O que anda pensando a oposição?
RICARDO MUSSE
reunião de apresentações de um ciclo de debates, ''O Brasil do Real'' congrega uma fatia da parcela da intelectualidade que não se alinhou automaticamente com as práticas e o discurso do governo. Economistas e cientistas políticos fazem um diagnóstico do plano de estabilização monetária, avaliando, com notável convergência, os efeitos do Real sobre a macroeconomia, as relações de poder e as condições sociais da população. Apesar do caráter circunstancial e mesmo conjuntural das falas, o conjunto nos fornece uma idéia dos caminhos _teóricos, nem sempre trilhados pelos partidos e movimentos sociais_ da oposição.
Marta Skinner de Lourenço, fugindo às comparações apologéticas que valorizam o sucesso do Real tomando como parâmetro as anteriores tentativas brasileiras de estabilização (Cruzado, Plano Bresser etc.), situa-o como mais um de uma série de planos _latino-americanos sobretudo_ gestados numa conjuntura na qual o êxito tem sido a norma e não a exceção. Num ambiente de abundância de capitais de alta liquidez, a redução das alíquotas de importação e a valorização cambial por si sós garantem uma certa estabilização.
Mas não é apenas no sucesso econômico e político que o Real não é único. Os seus problemas também são os mesmos do outros planos: desemprego crescente, inadimplência, crise bancária, dívida pública e o principal, baixa capacidade de crescimento. A transformação da estabilidade de ponto de partida em ponto de chegada não é, como pensam alguns, uma idiossincrasia da equipe econômica do presidente Cardoso.
A inserção das economias nacionais na ciranda especulativa internacional, a dependência da estabilidade sistêmica, com a concomitante redução da capacidade governamental para implementar políticas públicas nos tornam reféns _como bem lembra Sulamis Dain em outro artigo da coletânea_ de uma lógica especulativa, mundializada, que proclama como virtude a redução das taxas de crescimento.
Reinaldo Gonçalves lista uma série de instrumentos que garantiram o sucesso do combate à inflação: engessamento de preços, basicamente de tarifas públicas e de salários; liberalização comercial, impedindo a redução da oferta de produtos agrícolas; valorização cambial; controle da demanda agregada; e também o impacto positivo da credibilidade do presidente Cardoso _enquanto autêntico representante das classes hegemônicas_ sobre os empresários, principalmente os formadores de preços.
Nestes dois anos e meio de gerenciamento do plano econômico, o governo perdeu gradativamente, por uma série de motivos combinados, o controle dessas variáveis estruturadoras do Real. Só lhe restou um instrumento de política econômica: a retenção da demanda, isto é, a adoção de políticas macroeconômicas recessivas no sentido de contrair consumo e investimento. O que aliás não está em desacordo com o receituário dos organismos internacionais que prescrevem políticas deflacionárias.
Esta política contracionista aumenta o desemprego e o desconforto da sociedade. Diante da necessidade de faturar politicamente os resultados econômicos, o presidente Cardoso adota uma política pendular: ora libera a variável inflação, diminuindo o desemprego, ora aperta o controle aumentando o desemprego, num movimento sincronizado pelas demandas eleitorais. O que, diga-se de passagem, nem sempre dá certo. Nas recentes eleições municipais ressurgiu uma ''oposição'' de direita, já que o PT, sobretudo a ala paulista _ignorando solenemente o que os intelectuais andam dizendo_, preferiu, como penitência pelos erros passados, apoiar o Real.
O saldo global das análises econômicas de Skinner e Gonçalves é que o Real plantou várias bombas de efeito retardado _aumento da dívida pública, desagregação da infra-estrutura social e econômica, desindustrialização, crescente vulnerabilidade externa_, e como contrapartida nos oferece, no máximo, junto com a perspectiva de um baixo crescimento, um modelo de modernização excludente.
Sulamis Dain reconstitui e avalia, um a um, os principais tópicos do ideário político e social do Real. Primeiro, proclamou-se o esvaziamento do Estado desenvolvimentista, visando sua transformação num Estado social. No entanto, como bem alerta Emir Sader em outro artigo, ao jogar para debaixo do tapete o tema da ''privatização do Estado'', da interpenetração entre interesses privados e estatais, o presidente Cardoso recaiu numa visão liberal. No Brasil, isso significa apenas o reforço do Estado ''mini-max'': mínimo para os de baixo, máximo para os de cima.
