sábado, 8 de novembro de 2008

OS MELHORES POEMAS DE DANTE MILANO

Bilhete de suicida
08/Ago/98
Heitor Ferraz

Manuel Bandeira dizia que a poesia de Dante Milano era como bilhete de suicida. Quase todos os poemas parecem mesmo ser o último, o definitivo, fechado em si, como um pequeno e bem acabado estojo, por onde circulam amor, morte e solidão -temas centrais dessa poesia. Milano nunca se desligou das formas fixas, do gosto clássico, manejava o verso com enorme naturalidade, não deixando arestas ou palavras bicando a página. Tudo, em sua poesia, se resolvia num arredondamento do poema. Mas, mesmo com todo esse talento, ainda é pouquíssimo conhecido.
Milano foi, entre os poetas desse século, o mais arredio à publicidade de seu trabalho, tanto é que seu primeiro livro foi publicado um pouco à sua revelia, como contam seus colegas e os especialistas em sua obra. O livro saiu em 1948, quando Milano estava beirando os 50 anos. "Um amigo, Queirós Lima, pediu-lhe emprestado os originais e levou-os para a Imprensa Nacional. Cerca de dois meses depois reapareceu com as provas e solicitou ao poeta que fizesse as emendas. Mas estas foram tantas que a Imprensa Nacional recusou-se a publicar o volume", conta Ivan Junqueira, na introdução deste volume. "Um ano depois, entretando, em 1948, o livro foi editado pela José Olympio, tornando-se, como na época se comentou, o maior acontecimento literário do ano, tendo recebido o Prêmio Filipe de Oliveira."
Surgiram outras edições, porém a definitiva só apareceu em 1979, organizada por Virgílio da Costa, acrescida de poemas inéditos, das traduções que Milano fez de Dante e Baudelaire, além de ensaios, crônicas e uma boa fortuna crítica, com textos assinados por Sergio Buarque de Hollanda (responsável pela mais bela análise feita sobre a poesia de Milano), Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Franklin de Oliveira e Augusto Frederico Schmidt.
Milano, que morreu aos 91 anos, em 1991, foi de fato um poeta atípico dentro do modernismo brasileiro. Muitos críticos preferem dizer que ele não poluiu sua poesia com os cacoetes modernistas, que soube preservá-la da linguagem misturada e despojada do período; que o movimento modernista veio encontrá-lo, em 1922, com o gosto e poética formados. Entretanto, sempre gerou curiosidade sua não adesão ao modernismo, já que ele conviveu e foi muito amigo de Manuel Bandeira, Aníbal Machado, Portinari, Villa-Lobos e tantos outros.
Provavelmente a linguagem coloquial, a busca de temas urbanos, a mistura com a fala e a cultura populares não se enquadravam com sua visão de poesia. Milano foi um poeta da essencialidade, sua linguagem, como salientou Sergio Buarque de Hollanda, no ensaio "Mar Enxuto", "aprimorada na familiaridade com os italianos do Trezentos e do Quinhentos, com o lirismo camoniano, com as experiências do simbolismo e do pós-simbolismo, não tinha certamente o que perder, mas também não tinha o que ganhar da vizinhança imediata daqueles revolucionários".
Porém, é importante notar como essa vizinhança deu à poesia de Milano uma linguagem mais clara, límpida, também sem os cacoetes da oratória parnasiana. E abriu sua obra para diálogos interessantes. É comum na leitura de seus poemas, mesmo os que se encontram na atual antologia feita por Junqueira, perceber que Milano manteve vivo diálogo com seus contemporâneos, como Bandeira, Drummond e Murilo Mendes.
