ERIC ROHMER
Os olhos da ontologia
08/Ago/98
Jorge De Almeida
A defesa do diletantismo em questões de arte acaba sempre invocando uma suposta visão privilegiada do amador, que se arvora em herói da liberdade de opinião contra a tirania metodológica e os limites estreitos da abordagem dos especialistas. "Todo mundo tem o direito de falar de música", escreve o cineasta Eric Rohmer no prefácio de seu livro nada humilde sobre "a noção de profundidade na música".
Educado pelos programas de rádio que popularizaram a música erudita no pós-guerra, Rohmer é um ouvinte culto, que conhece os fundamentos da arte musical e acompanha a bibliografia básica sobre as obras que comenta. Apesar disso, faz questão de frisar a todo instante as qualidades de seu olhar inocente, capaz de "ensinar alguma coisa sobre a maneira como nos chega a música".
Mas o alegado propósito do livro é desvirtuado por uma tentação tipicamente francesa, aquele pendor para a teoria tantas vezes ridicularizado nos próprios filmes de Rohmer, mas aqui assumido sem o menor constrangimento. Logo nas primeiras páginas, o "olhar inocente" do autor defende a necessidade de uma "análise eidética" da música, única maneira de evitar as insuficiências da psicologia e da cronologia. O diletante torna clara sua intenção metodológica: "Meu procedimento é da ordem da ontologia, e não da linguagem".
E como atualmente todo mundo também tem o direito de falar de ontologia, Rohmer retoma vários clichês das histórias idealistas da música, concentrando-se na comparação entre a "profundidade cósmica" do pensamento musical mozartiano e a obra de Beethoven, que se localizaria "um grau abaixo da profundidade mozartiana", pois o "amor próprio da música" cede espaço à figura do compositor, que passa a considerar a música como meio de expressão da subjetividade, algo que a ontologia não vê com bons olhos.
Os comentários de Rohmer a favor de Beethoven são de fato paradoxais. Se nos últimos quartetos Beethoven chega a igualar a "profundidade mozartiana", isso ocorre somente graças à "alegria ontológica" que se manifesta nessas obras, "até mesmo nas passagens mais graves". E se Mozart proporciona um "prazer musical incomparável", o que salva Beethoven é, "além da cor orquestral, o fato de que sua música, dentre todas, é a mais agradável a meus ouvidos". Sem medo de chocar o leitor, Rohmer passa então a discorrer sobre o conforto auditivo da música de Beethoven, que superaria até mesmo o "jorro para a luz vertiginosa do ser" da sinfonia "Júpiter" de Mozart.
Coerente com sua qualidade de amador, Rohmer destaca a importância que o ouvinte dá ao tema, em oposição aos interesses profissionais do musicólogo, que "parece inspirar-se mais no desenvolvimento do que no próprio tema, pois do primeiro é possível dizer muita coisa, ao passo que o segundo se furta à análise". E nesse aspecto Beethoven sem dúvida é superado por Mozart, já que seus desenvolvimentos exigiriam, no entender de Rohmer, "uma pesquisa que parece demandar o concurso inevitável do computador e da ciência estatística". O fato de que nesse momento o romantismo se aproxime do "belo edifício matemático do 'Cravo Bem Temperado e da Arte da Fuga'±" não é problematizado, já que, ao olhar inocente do autor, "a história da música se deixa tranquilamente dividir em três períodos, e somente três: a modal, a polifônica e a harmônica, todas as demais divisões não sendo, no meu entender, fundamentais".
Tratando-se de uma abordagem ontológica da arte musical, a relação entre música e filosofia é um tema presente em todo o livro, mas não é desenvolvido na discussão das obras. A conquista da "profundidade" em Mozart e Beethoven seria análoga à revolução copernicana de Kant. O "tempo mecânico" da música barroca, segundo Rohmer, ganha vida ao intuir seu aspecto trágico: a música deixa de ser metafísica para se tornar ontologia. Rohmer se utiliza da história da filosofia com a mesma "profundidade" com que os personagens de seu filme "Conto da Primavera" discutem em um jantar o conceito de juízo sintético a priori, o que coloca mesmo em dúvida a intenção irônica da cena.
Em meio a tanta teoria, Rohmer consegue em alguns momentos se ater à proposta inicial do livro, narrando as experiências de uma audição que resiste a um mundo poluído musicalmente: "Mas que suplício pode ser maior do que o de se sentir perseguido, caçado, numa estação, hotel ou grande loja, pela música, até mesmo a mais bela -principalmente a mais bela- saída de alto-falantes tão diabolicamente instalados que o som, onde quer que se esteja, nos alveja com a mesma intensidade?".
Quando o pendor para a teoria não atrapalha, vislumbramos o ouvinte sensível e educado narrando a experiência da audição atenta de obras como os quintetos de Mozart e os quartetos de Beethoven, um ouvinte que acredita ser preciso "falar, e gostar de falar de música". Mas o entulho filosofante acaba impedindo que essa fala se transforme em uma conversa efetiva com o leitor. O discurso do diletante teórico é tão solipsista quanto a música que ele, por razões ontológicas, critica.
Jorge Mattos Brito de Almeida é doutorando no departamento de filosofia da USP.
