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