JOSÉ LUIS CARDOSO
A literatura mercantilista portuguesa
08/Ago/98
Antonio Penalves Rocha
Uma das novidades da historiografia portuguesa do nosso tempo reside nas conquistas de conhecimento obtidas pelas investigações no campo da história do pensamento econômico. Na dianteira delas atuam dois historiadores: José Luís Cardoso e António Almodovar, que aliás, a quatro mãos, lançaram no começo do ano "A History of Portuguese Economic Thought" (Routledge).
No entanto, José Luís Cardoso já havia publicado outro livro, "Pensar a Economia em Portugal", que merece ser apresentado não só pela qualidade do trabalho, mas também pelo que pode oferecer para a melhor compreensão de uma época em que o Brasil e Portugal formavam uma única entidade. Professor de história do pensamento econômico na Universidade de Lisboa, Cardoso escreveu também "O Pensamento Econômico em Portugal nos Finais do Século 18" (Estampa, 1989) e dirige um trabalho monumental de reedição, com dezenas de volumes já publicados: as "Obras Clássicas do Pensamento Econômico Português" (Banco de Portugal).
"Pensar a Economia em Portugal" tem a intenção manifesta de ser um livro dirigido "especialmente a historiadores e economistas" e reúne ensaios sobre o pensamento econômico português entre meados do século 16 e fins do 19, com o intuito de compreender, do ponto de vista histórico, os fundamentos da cultura econômica em Portugal.
No que concerne à organização formal do livro, seus capítulos derivam de dez ensaios que, por tratarem de objetos presentes em diferentes ocasiões da história, foram ordenados cronologicamente.
Os dois primeiros ensaios ocupam-se do pensamento econômico durante o primeiro século de vida do império colonial português. Inicialmente, "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto é submetido a uma leitura econômica, que permite ao autor extrair elementos para provar que a intensificação da prática do comércio português no Oriente, durante a segunda metade do século 16, gerou uma nova visão de mundo e uma "ética mercantil de feição individualista". Em seguida, textos de João de Barros, Pedro de Santarém, Fernão Rebelo e Damião de Góis são usados para testemunhar o aparecimento de um novo discurso ligado às mudanças econômicas e sociais decorrentes do comércio ultramarino. Cardoso descobriu nesses textos uma conceituação do mercado como lugar de realização de interesses individuais e públicos, uma compreensão embrionária da teoria quantitativa da moeda, a ponderação das vantagens e desvantagens dos monopólios e um esforço doutrinal para legitimar os ganhos individuais provenientes da atividade mercantil.
O livro prossegue examinando os textos da literatura mercantilista portuguesa. Primeiramente, trata das reflexões econômicas de escritores da segunda metade do século 16 -Padre Antônio Vieira, Manoel Severin de Faria e Duarte Ribeiro de Macedo- que, durante a guerra da Restauração, elaboraram propostas para recuperar a economia portuguesa e trataram dos temas recorrentes da literatura mercantilista como balança de comércio, impostos, população, moeda e indústria. A seguir, faz um exame das opiniões em Portugal, entre o último quarto do século 17 e primeiro do 18, sobre a relação entre luxo e possibilidades da manufatura portuguesa, demonstrando que houve também entre os portugueses uma "visão desapaixonada do luxo", parecidas com as posições assumidas por Montesquieu, Hume e Adam Smith sobre a mesma matéria.
Os capítulos 5 e 6 avaliam aspectos de uma nova fase do pensamento econômico português, marcada por manifestações de recusa do papel tutelar do Estado mercantilista. No estudo sobre as viagens e o mapeamento de Portugal e colônias, feitos para a obtenção de dados sobre o sistema produtivo e recursos naturais, o autor mostra que a vistoria dos peritos atendia a um dos imperativos da economia de mercado: a "tomada de consciência sobre a territorialidade da relações mercantis". No texto seguinte, encontra-se uma análise das oscilações da obra de J. J. Rodrigues de Brito entre o sistemas fisiocrático e o de Adam Smith e as relações que manteve com o modelo político do despotismo esclarecido.
A seguir, Cardoso revela um aparente paradoxo dos deputados das Cortes Constituintes de 1821 e 1822: ao mesmo tempo que recorreram à economia política de princípios do século 19 para projetar e legitimar mudanças econômicas e sociais, promulgaram, no fim das contas, uma legislação protecionista. Estudando os termos dessa oposição, o autor demonstra que os princípios da economia política liberal eram inaplicáveis a Portugal e os deputados apenas os subordinaram às circunstâncias históricas.
Os capítulos seguintes analisam a adaptação dos cânones da economia política à realidade nacional portuguesa. Solano Constâncio foi uma figura extraordinária do pensamento econômico português; não só fez a primeira tradução para o francês de Malthus, Ricardo e Godwin, como também escreveu sobre temas econômicos. Cardoso inventaria os pontos de convergência e divergência entre o pensamento de Constâncio e as leis que se pretendiam universais da economia clássica. Mas não é este o único autor português do século 19 que deu relatividade à economia política: de outro modo, Oliveira Martins fez o mesmo, conforme mostra o livro ao tratar de textos poucos examinados de sua autoria.
Esse perfil do livro parece ser suficiente para que se tenha uma idéia da diversidade dos objetos e dos métodos a eles aplicados por José Luís Cardoso. Tal diversidade, contudo, foi um procedimento conscientemente adotado com o objetivo de operar com a "interdisciplinaridade das ciências sociais e humanas". E ela não representa ameaça alguma à unidade do livro, alinhavada por determinados pressupostos teóricos que conduziram à investigação dos diferentes objetos: para o autor a história do pensamento econômico é considerada como uma disciplina de fronteira, empenhada na "1) verificação e reconstituição da evolução interna da ciência econômica e seus conceitos definidores; 2) compreensão dos sentidos da ação daqueles que mais decisivamente contribuíram para o avanço do conhecimento da realidade econômica, tendo em atenção as envolventes e condicionantes de natureza institucional, social e cultural; 3) contextualização histórica das vidas, discursos e percursos de autores do passado, que assim adquiram também o estatuto de testemunha de uma época que se transforma em objeto de investigação".
Por isso mesmo, o capítulo final desempenha um papel central dentro desse conjunto ao enfrentar a questão de por que de fazer uma história do pensamento econômico em nações que ocupam uma posição periférica em relação aos grandes centros de produção da teoria econômica.
Enfim, considerando a atualização da bibliografia, a riqueza das fontes históricas utilizadas e o rigor empregado na análise, "Pensar a Economia em Portugal" presta serviço relevante para consolidar a história do pensamento econômico como um ramo historiográfico em Portugal. Para nós, brasileiros, o livro também assume importância, pois, ao lidar com objetos que fazem parte de um patrimônio histórico que compartilharmos com os portugueses, fornece elementos para compreensão de aspectos do presente. A propósito, o ponto de partida dessa compreensão antecede a leitura do livro, muito embora dependa da sua existência, e está numa única e simples pergunta: por que não há uma história do pensamento brasileiro?
Antonio Penalves Rocha é professor do departamento de história da USP.
Folha de São Paulo
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