Folha de São Paulo
Os olhos da ontologia
08/Ago/98
Jorge De Almeida
A defesa do diletantismo em questões de arte acaba sempre invocando uma suposta visão privilegiada do amador, que se arvora em herói da liberdade de opinião contra a tirania metodológica e os limites estreitos da abordagem dos especialistas. "Todo mundo tem o direito de falar de música", escreve o cineasta Eric Rohmer no prefácio de seu livro nada humilde sobre "a noção de profundidade na música".
Educado pelos programas de rádio que popularizaram a música erudita no pós-guerra, Rohmer é um ouvinte culto, que conhece os fundamentos da arte musical e acompanha a bibliografia básica sobre as obras que comenta. Apesar disso, faz questão de frisar a todo instante as qualidades de seu olhar inocente, capaz de "ensinar alguma coisa sobre a maneira como nos chega a música".
Mas o alegado propósito do livro é desvirtuado por uma tentação tipicamente francesa, aquele pendor para a teoria tantas vezes ridicularizado nos próprios filmes de Rohmer, mas aqui assumido sem o menor constrangimento. Logo nas primeiras páginas, o "olhar inocente" do autor defende a necessidade de uma "análise eidética" da música, única maneira de evitar as insuficiências da psicologia e da cronologia. O diletante torna clara sua intenção metodológica: "Meu procedimento é da ordem da ontologia, e não da linguagem".
E como atualmente todo mundo também tem o direito de falar de ontologia, Rohmer retoma vários clichês das histórias idealistas da música, concentrando-se na comparação entre a "profundidade cósmica" do pensamento musical mozartiano e a obra de Beethoven, que se localizaria "um grau abaixo da profundidade mozartiana", pois o "amor próprio da música" cede espaço à figura do compositor, que passa a considerar a música como meio de expressão da subjetividade, algo que a ontologia não vê com bons olhos.
Os comentários de Rohmer a favor de Beethoven são de fato paradoxais. Se nos últimos quartetos Beethoven chega a igualar a "profundidade mozartiana", isso ocorre somente graças à "alegria ontológica" que se manifesta nessas obras, "até mesmo nas passagens mais graves". E se Mozart proporciona um "prazer musical incomparável", o que salva Beethoven é, "além da cor orquestral, o fato de que sua música, dentre todas, é a mais agradável a meus ouvidos". Sem medo de chocar o leitor, Rohmer passa então a discorrer sobre o conforto auditivo da música de Beethoven, que superaria até mesmo o "jorro para a luz vertiginosa do ser" da sinfonia "Júpiter" de Mozart.
Coerente com sua qualidade de amador, Rohmer destaca a importância que o ouvinte dá ao tema, em oposição aos interesses profissionais do musicólogo, que "parece inspirar-se mais no desenvolvimento do que no próprio tema, pois do primeiro é possível dizer muita coisa, ao passo que o segundo se furta à análise". E nesse aspecto Beethoven sem dúvida é superado por Mozart, já que seus desenvolvimentos exigiriam, no entender de Rohmer, "uma pesquisa que parece demandar o concurso inevitável do computador e da ciência estatística". O fato de que nesse momento o romantismo se aproxime do "belo edifício matemático do 'Cravo Bem Temperado e da Arte da Fuga'±" não é problematizado, já que, ao olhar inocente do autor, "a história da música se deixa tranquilamente dividir em três períodos, e somente três: a modal, a polifônica e a harmônica, todas as demais divisões não sendo, no meu entender, fundamentais".
Tratando-se de uma abordagem ontológica da arte musical, a relação entre música e filosofia é um tema presente em todo o livro, mas não é desenvolvido na discussão das obras. A conquista da "profundidade" em Mozart e Beethoven seria análoga à revolução copernicana de Kant. O "tempo mecânico" da música barroca, segundo Rohmer, ganha vida ao intuir seu aspecto trágico: a música deixa de ser metafísica para se tornar ontologia. Rohmer se utiliza da história da filosofia com a mesma "profundidade" com que os personagens de seu filme "Conto da Primavera" discutem em um jantar o conceito de juízo sintético a priori, o que coloca mesmo em dúvida a intenção irônica da cena.
Em meio a tanta teoria, Rohmer consegue em alguns momentos se ater à proposta inicial do livro, narrando as experiências de uma audição que resiste a um mundo poluído musicalmente: "Mas que suplício pode ser maior do que o de se sentir perseguido, caçado, numa estação, hotel ou grande loja, pela música, até mesmo a mais bela -principalmente a mais bela- saída de alto-falantes tão diabolicamente instalados que o som, onde quer que se esteja, nos alveja com a mesma intensidade?".
Quando o pendor para a teoria não atrapalha, vislumbramos o ouvinte sensível e educado narrando a experiência da audição atenta de obras como os quintetos de Mozart e os quartetos de Beethoven, um ouvinte que acredita ser preciso "falar, e gostar de falar de música". Mas o entulho filosofante acaba impedindo que essa fala se transforme em uma conversa efetiva com o leitor. O discurso do diletante teórico é tão solipsista quanto a música que ele, por razões ontológicas, critica.
Jorge Mattos Brito de Almeida é doutorando no departamento de filosofia da USP.
Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário