sábado, 8 de novembro de 2008

MODERNA DRAMATURGIA BRASILEIRA

SÁBATO MAGALDI
De Oswald aos nossos dias
08/Ago/98
Maria Sílvia Betti

Sessenta anos da história da dramaturgia brasileira encontram-se representados neste livro de Sábato Magaldi, reunião e sistematização de textos escritos ao longo de sua carreira como crítico e estudioso do teatro brasileiro. Cobrindo uma gama diversificada de autores e estilos, a compilação aqui apresentada complementa o "Panorama do Teatro Brasileiro" (Global) e discute mais detalhadamente uma seleção de autores representativos da dramaturgia nacional da segunda metade do século. O trabalho de Sábato é, ao mesmo tempo, um importante registro do modo como a dramaturgia tratou questões que marcaram o debate cultural nos diferentes momentos da história do país desde o início dos anos 30, com Oswald de Andrade, até meados dos anos 90.
Sendo Sábato um dos críticos mais assíduos, prolíficos e preocupados com a consistência das análises, a publicação de seu livro é oportuna pelo fato de proporcionar tanto importantes subsídios para quem pesquisa quanto informação e embasamento para quem deseja travar contato com os principais autores e temas da literatura dramática do país.
O ponto de partida é a discussão dos mais importantes marcos da modernidade dramatúrgica do país: Oswald de Andrade, com "O Rei da Vela", de 1933, e Nelson Rodrigues, com "Vestido de Noiva", encenado em 1943.
O rol de autores e trabalhos apresentados a partir daí é ordenado em sequência cronológica, abrangendo nomes já consagrados (como Ariano Suassuna e Jorge Andrade); os principais dramaturgos de esquerda (Boal, Guarnieri, Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho); os jovens das gerações dos anos 60 e 70, muitos dos quais então em processo formativo (José Celso, José Vicente, Leilah Assunção, Braulio Pedroso, Isabel Câmara, Consuelo de Castro, Maria Adelaide Amaral); e até mesmo autores responsáveis por peças de êxito comercial, normalmente vítimas do preconceito acadêmico (casos, por exemplo, de "A Infidelidade ao Alcance de Todos", de Lauro César Muniz, e de "Meno Male" e "Caixa 2", de Juca de Oliveira). Acrescentem-se autores cujos talentos não tiveram ainda a ressonância de que Sábato os considera merecedores (casos de José Eduardo Vendramini, autor de textos inéditos no circuito profissional, de Edla van Steen, de Mara Carvalho e de Alberto Guzik).
Via de regra Sábato procura evitar formulações excessivamente valorativas e tende a uma investigação mais sistematizadora e analítica das obras que enfoca, ainda que alguns textos da primeira fase de sua carreira apresentem um peso adjetivante maior -é o que se verifica, por exemplo, nas críticas relativas à peça "A Moratória", de Jorge Andrade, ao espetáculo "Procura-se uma Rosa" (no tocante ao texto escrito por Vinícius de Moraes) e à peça "A Incubadeira", de José Celso. Pode-se apontar ainda, como característica de sua crítica, a forma cautelosa de lidar com os limites conceituais, principalmente ao tratar de textos resultantes de incursões no território do épico: é o que ocorre, por exemplo, na análise de "O Sumidouro", de Jorge Andrade, cuja utilização de projeções de filme é descrita como fruto da "não observância da pureza dramática do espetáculo".
Contrabalançando esses momentos de contenção analítica, têm-se, paralelamente, exemplos de aberta e apaixonada apreciação de textos considerados obras-primas, como "Rasga Coração" e "Papa Highirte", de Oduvaldo Vianna Filho, "Dois Perdidos Numa Noite Suja" e "Navalha na Carne", de Plínio Marcos, ou "A Pena e a Lei", de Ariano Suassuna, este definido por Sábato como texto de "vanguarda do teatro brasileiro" por conter "a súmula do popular e do erudito". Não se pode, ainda, no tocante ao componente político da função exercida por Sábato, omitir sua posição, aqui extensivamente registrada, diante das arbitrariedades da censura, que então alijava da cena textos premiados de Oduvaldo Vianna Filho e de Plínio Marcos, entre outros.
O pensamento crítico de base vai, assim, ganhando contornos e se fazendo tangível: para Sábato a função dos criadores é encontrar as expressões paradigmáticas de seu próprio tempo, pois só assim suas obras poderão sobreviver artisticamente. Os modelos clássicos tenderiam a permanecer precisamente pelo fato de corresponderem a verdades contidas apenas em sua civilização. Da mesma forma, os movimentos cênicos duradouros seriam precisamente aqueles que, tendo raízes na dramaturgia nacional, mostram-se capazes de transcender aquilo a que ele se refere como o "primarismo" do nosso realismo social, tanto mediante a combinação de estilos como a incorporação da teatralidade, desenvolvendo ao mesmo tempo um processo de reflexão crítica que contemple também, em algum momento, as razões dos antagonistas.
Em termos concretos, esse conjunto de características se mostra presente, para Sábato, em inúmeros momentos da dramaturgia de Nelson Rodrigues e de Jorge Andrade: o primeiro em termos mais amplos, pela apreensão dramatúrgica do "caráter" do país, e o segundo, particularmente em "O Sumidouro", pela consecução daquilo que Sábato aponta como "a primeira definição teatral do homem brasileiro".
Um dos impasses do desenvolvimento da dramaturgia brasileira é, para ele, a falta de domínio técnico de grande número de autores. O teatro de um dramaturgo prolífico e empenhado como Dias Gomes, por exemplo, rico de potencialidades críticas e expressivas, dá ensejo a um debate estético de difícil conclusão, deixando de realizar sondagens mais profundas e incorrendo, com frequência, na utilização de lugares-comuns e interpretações maniqueístas e simplificadoras.
Por outro lado, a aplicação exterior de convicções políticas em "Milagre na Cela", de Jorge Andrade, não parece artisticamente convincente a Sábato, apesar da inegável competência dramatúrgica de Jorge. Sem incorrer no risco de prescrever fórmulas prontas, Sábato aposta no estímulo à diversidade e descarta o exclusivismo de caminhos e soluções: assim, ao mesmo tempo em que considera salutares as incursões dramatúrgicas pelas sendas da não-linearidade de construção do enredo (casos de "Rasga Coração" e "Papa Highirte", de Vianinha, e de "Sinal de Vida", de Lauro César Muniz, entre outras), elogia a concentração espaço-temporal de "Navalha na Carne" e de "Dois Perdidos Numa Noite Suja", de Plínio Marcos.
Recentemente, um importante encenador de projeção internacional declarava considerar morto o veio de espetáculos apoiados sobre a existência de um texto dramatúrgico. Lendo o livro de Sábato, tomamos a liberdade de discordar, ao constatar como se mostra rico e instigante o processo de reflexões desencadeadas pela dramaturgia e ao verificar quantas cruciais questões se colocam diante de nós a partir da criação dramatúrgica, quer sob a perspectiva de quem cria e atua, quer sob a de quem assiste e estuda.
Maria Sílvia Betti é professora do departamento de letras modernas da USP e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp)


Folha de São Paulo

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