sábado, 8 de novembro de 2008

RENTE

JOÃO BANDEIRA
Uma poética da simetria
08/Ago/98


Alberto Martins
O contato do leitor com a poesia de João Bandeira, nesta que é a primeira coletânea de suas obras, se inicia já mediante a capa. Uma foto ampliada da pele do antebraço do autor cobre frente e verso do volume e ambas as orelhas. Sobre essa extensão cinza-azulada, que pode lembrar tanto o movimento das ondas visto à distância como as nervuras de uma folha vistas de muito perto, se destaca -impresso em laranja e estampado em alto-relevo- o título: "Rente".
Uma rápida incursão pelo interior do volume confirma a apresentação. O uso apurado de tipologia, recursos gráficos, espaçamentos, transparências, fotos, reflexos e espelhamentos anuncia de forma incisiva que, tanto quanto a natureza fono-semântica da língua -que se faz presente em belos e breves poemas no início do livro-, interessam ao autor os recursos visuais e táteis que possam a ela se associar. Como se, voando rente à superfície do código verbal, o poeta colhesse aí núcleos, pausas, pontos, lacunas e possibilidades, onde -como nota Arnaldo Antunes na abertura- "o ar entre as palavras faz atentar para cada sentido que passa à procura de um sentido que passa por outro sentido que. Quase pousa".
Construída assim de pausas e deslocamentos, de plasticidade e música, é preciso observar que a poesia de João Bandeira realiza, com grande habilidade, aquilo a que se propõe realizar. Uma sensibilidade apurada se revela tanto no emprego da sonoridade, em que cada sílaba soa por si com nitidez musical, quanto na disposição de elementos gráficos, ou ainda no uso de contrastes e cores, como no forte poema "Lúcia/ lux". Fundamental, neste sentido, é o esmerado acabamento do livro, que não constitui aqui adorno ou luxo vazio, mas sim fidelidade ao projeto estético do autor.
No entanto, aquilo que é qualidade, por um lado, bem pode ser problemático, por outro. O primeiro poema de "Rente", que tem por título o sinal gráfico ":", vai direto ao cerne da questão. No centro da página, alongados em intensa anamorfia, oito ou nove caracteres se apresentam a tal ponto distorcidos que a frase que compõem se mostra, à primeira vista, ilegível. O leitor terá que atravessar o ritmo quase hipnótico da distorção (cujo efeito final lembra muito um código de barras, pontuado por acentos agudos) para descobrir que tal tratamento visual vem corroborar o espelhamento sonoro já existente na proposição -que, afinal, se decifra: "O eu é o nó ou nós o é".
A simetria, como se vê, será um procedimento central dessa poética. Mas as possibilidades do espelhamento entre o eu e a língua, entre a língua e o mundo, entre a língua e a língua -e corro aqui todos os riscos de cometer um equívoco- se limitam a uma economia de cunho narcísico. Só nesse regime, a linguagem será espelho e, então sim, todos os jogos do espelho serão jogos de linguagem -a desnudar ao todo um tesouro de possibilidades verbo-virtuais. Acervo riquíssimo, sem dúvida, mas que se reduz à espessura da lâmina de uma superfície: aquela que reflete.
Uma vez fora do raio desse foco, adquire uma complexidade de outra natureza o modo pelo qual a linguagem se inscreve no mundo e o mundo se inscreve, se representa e se presentifica na linguagem. É aí que a língua, sob a pena de encerrar-se num brilhante jogo de reflexos que passa ao largo da realidade, terá de dar abrigo a todas as opacidades -desejáveis e indesejáveis-, como o outro, os outros, o tempo, a história. No fundo, o que se quer indagar aqui é se, ao operar tão "rente" à superfície do código, ao investir alta dose de sua energia poética na investigação das superfícies, de seus ecos e desdobramentos, não estaria o poeta deixando escapar possibilidades de uma operação mais abrangente sobre o real.
Talvez seja o caso do poema XX, onde dois "x" traçados à mão em vermelho vivo, numa gestualidade que reconhecemos facilmente como do "nosso século", se abatem sobre o "c" e o segundo "u" da palavra "seculum", grafada em sóbria tipologia romana. A intensa carga de cancelamento, obliteração e rasura dos "x", aliada à expressividade do gesto e da forma, convocam imediatamente a noção de diferenças, se é que não de confronto e superação, entre os tempos. Como se o vermelho e o violento século "XX" só afirmasse a sua própria temporalidade ao relegar a um segundo plano, estático, de letra morta, a experiência da antiguidade que o precedeu.
Mas, como cinco letras permanecem visíveis, também podemos pensar não no cancelamento puro e simples da experiência precedente, mas numa atualização via destruição parcial -o que, de resto, não estaria longe de corresponder à verdade ou, pelo menos, a uma parcela de verdade do que foi a operação cultural moderna.
Em ambos os casos, no entanto, o modo pelo qual as operações da cultura, da economia e da vida em sociedade rasuraram a experiência dos século anteriores, e de que forma isto acabou moldando concretamente a experiência do próprio poeta e de seus semelhantes -ou dessemelhantes-, tudo isso permanece intocado pelo poema.
Não se pretende aqui que tal objeção esgote as qualidades ou o âmbito das proposições de "Rente"; nem -muito menos- que sejam desconhecidas do próprio autor. Antes, ao contrário: paralelamente à extremada consciência da linguagem, em mais de um momento ponteiam ao longo do livro as críticas à condição narcísica, à alienação da subjetividade numa sociedade de consumo ou, ainda, o seu reverso -o forte veio lírico que sobressai nos poemas que se referem à percepção da amada ou da natureza. Tudo isso, no entanto, ainda não é forte o suficiente para contrapor-se ao fascínio que o autor experimenta pelas operações de superfície. Mas será este, na nossa opinião, o principal desafio que João Bandeira terá de enfrentar, depois deste livro promissor.
Alberto Martins é artista plástico, poeta e autor de "Poemas" (Duas Cidades).


Folha de São Paulo

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