Em uma de suas seções, "Terra de Ninguém", Milano se mostra um poeta sensível aos acontecimentos de seu tempo. Solapam em cada página visões de guerra, com todo um arsenal linguístico que muitas vezes nos remete às imagens desconcertantes de Murilo Mendes, como "as sirenes uivam desvairadas" ou "um vulto debruçado sobre as águas/ contempla o mundo náufrago". Nessa série, representada com seis poemas na atual antologia, o poeta -que nunca se rendeu aos fatos, a ponto de citá-los claramente, como acontecia em Drummond, em "Rosa do Povo"- mostra-se perplexo diante da guerra, não a pontuada Segunda Guerra Mundial, mas o fenômeno em si da guerra e da impossibilidade de a poesia conter toda essa violência: "Cala, poesia,/ A dor dos homens não se pode exprimir em nenhuma língua".
Como homem do seu tempo, a convivência com esses amigos o ajudaram a formar uma das linhas de força de sua obra. Isso se deu, por exemplo, no contato com seu companheiro de boemia carioca, Jaime Ovalle, bastante conhecido tanto pelas crônicas quanto pelos poemas a ele dedicados por Manuel Bandeira. Ovalle, que Bandeira chamava de "o místico", acabou inspirando um conto de Dante Milano, "O Manequim", em que o poeta conta a história de um sujeito que caiu de amores por uma manequim vestida de noiva, "um buquê nas mãos, o olhar extático, a boca entreaberta".
Essa história tem sua origem num fato real, como o próprio poeta contou em entrevista a Denira Rozário: "Ele (Ovalle) realmente se apaixonou por esse manequim e passava todas as tardes para vê-lo, depois de sair do trabalho. (...) É isso que, mais ou menos, significa um amor sem objeto, e era um amor verdadeiríssimo".
E é "mais ou menos" essa a concepção amorosa que encontramos na poesia de Milano, "amor, amor sem objeto,/ que anda à procura de amor". Ou, como disse em outro poema, em homenagem a Camões: "Através de imitado sentimento,/ Ao ler-te, quanta vez tenho sentido/ Como é muito maior o amor vivido/ Em ato não, mas só em pensamento". Em mais de um momento nessa poesia o amor não "se expande em dois", "mas arde solitário". É um amor pelo conceito do amor e pelo o que é belo em si mesmo. Como alguém que parasse diante de uma estátua e a admirasse.
Esse amor pela escultura, em Milano, parece ser extremamente importante: a sua construção poética sempre é muito plástica, com aquele "minuto vivo de beleza", de que falava Mário de Andrade sobre a arte da estatuária. Vale lembrar de passagem que o próprio poeta se dedicou à escultura, chegando mesmo a confeccionar o busto do poeta Manuel Bandeira e alguns outros. Com essa plasticidade, o poeta arma paisagens, imaginárias ou não, para dar fluxo ao seu pensamento poético e desencantado do mundo.
Seu horizonte está sempre habitado por "nuvens, montanhas de expressões distantes", "uma nuvem -um monumento/ Em memória do esquecimento". Essas e outras imagens são "imagens recorrentes de perplexidade de um ser desmemoriado, perdido em si mesmo, errante nas distâncias desproporcionadas de uma terra de ninguém", como escreveu Davi Arrigucci Jr. no artigo "Dante Milano - A Extinta Música" (Folha de 20/4/91).
A atual antologia traz uma amostra dessa poesia de versos claros e plásticos, que procurou dar forma a um pensamento original. Porém, o leitor de Milano sente falta de alguns poemas importantes, como "Jardim Público", "Paragem" (que dialoga com os bois da poesia de Drummond de Andrade), "Passeio de Mãos Dadas", "Enumeração" e "Duplo Olhar", só para ficar com alguns. Mas antologia é antologia, e o que as rege é o gosto pessoal do organizador. De qualquer forma, "Os Melhores Poemas de Dante Milano" é uma bela porta de entrada nessa poética ainda pouco conhecida e que é sem dúvida uma das mais belas da poesia brasileira moderna.
Heitor Ferraz é jornalista, poeta e autor de "Resumo do Dia" e "A Mesma Noite".


Folha de São Paulo

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