O tempo não é uma ilusão
ANTONIO A. P. VIDEIRA
o nome do físico-químico belga Ilya Prigogine não é desconhecido do público leitor brasileiro. Desde as publicações anteriores dos livros ''A Nova Aliança'' (UnB) e ''Entre o Tempo e a Eternidade'' (Cia. das Letras), ambos escritos em colaboração com Isabelle Stengers, Prigogine vem se tornando uma das referências básicas para todos os que se interessam pela reflexão sobre as novas conquistas científicas, alcançadas nos domínios da física, química, cosmologia e biologia.
Cientista de primeira ordem, com importantes contribuições à termodinâmica de não-equilíbrio _que lhe valeram o prêmio Nobel de química em 1977_, Prigogine não se limita a apresentar, em suas obras não estritamente científicas, os mais recentes resultados nessas áreas. Ele não pretende apenas tornar compreensíveis os novos fatos científicos. Sua intenção é mostrar que, quando devidamente considerados, esses resultados deixam entrever uma estrutura fundamental da natureza, capaz de unificá-los. Para Prigogine, o tempo não é apenas um parâmetro físico; é o conceito fundamental da ciência, principalmente quando pensado a partir de sua mais importante característica: a irreversibilidade.
A proposta de Prigogine nesta obra é basicamente a mesma das duas anteriores: mostrar a um público não especialista que o real, quando analisado em suas estruturas mais profundas e, por isso mesmo, mais efetivas, é um só. Diferentemente do que se pensou durante muito tempo _mesmo que possamos nos lembrar de algumas exceções importantes_, o real não é indiferente à direção em que ocorre o fluxo dos fenômenos naturais. Em outras palavras, a flecha do tempo não se inscreve apenas no nível da descrição de tais fenômenos. Ela se encontra no seu cerne: a irreversibilidade é parte constituinte das leis naturais. Reconhecer essa presença, afirmá-la, enfatizando as suas consequências, que não são poucas, constitui o objetivo (ou a ambição, como diz Prigogine) deste livro.
Fixada a presença da irreversibilidade, ela não é a exceção mas, sim, a regra. As consequências para a representação que temos da natureza são imensas. Até mesmo a concepção do que é a racionalidade precisa ser transformada, à luz desse novo papel atribuído ao tempo. Como se pode facilmente constatar, Prigogine é, de fato, ambicioso em seu projeto filosófico. No entanto, ele tem a preocupação de afirmar que não se encontra sozinho nesse empreendimento. Desde Epicuro, passando por Hegel, Husserl, William James, Bergson, Heidegger e chegando a Whitehead, desenvolve-se uma doutrina filosófica de que o tempo é uma realidade incontornável. Ao contrário do que dizia Einstein, o tempo não é uma ilusão.
Mas quais são as consequências impostas por essa reavaliação do tempo? A mais importante é que o homem reencontrará o seu lugar não apenas na natureza, mas também na própria descrição desta. O homem não mais será aquele que descobre as leis fundamentais da natureza, mas aquele que as constrói. Reconhecendo o seu papel de construtor, o homem tornar-se-á consciente de que a ciência é um diálogo com a natureza. Temporalizando o diálogo, o homem volta a perceber que ''a questão do tempo'' _donde ele mesmo, que é filho do tempo_ ''está na encruzilhada do problema da existência e do conhecimento''. Percebe, então, que tanto ele como o universo e a descrição que faz do universo são fenômenos ou estruturas constituídas pela irreversibilidade ou ainda pela transitoriedade. Negar essas características seria o mesmo que procurar aproximar-se de um ponto de vista divino atemporal. Nada mais artificial, ou irreal, para um ser marcado pela temporalidade.
Apesar de ter sido escrito para um público não-especialista, ''O Fim das Certezas'' não é um livro de leitura fácil. Prova disso são suas referências, listadas em notas de rodapé, que quase sempre incluem revistas e livros técnicos. Seus argumentos e exemplos são estritamente científicos; já suas conclusões inscrevem-se no domínio da epistemologia e da filosofia da natureza. Faz parte da estratégia de Prigogine mostrar que aquilo que ele afirma fora do campo científico não é arbitrário nem fruto de preferências filosóficas. Ele quer mostrar ao seu leitor que as conclusões científicas e epistemológicas a que chega, e que são resultado de 50 anos de trabalho, possuem fundamento suficiente para assegurar a seguinte afirmação: a física de não-equilíbrio já alcançou maturidade suficiente para entrar e permanecer no domínio científico; sua presença é irreversível. Assim sendo, a natureza de Newton, de Einstein, e mesmo de Bohr e Heisenberg, precisa ser radicalmente modificada, dando lugar àquela parcela tida, até pouco tempo atrás, como ilusória: a parcela da irreversibilidade.
Prigogine é um daqueles cientistas, ao lado de Steven Weinberg e Stephen Jay Gould, que vêm procurando mostrar ao público em geral os principais resultados de suas próprias pesquisas científicas, além de suas mais relevantes conclusões epistemológicas. É um interessante exemplo de cientista-filósofo. Sem dúvida, muitas de suas idéias ainda são objeto de vivos debates. Ele mesmo não nega essa situação. Pelo contrário, alegra-se com isso, pois só assim poderá o homem usar de sua criatividade, reaproximando a existência e o conhecimentos humanos, que, para ele, estavam separados até o surgimento da física de não-equilíbrio.
O futuro, não nos sendo dado, deve necessariamente ser construído pelo homem, que lança mão de sua criatividade. É exercendo essa criatividade _que, repetimos, origina-se de uma necessidade, de algo incontornável ao ser humano_ que tomamos plena consciência da liberdade, já que a criatividade nos permite ''construir um caminho estreito entre essas duas concepções (determinismo e acaso) que levam igualmente à alienação, a de um mundo regido por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a de um mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser previsto nem descrito em termos gerais''.
A obrigatoriedade de ser criativo é um dos melhores exemplos de que o mundo em que vivemos não é regido por leis estritamente deterministas. Ou seja, Prigogine parece defender que estamos condenados a ser livres. Embora não tenhamos outra opção além da liberdade, isso não significa que não há nada a fazer para que a liberdade aconteça. Visto que não podemos conhecer antecipadamente o futuro _o que é equivalente a afirmar, segundo Prigogine, que somos livres_, temos que assumir toda a nossa responsabilidade de principais construtores daquilo que ainda seremos.
Antonio Augusto Passos Videira é professor de filosofia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), pesquisador do departamento de astrofísica do Observatório Nacional (CNPq) e organizador, com Ildeu de Castro Moreira, de ''Einstein e o Brasil'' (UFRJ).
Folha de São Paulo
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