sábado, 8 de agosto de 2009

Sexo falado


Sexo falado
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
Nicolai Volkov é um etnólogo russo. Nos anos 30, cavou o passado de seu país em busca de um curioso episódio: existiu, na Rússia tzarista pré-revolucionária, uma “seita de castrados”. Condenada à extinção pelo poder socialista, a seita reuniu, durante anos, pessoas que se submeteram à castração.
Um livro recém-lançado na França (“Le Secte Russe des Castrats”) relata a história. Homens entregavam-se à extirpação dos testículos e do pênis. Mulheres à amputação dos seios, algumas vezes dos grandes lábios, outras do clitóris.
Uma resenha do livro no jornal italiano “La Repubblica”, diz que, entre os castrados, gozavam de grande prestígio algumas obras de Tolstói. Entre elas o conto “Padre Sérgio”.
O texto narra a trágica vida de um jovem príncipe que, tomado por obsessões carnais, e delas tentando liberar-se, transforma-se em monge. Acaba, porém, seduzido por uma jovem. Atormentado pela tentação, escolhe, para salvar-se, um recurso extremo: amputa, de um golpe, o dedo indicador. A mulher, assustada, parte _ e com ela afasta-se a vertigem do desejo.
Quase um século depois, o advento da Aids parecia prenunciar a condenação do mundo a uma universal seita de castrados. Acreditou-se, nos anos 80, que estávamos no ocaso de uma era de liberalização. O moralismo triunfaria e a repressão sexual recrudesceria.
A profecia fazia sentido, ao menos dentro dos parâmetros que passaram a guiar a interpretação das relações entre poder e sexo depois do marxismo e da psicanálise. Nos dois pilares do pensamento do século, a idéia predominante é a de que essa relação se dá principalmente, senão exclusivamente, em bases repressivas.
Mas o que se verificou no mundo pós-Aids foi uma nova onda de tematização do sexo. A indústria pornô floresceu e o erotismo nos meios de comunicação tornou-se tão difundido quanto banalizado.
O fato de que tenha ocorrido assim pode ser surpreendente para muitos, mas não seria, pelo menos para o filósofo francês Michel Foucault. Seus escritos sobre a sexualidade propõem justamente que se deixe de pensar a relação entre poder e sexo do ponto de vista hegemônico da repressão.
Foucault dizia, numa época em que marxismo e psicanálise dominavam amplamente o meio intelectual, que o que aconteceu na sociedade moderna foi uma inédita explosão do sexo sob a forma de discurso.
Nunca se falou tanto e tão obsessivamente sobre sexo como nos últimos séculos do confessionário à TV, do divã à hot-line.
Estaríamos, portanto, na terminologia de Foucault, diante de uma estratégia “positiva” dos poderes, na qual os controles se exercem não pela negatividade do ocultamento, do silêncio ou das práticas repressivas, mas sim pela verbalização incessante do sexo, por sua exibição, seu dissecamento, sua exposição.
Com a Aids, os poderes se viram obrigados, de forma explícita, a funcionar como agentes de incitação da curiosidade e da colocação do sexo em discurso. É preciso ensinar, mostrar, falar.
É preciso, mais do que nunca, viver com o sexo na ponta da língua.

Folha de São Paulo

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