JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA
Nosso pai fundador
08/Ago/98
Carlos Guilherme Mota
Nesta quadra histórica em que tanto se discute a problemática da globalização, não por acaso publicam-se obras que reacendem a reflexão sobre a formação do pensamento nacional. Não por acaso, também, preenche-se agora uma lacuna significativa, com a edição desta importante coletânea com alguns projetos e idéias de José Bonifácio. Pois o silêncio à volta do patriarca deve possuir razões que a própria razão (palavra que ele tanto veiculou) desconhece, principalmente numa região do planeta em que se cultiva um acendrado conceito de cultura, cuidadosa com as "nossas coisas", "raízes", "retratos", "descobridores" e incontáveis "precursores". Ora, José Bonifácio foi um dos principais -para não dizer o principal- formulador de uma idéia de Brasil enquanto nação "in statu nascendi". Tudo o que estava no ar, inclusive a "utopia do poderoso império", para evocarmos o título do belo livro de Maria de Lourdes Viana Lyra, foi dialetizado pelo arguto Bonifácio.
Entende-se, nessa perspectiva, que a imagem do Patriarca não tenha sido muito cultivada pela República em seus começos, visto ter sido ele, embora reformista bastante avançado para seu tempo (mais que os republicanos da América do Norte), um monarquista constitucional de resultados (como se diria hoje). Após o golpe de Estado de 1964, o novo sistema se apropriou de sua imagem envelhecida e solene, em detrimento de lideranças revolucionárias da época da Independência, como o "enragé" Cipriano Barata de Almeida, ou o Frei Caneca.
Em contrapartida, os dois rebeldes respondiam mais aos reclamos históricos dos movimentos das esquerdas da época da ditadura, que erigiu Pedro 1º e Bonifácio como paradigmas, dessocializando-os e enfatizando seus "aspetos fortes", centralizadores e por assim dizer "nacionais". Já agora, quando tais autoritarismos vão ficando para trás (descobrindo-se outros, é verdade), parece iniciar-se o descongelamento dos "heróis de nosso panteão" e o reconhecimento de sua riquíssima e variada dimensão histórica e humana, surgindo novas abordagens, como a que Miriam Dolhnikoff oferece de nosso ilustrado fundador.
Hoje, conhecem-se melhor os altos e baixos da vida de Bonifácio e tem-se acesso aos seus projetos para o Brasil, tudo apreciado em dimensão menos mítica. Sabe-se mais sobre sua infância em Santos e adolescência nas bibliotecas religiosas em São Paulo, depois suas viagens de pesquisa na Europa, inclusive na França revolucionária. Para o estudo de sua formação ideológica, conhece-se o entrevero com a Inquisição e os embates com forças de toda ordem (indo para o exílio, em charrua precária, foi perseguido à morte pela polícia francesa de Chateaubriand, tendo sido salvo de afundamento em Vigo), inclusive no exílio e, mais tarde, no ostracismo, suas diferenças com republicanistas. E se esclarecem lances dramáticos de sua vida, como a segunda viagem de retorno ao Brasil na volta do exílio, quando morre a bordo sua mulher, a irlandesa Narcisa O'Leary. Da mesma forma, sua atividade de poeta árcade e publicista iracundo, a relação com os irmãos (era sogro de seu próprio irmão Martim); a condição de dono de imensa biblioteca, marcado por espírito brincalhão e dançarino; os desencontros e reencontros com os Braganças; seu conceito de poder, de universidade e seu altíssimo prestígio internacional; o conspirador na velhice e, finalmente, a morte em Niterói desse artífice da construção nacional.
Sabemos que a "Nação" é uma construção ideológica, mas que se fabrica com ingredientes, receituário e embates de cada época: para equacionar os conflitos do império, Bonifácio, como se percebe nesta coletânea, foi um dos principais forjadores de uma idéia original de povo, de território, de Estado, de cultura e de diplomacia (ele pode ser considerado o pai de nossa política externa). Não por acaso, suas leituras incluíam, além de mineralogistas e químicos, escritores e pensadores que também pensaram o Estado, a política e a cultura, dos clássicos -Tito Lívio, Tácito, Plutarco, Sêneca e Cícero- a Voltaire, Fenélon, Gibbon, Schelling, Herder, Hume. Nota-se mais: detestando os clérigos e criticando os hábitos portugueses, e apesar de sua formação européia, tinha um olho posto nos EUA, nação republicana construída por intelectuais-políticos do porte de Franklyn e Jefferson.
