sábado, 8 de novembro de 2008

DOS CORTIÇOS AOS CONDOMÍNIOS FECHADOS

LUIZ CÉSAR DE QUEIROZ RIBEIRO
O papel dos agentes imobiliários
08/Ago/98

NABIL BONDUKI
O estudo da história da cidade brasileira é recente e ainda repleto de lacunas. Grande avanço tem se dado, no entanto, na última década, graças a alguns grupos de pesquisa que têm realizado levantamentos sistemáticos de fontes documentais. O resultado tem aparecido em livros, teses e artigos acadêmicos, que começam a criar um panorama referencial sobre diferentes aspectos da história urbana no Brasil.
O trabalho de Queiroz Ribeiro, precursor deste esforço, é resultado de uma série de pesquisas realizadas no Instituto de Planejamento Urbano e Regional (Ipur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ainda na década de 80, que originaram um doutorado apresentado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 1991.
Ao contrário de grande parte da produção recente -que tem se caracterizado por trabalhos excessivamente descritivos, geralmente desprovidos de uma reflexão aprofundada sobre o processo de produção do espaço construído-, o livro de Ribeiro busca, na pesquisa sobre as formas de produção imobiliária no Rio de Janeiro desde o final do século 19 até o presente, elementos para discutir a relação entre a propriedade fundiária e o capital de incorporação na produção da moradia, objetivando compreender o papel dos agentes imobiliários no processo de produção do espaço edificado.
Lançando luzes sobre este processo, Ribeiro produz uma contribuição original, numa vertente que não tem tido continuidade -os trabalhos recentes centram-se sobretudo na descrição de planos urbanísticos, sem analisar os processos imobiliários que geram a produção concreta da cidade.
Seu livro peca, entretanto, pela evidente falta de cuidado editorial. Um livro não é o mesmo produto que uma tese acadêmica. Ocorre que muitos autores, exaustos após o esforço realizado nos programas de pós-graduação ou pressionados para ampliar as estatísticas quantitativas de publicações tão ao gosto dos órgãos de avaliação como a Capes e o CNPQ -para quem qualidade não conta-, simplificam o trabalho, publicando sem alteração ou atualização textos originais pouco palatáveis para um público mais amplo. É o caso deste livro, agravado pelo tempo decorrido entre a elaboração da tese e sua publicação em livro (sete anos que mudaram o mundo!) e pela despreocupação em adaptar e reelaborar o texto para um público menos familiarizado com a discussão teórica.
Assim, a boa tese de Ribeiro resultou num livro denso e difícil. A responsabilidade é menos do autor do que da editora, que não se preocupou em orientar uma adequada preparação de um texto acadêmico para que ele possa ser legível ao leitor médio brasileiro interessado na questão urbana, para além da meia dúzia de especialistas.
O livro divide-se em duas partes bem diferenciadas. Na primeira, árida, evidenciam-se os problemas acima apontados. Ribeiro discute, teoricamente, a relação entre a propriedade fundiária e o capital na produção da moradia, aprofundando o debate sobre a renda da terra na cidade, as condições que regulam o processo de produção e circulação da moradia e o papel dos diferentes agentes imobiliários: incorporador, construtor, instituições de financiamento e proprietário fundiário. Trata-se de um debate acadêmico que esteve em voga entre os anos 70 e o início dos 80, influenciado por autores como Lojkine, Preteceille, Topalov e outros da sociologia urbana francesa e pela preocupação em se criar uma teoria marxista da urbanização capitalista.
Na segunda parte do livro vamos encontrar a contribuição mais original de Ribeiro. A partir de uma bem documentada pesquisa, realizada em fontes inéditas, o autor elabora uma análise da formação do capital imobiliário no Rio de Janeiro e disseca as várias formas de produção da habitação na cidade, desde a produção rentista -com destaque para o famoso cabeça-de-porco, cortiço que abrigava a nascente classe trabalhadora no final do século 19- até a consolidação do capital de incorporação, que vai resultar nos condomínios fechados da Barra da Tijuca. Ribeiro mostra que a crise de habitação é estrutural e gerada por fatores como a escassez social da terra e sua apropriação injusta, a instabilidade dos financiamentos e a insolvência do mercado habitacional de baixa renda, marcado pelos salários insuficientes, que impedem o pleno desenvolvimento da produção capitalista da moradia, tornando inevitável a autoprodução.
Esta segunda parte é, indiscutivelmente, o ponto alto do livro de Ribeiro, contribuindo para o entendimento do processo da habitação no Brasil, a partir da realidade do Rio de Janeiro. Lamentavelmente, no entanto, também aqui se verifica a falta de cuidado editorial. Um texto rico de informações sobre a história urbana do Rio e sobre as diferentes modalidades de habitação que atenderam os cariocas no último século é acompanhado apenas de áridas tabelas e gráficos, sentindo-se falta de mapas (os que estavam na tese foram excluídos, aparentemente a única alteração realizada!), fotografias e outros elementos iconográficos que poderiam criar uma imagem mais concreta do processo de transformação do espaço habitacional de cidade e das suas formas de produção. Levando em conta a importância da imagem neste final do século, pode-se afirmar que essa é uma lacuna muito sentida no livro de Ribeiro.
No momento em que milhares de compradores de apartamentos se sentem desprotegidos por escândalos empresariais como o da Encol e da Sersan, compreender o funcionamento das incorporações parece ter ganho maior relevância e um público inesperado. No entanto, as preocupações de Ribeiro vão muito além disso, pois ele busca um referencial teórico e empírico capaz de demonstrar a necessidade de se democratizar o acesso à terra urbana, contribuindo assim para a luta pela reforma urbana, uma bandeira que ainda não sensibilizou o país como a reforma agrária, apesar de quase 80% da população brasileira morar (mal) em cidades.
Nabil Bonduki é arquiteto, professor da Escola de Engenharia de São Carlos (USP) e autor de "Origens da Habitação Social no Brasil" (Estação Liberdade).

Folha de São Paulo

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