O Estado previdência só funciona pra valer para as classes empresariais que se apropriam _via incentivos, perdão de impostos, em suma, por meio das várias alternativas de renúncia fiscal_ de cerca de 3,3% do PIB.
Outra premissa não comprovada do Real é que a estabilização seria a pré-condição para o desenvolvimento econômico. Pelos motivos elencados acima, a lógica mundial na qual o plano se insere leva inevitavelmente a taxas medíocres de crescimento, o que reduz a capacidade de financiamento do Estado.
Uma consequência disso é que, ao contrário de outro axioma do Real, a estabilização não amplia a governabilidade. A perda da autonomia governamental no campo da políticas macroeconômicas impede a adoção de uma política social que vá além do mero assistencialismo. Sem poder aumentar a integração dos marginalizados no circuito da produção e do mercado, sem uma política de universalização de direitos, o governo vê crescer _com a degradação da cidadania_ a demanda por assistência social no exato momento em que reduz a capacidade redistributiva do Estado.
Luís Pinguelli Rosa analisa os efeitos da política neoliberal no setor público, em especial a privatização à brasileira. Além da complacência diante dos monopólios privados embutida no discurso antiestatista, acrescente-se que o afã privatizante não está cumprindo nenhum dos seus alegados propósitos: melhorar os serviços, expandir a oferta e a concorrência, diminuir as tarifas, ampliar os investimentos ou abater a dívida pública. Assim, ela só se explica pela necessidade, inerente ao Real, de inserir cada vez mais o país numa órbita na qual predomina o capital financeiro, abdicando, como lembra Francisco de Oliveira, de uma das pouca vias ainda possíveis para um país periférico ensaiar uma política econômica autônoma.
Emir Sader traça um mapa político da nova situação gestada pelo Real. Uma vez que a especulação financeira tornou-se a mola-mestra do processo de acumulação do capital gerenciado pelo Plano Real _daí as famigeradas altas taxas de juros_, cristaliza-se a hegemonia do capital financeiro associado ao grande capital industrial internacionalizado.
Ao substituir a idéia de cidadania e de voto popular soberano pela de consumo (em si assimétrica, pois quem tem mais pode mais), essa hegemonia esvazia não só o Estado _e com ele, parte da esfera pública: instituições como o Banco Central, as universidades e mesmo o Judiciário_ como os partidos políticos, abrindo caminho para formas autoritárias de governo.
Aliás, o mero fato de o plano econômico assentar-se na credibilidade externa junto aos analistas de risco, já indica o veio autoritário. Nessa lógica, o presidente Cardoso deve evitar a todo custo qualquer manifestação _inclusive no campo intelectual_ que sinalize com uma possível quebra de hegemonia.
Francisco de Oliveira enfatiza o papel das (contra-)reformas no longo prazo do Real. A política deliberada de destruição dos direitos sociais passa principalmente pela flexibilização do mercado de trabalho, o que é um espanto se se leva em conta o fato de que o custo por hora trabalhada no Brasil _US$ 2,5 incluindo os pagamentos indiretos e os encargos tributários_ é um dos mais baixos do mundo.
Sader esboça uma alternativa: um projeto nacional-democrático que apresente soluções para a crise fiscal retomando como questão primordial a crise social e redesenhe o Estado, redirecionando a economia para a implantação de um mercado interno de massas. Oliveira ressalta, porém, a presença de um novo elemento complicador para qualquer projeto alternativo: a crise das formas clássicas de representação. A crise social, o desgaste do presidente Cardoso, pouco afetam o jogo entre governo e Congresso. A exclusão da sociedade, o ''cretinismo'' parlamentar, a hegemonia do capital obrigam _como na época do regime militar_ a reinvenção de outros meios de se fazer política.
Ricardo Musse é professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e um dos editores da revista ''praga'' (Boitempo).
Folha de São Paulo
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