Com estes "Projetos Para o Brasil", retorna à pauta de discussões a antiga "questão nacional". A publicação de textos do punho de Bonifácio inclui estudos sobre a abolição da escravidão, sobre os índios, Estado, a propriedade e reformas, povoamento e "caráter dos brasileiros" (e portugueses), sobre liberdade, Constituição e revolução, sobre a nobreza, Pedro 1º ("rapaz mal-educado") e o Estado político da jovem Nação, sobre economia e pobreza. E uma série de reflexões quando menos curiosas sobre literatura e o ofício de escritor, sobre filosofia, religião, mulheres, além de notas pessoais sobre leituras, sobre seu "temperamento férvido" e pensamentos soltos de valor discutível. Abre a coletânea um excelente estudo introdutório da organizadora, em que aprofunda análise anterior, "O Projeto Nacional de José Bonifácio", publicada nos "Estudos Cebrap", nº 46 (1996): demarcando seus horizontes ideológicos, constitui atualmente uma das principais súmulas sobre o conceito de política do Patriarca.
Com efeito, José Bonifácio, filho do século 18 e homem da Ilustração, foi o principal articulador de nossa Independência. Suas teorias sobre o Estado, sobre a necessidade de reformas, mas também seus limites, derivam não apenas de sua formação nas bibliotecas de São Paulo, Coimbra e Paris, mas de um invejável conhecimento do mundo, que adquiriu enquanto viajante nos quadros do reformismo ilustrado, capitaneado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, seu aparentado. Bonifácio, por seus textos, propostas, observações e muita vivência, pode ser considerado uma das maiores personalidades de seu tempo. Conhecido como o "nosso Doutor Franklyn", misto de sábio-viajante, cientista (era eminente metalurgista) e político, Bonifácio traduziu textos de Von Humboldt, conviveu e carteou-se com algumas das figuras mais eminentes da ciência da época, ligadas às linhas mais fortes do pensamento de então.
Tendo entrado tardiamente no jogo político, conseguiu desenhar, no curto período de dois anos, toda a política externa brasileira, além das bases preliminares para a existência do novo Estado. Difícil avaliar a quantidade e densidade de seu trabalho como homem de Estado, dada a enorme e fecunda documentação que produziu nesse período, que inclui cartas, decretos, mensagens e uma gama variada de anotações, papéis, bilhetes pessoais. Depois da Constituinte, alijado do poder e já no exílio em Talence, não pararia de escrever, deblaterar, conspirar, em situação financeira bem precária, opondo-se ao centralismo nada democrático do imperador Pedro. E, como se não bastasse, sendo brutalmente hostilizado -como sempre foi- pelos negreiros, os comerciantes de escravos, cujos interesses dificultaram a inserção do Brasil enquanto país independente no concerto internacional.
Esta coletânea, ao tornar acessível as idéias do fundador, dá pistas para a construção de uma certa idéia de Brasil, ou da "gênese de sua identidade", para retomarmos uma expressão de István Jancs•, o autor de "Bahia, Contra o Império" (Hucitec). Lendo o paulista, constata-se que, um século e tanto depois, Gilberto Freyre pouco inovou em termos de teorias de miscigenação ou que a iracúndia de Darcy Ribeiro não foi tão "radical" assim. Quanto ao que interessa, a história de nosso "founding father", o fato é que pouco avançou a historiografia andradina após os estudos de Otávio Tarquínio de Sousa e Vicente Barreto e as edições de textos providenciadas por Edgard Cerqueira Falcão e Octaciano Nogueira.
Mas permanece o enigma histórico-ideológico: por que a vida, a obra, as idéias provocativas e anticonvencionais (para sua época, está claro) permanecem ainda hoje à sombra, ao mesmo tempo em que seu nome se inscreve, em quase todos os manuais escolares, em todas as cidades do Brasil, nas praças, ruas e escolas, em Havana ou Nova York? Em que encruzilhadas do tempo se situam os desencontros entre o imaginário e a mitologia e os processos histórico-concretos que conduziriam -ou conduzirão- à emancipação do país enquanto povo civilizado? Ou, melhor dizendo, como reescrever essa caminhada em busca de uma sociedade democrática, cultivando ao mesmo tempo os valores culturais gestados ao longo do processo histórico e a sintonia com a diversidade que vanguardas mundiais nos trazem, como no tempo da Independência? Afinal, o pai-fundador da nação brasileira, na verdade um "avô" patriarca, distinguia-se por sua formação cosmopolita e uma mentalidade bem internacionalista.
Carlos Guilherme Mota é historiador, professor da Universidade Mackenzie e autor, entre outros livros, de "Idéia de Revolução no Brasil, 1789-1801" (Atica).
Folha de São Paulo
Nosso pai fundador
08/Ago/98
Carlos Guilherme Mota
Nesta quadra histórica em que tanto se discute a problemática da globalização, não por acaso publicam-se obras que reacendem a reflexão sobre a formação do pensamento nacional. Não por acaso, também, preenche-se agora uma lacuna significativa, com a edição desta importante coletânea com alguns projetos e idéias de José Bonifácio. Pois o silêncio à volta do patriarca deve possuir razões que a própria razão (palavra que ele tanto veiculou) desconhece, principalmente numa região do planeta em que se cultiva um acendrado conceito de cultura, cuidadosa com as "nossas coisas", "raízes", "retratos", "descobridores" e incontáveis "precursores". Ora, José Bonifácio foi um dos principais -para não dizer o principal- formulador de uma idéia de Brasil enquanto nação "in statu nascendi". Tudo o que estava no ar, inclusive a "utopia do poderoso império", para evocarmos o título do belo livro de Maria de Lourdes Viana Lyra, foi dialetizado pelo arguto Bonifácio.
Entende-se, nessa perspectiva, que a imagem do Patriarca não tenha sido muito cultivada pela República em seus começos, visto ter sido ele, embora reformista bastante avançado para seu tempo (mais que os republicanos da América do Norte), um monarquista constitucional de resultados (como se diria hoje). Após o golpe de Estado de 1964, o novo sistema se apropriou de sua imagem envelhecida e solene, em detrimento de lideranças revolucionárias da época da Independência, como o "enragé" Cipriano Barata de Almeida, ou o Frei Caneca.
Em contrapartida, os dois rebeldes respondiam mais aos reclamos históricos dos movimentos das esquerdas da época da ditadura, que erigiu Pedro 1º e Bonifácio como paradigmas, dessocializando-os e enfatizando seus "aspetos fortes", centralizadores e por assim dizer "nacionais". Já agora, quando tais autoritarismos vão ficando para trás (descobrindo-se outros, é verdade), parece iniciar-se o descongelamento dos "heróis de nosso panteão" e o reconhecimento de sua riquíssima e variada dimensão histórica e humana, surgindo novas abordagens, como a que Miriam Dolhnikoff oferece de nosso ilustrado fundador.
Hoje, conhecem-se melhor os altos e baixos da vida de Bonifácio e tem-se acesso aos seus projetos para o Brasil, tudo apreciado em dimensão menos mítica. Sabe-se mais sobre sua infância em Santos e adolescência nas bibliotecas religiosas em São Paulo, depois suas viagens de pesquisa na Europa, inclusive na França revolucionária. Para o estudo de sua formação ideológica, conhece-se o entrevero com a Inquisição e os embates com forças de toda ordem (indo para o exílio, em charrua precária, foi perseguido à morte pela polícia francesa de Chateaubriand, tendo sido salvo de afundamento em Vigo), inclusive no exílio e, mais tarde, no ostracismo, suas diferenças com republicanistas. E se esclarecem lances dramáticos de sua vida, como a segunda viagem de retorno ao Brasil na volta do exílio, quando morre a bordo sua mulher, a irlandesa Narcisa O'Leary. Da mesma forma, sua atividade de poeta árcade e publicista iracundo, a relação com os irmãos (era sogro de seu próprio irmão Martim); a condição de dono de imensa biblioteca, marcado por espírito brincalhão e dançarino; os desencontros e reencontros com os Braganças; seu conceito de poder, de universidade e seu altíssimo prestígio internacional; o conspirador na velhice e, finalmente, a morte em Niterói desse artífice da construção nacional.
Sabemos que a "Nação" é uma construção ideológica, mas que se fabrica com ingredientes, receituário e embates de cada época: para equacionar os conflitos do império, Bonifácio, como se percebe nesta coletânea, foi um dos principais forjadores de uma idéia original de povo, de território, de Estado, de cultura e de diplomacia (ele pode ser considerado o pai de nossa política externa). Não por acaso, suas leituras incluíam, além de mineralogistas e químicos, escritores e pensadores que também pensaram o Estado, a política e a cultura, dos clássicos -Tito Lívio, Tácito, Plutarco, Sêneca e Cícero- a Voltaire, Fenélon, Gibbon, Schelling, Herder, Hume. Nota-se mais: detestando os clérigos e criticando os hábitos portugueses, e apesar de sua formação européia, tinha um olho posto nos EUA, nação republicana construída por intelectuais-políticos do porte de Franklyn e Jefferson.
Com estes "Projetos Para o Brasil", retorna à pauta de discussões a antiga "questão nacional". A publicação de textos do punho de Bonifácio inclui estudos sobre a abolição da escravidão, sobre os índios, Estado, a propriedade e reformas, povoamento e "caráter dos brasileiros" (e portugueses), sobre liberdade, Constituição e revolução, sobre a nobreza, Pedro 1º ("rapaz mal-educado") e o Estado político da jovem Nação, sobre economia e pobreza. E uma série de reflexões quando menos curiosas sobre literatura e o ofício de escritor, sobre filosofia, religião, mulheres, além de notas pessoais sobre leituras, sobre seu "temperamento férvido" e pensamentos soltos de valor discutível. Abre a coletânea um excelente estudo introdutório da organizadora, em que aprofunda análise anterior, "O Projeto Nacional de José Bonifácio", publicada nos "Estudos Cebrap", nº 46 (1996): demarcando seus horizontes ideológicos, constitui atualmente uma das principais súmulas sobre o conceito de política do Patriarca.
Com efeito, José Bonifácio, filho do século 18 e homem da Ilustração, foi o principal articulador de nossa Independência. Suas teorias sobre o Estado, sobre a necessidade de reformas, mas também seus limites, derivam não apenas de sua formação nas bibliotecas de São Paulo, Coimbra e Paris, mas de um invejável conhecimento do mundo, que adquiriu enquanto viajante nos quadros do reformismo ilustrado, capitaneado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, seu aparentado. Bonifácio, por seus textos, propostas, observações e muita vivência, pode ser considerado uma das maiores personalidades de seu tempo. Conhecido como o "nosso Doutor Franklyn", misto de sábio-viajante, cientista (era eminente metalurgista) e político, Bonifácio traduziu textos de Von Humboldt, conviveu e carteou-se com algumas das figuras mais eminentes da ciência da época, ligadas às linhas mais fortes do pensamento de então.
Tendo entrado tardiamente no jogo político, conseguiu desenhar, no curto período de dois anos, toda a política externa brasileira, além das bases preliminares para a existência do novo Estado. Difícil avaliar a quantidade e densidade de seu trabalho como homem de Estado, dada a enorme e fecunda documentação que produziu nesse período, que inclui cartas, decretos, mensagens e uma gama variada de anotações, papéis, bilhetes pessoais. Depois da Constituinte, alijado do poder e já no exílio em Talence, não pararia de escrever, deblaterar, conspirar, em situação financeira bem precária, opondo-se ao centralismo nada democrático do imperador Pedro. E, como se não bastasse, sendo brutalmente hostilizado -como sempre foi- pelos negreiros, os comerciantes de escravos, cujos interesses dificultaram a inserção do Brasil enquanto país independente no concerto internacional.
Esta coletânea, ao tornar acessível as idéias do fundador, dá pistas para a construção de uma certa idéia de Brasil, ou da "gênese de sua identidade", para retomarmos uma expressão de István Jancs•, o autor de "Bahia, Contra o Império" (Hucitec). Lendo o paulista, constata-se que, um século e tanto depois, Gilberto Freyre pouco inovou em termos de teorias de miscigenação ou que a iracúndia de Darcy Ribeiro não foi tão "radical" assim. Quanto ao que interessa, a história de nosso "founding father", o fato é que pouco avançou a historiografia andradina após os estudos de Otávio Tarquínio de Sousa e Vicente Barreto e as edições de textos providenciadas por Edgard Cerqueira Falcão e Octaciano Nogueira.
Mas permanece o enigma histórico-ideológico: por que a vida, a obra, as idéias provocativas e anticonvencionais (para sua época, está claro) permanecem ainda hoje à sombra, ao mesmo tempo em que seu nome se inscreve, em quase todos os manuais escolares, em todas as cidades do Brasil, nas praças, ruas e escolas, em Havana ou Nova York? Em que encruzilhadas do tempo se situam os desencontros entre o imaginário e a mitologia e os processos histórico-concretos que conduziriam -ou conduzirão- à emancipação do país enquanto povo civilizado? Ou, melhor dizendo, como reescrever essa caminhada em busca de uma sociedade democrática, cultivando ao mesmo tempo os valores culturais gestados ao longo do processo histórico e a sintonia com a diversidade que vanguardas mundiais nos trazem, como no tempo da Independência? Afinal, o pai-fundador da nação brasileira, na verdade um "avô" patriarca, distinguia-se por sua formação cosmopolita e uma mentalidade bem internacionalista.
Carlos Guilherme Mota é historiador, professor da Universidade Mackenzie e autor, entre outros livros, de "Idéia de Revolução no Brasil, 1789-1801" (Atica).
Folha de São Paulo
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