sábado, 8 de novembro de 2008

BRASILEIRAS CÉLEBRES

JOAQUIM NORBERTO
Galeria de senhoras
08/Ago/98


SÍLVIA MARIA AZEVEDO
Dentre as profundas transformações operadas pelo romantismo, a percepção do homem como ser histórico foi de importância decisiva no desenvolvimento da tradição intelectual européia e americana. No período romântico, a prática histórica passa a designar não a ação isolada de um homem abstrato, mas a atuação de indivíduos que encarnam antes uma vontade coletiva que individual. Parceiro no processo de pluralização da história, o conceito de nação ou pátria vai atuar como poderosa idéia-força no sentido de compreender e aglutinar as sociedades em comunidades, nações, raças. Isso explica por que o estudo da "personalidade coletiva" ou espírito nacional tenha se constituído, durante o romantismo, em objeto privilegiado das pesquisas históricas.
Trazidos para os trópicos, o culto da história e a teoria do espírito nacional foram adequados às particularidades e necessidades das sociedades locais. A idéia de nação, em terras americanas, a exemplo do Brasil, além de reafirmar a identidade e a autonomia de grupos regionais, revestiu-se de caráter ufanista e, em vários momentos, esteve muito próxima da xenofobia. A configuração dessa idéia de pátria, enquanto expressão de nacionalismo, se manifesta com particular ênfase no momento em que os países latinos e ibero-americanos cortam os laços de dependência política em relação às metrópoles européias.
A aliança entre historicismo romântico e nacionalismo foi responsável por um verdadeiro surto da narrativa histórica que assolou as Américas, hispânica e latina, durante os anos de 1839 a 1880. Nesse período, em que a temática histórica invade todos os discursos, inclusive, o literário, e neste, todos os gêneros (teatro, novela, poesia), desfazendo os limites entre a história "strictu sensu" e a ficção narrativa, são escritas as grandes histórias nacionais, as primeiras histórias literárias, as biografias das celebridades pátrias.
No Brasil, um bom exemplo da explosão do gênero biográfico, na época do romantismo, é a obra "Brasileiras Célebres", de Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891), escritor cujo nome encontra-se associado a vasta produção de caráter marcadamente histórico. Originalmente, o trabalho de Norberto foi publicado na "Revista Popular" (1859-1862), periódico carioca identificado com o ideário romântico-nacionalista. Na composição do livro que sairá em 1862, o autor vai reaproveitar quase todos os textos da publicação esparsa, reagrupando-os em sete capítulos, cujos títulos merecem ser conhecidos: "Amor e Fé", "Armas e Virtudes", "Religião e Vocação", "Gênio e Glória", "Poesia e Amor", "Pátria e Independência" e "Louvor e Crítica". Um painel dos principais acontecimentos da história do Brasil, desde o descobrimento até o império, antecede os capítulos e cumpre a função de traçar o caráter historicamente determinado da sociedade brasileira. Quem assina o prefácio das "Brasileiras" é o próprio editor do livro, B.L.Garnier.
Ao denominar a obra de "galeria das senhoras dignas de celebridade", Garnier inscrevia o trabalho de Norbeto na tradição das "galerias" ou "panteões", que se instaurou no Brasil pós-independência, cujo objetivo era buscar no passado do país exemplos de moralidade e rigor patriótico. "Os Varões Ilustres do Brasil Durante os Tempos Coloniais", de João Manoel Pereira da Silva, "Biografias de Alguns Poetas e Homens Ilustres da Província de Pernambuco", de Antonio Joaquim de Melo, e "Panteon Maranhense", de Antonio Henriques Leal, são alguns dos títulos da vasta galeria de brasileiros famosos.
A novidade das "Brasileiras" em relação a essa tradição biográfica estava no resgate da figura feminina enquanto partícipe das tarefas fundamentais na constituição de uma sociedade em formação. Em contraposição à visão misógina da burocracia eclesiástica colonial, cujo conhecimento do mundo feminino se circunscrevia à perspectiva mística, os intelectuais românticos e progressistas, no interesse de recuperar a imagem da família e do matrimônio feliz, investiram a mulher da nobre tarefa de atuar na simbiose de mãe-pátria. Um exemplo significativo dessa aliança é representado por Dona Maria de Souza, nobre pernambucana, "talhada no molde das antigas Espartanas", que, depois de perder o genro e três filhos na luta contra os holandeses invasores, ainda manda outros dois para a guerra.
As mulheres, melhor dizendo, as brasileiras, foram chamadas a colaborar na realização do ideário patriótico e independentista não apenas enquanto mães mas também como guerreiras, como foi o caso de Dona Maria de Medeiros, valente baiana do Recôncavo, que em "trajos varonis", foi lutar pela pátria, ameaçada de perder a soberania recém-conquistada para as tropas portuguesas rebeldes. Exemplo ainda mais elevado de abnegação feminina ao país foi de outra senhora baiana, madre Joana Angélica, "a freira mártir", vítima da insânia sanguinária dos portugueses que, no século 19, ousaram profanar o convento da Lapa.
Importante aliado do programa romântico brasileiro, o cristianismo não apenas ofereceu a sua cota de mulheres mártires à causa nacionalista, houve também os modelos de "amor e fé", como os das índias convertidas, Catarina Álvares e Damiana da Cunha: a primeira, menos conhecida pelo nome cristão de batismo, é como Paraguaçu que foi imortalizada por Santa Rita Durão no poema "Caramuru"; a segunda, retrato da "mulher missionária", colaborou com os portugueses na captura dos irmãos Caiapós.
A missão de Joaquim Norberto enquanto historiador a serviço do projeto romântico-nacionalista brasileiro estaria completa quando a obra "Brasileiras Célebres" fosse adotada pelas escolas, como propunha Garnier no prefácio. Por sua vez, as brasileiras agraciadas de "gênio" poderiam colaborar junto às instâncias educacionais se escrevessem obras úteis à sociedade, exemplo de Dona Gracia Hermelinda da Cunha Matos, autora de uma coleção de máximas, "oferecida às meninas brasileiras". Desde a infância, as crianças deviam aprender a amar o Brasil e se inspirar, no caso das meninas, nas celebridades femininas do passado, para a eficácia do programa nacionalista.
Se Norberto apenas soube enxergar nas brasileiras exemplos de virtude e heroísmo, os viajantes estrangeiros que, no século 19, nos visitaram, viram-nas como mulheres que, afastadas dos campos de batalha, viviam confinadas em casa, vigiadas por maridos ciumentos. O retrato, mais digno de inspirar "crítica" do que "louvor", fala de uma outra história das mulheres brasileiras, história que muito se afasta das mistificações romântico-patrióticas.
Sílvia Maria Azevedo é professora de teoria literária na Universidade Estadual Paulista (Unesp-Assis).


Folha de São Paulo

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