Ventos novos no Museu
LILIA K. MORITZ SCHWARCZ
Mana, Estudos de Antropologia Social
Volume 1, número 1, outubro de 1995
Era desta maneira que, no ano de 1876, se apresentava a nova revista "Archivos do Museu Nacional": "Feliz a instituição a quem for dado o preciso alento para affrontar-se com o mal e destruí-lo ... Obreiros da sciencia cançados de esperar adormeceram ... O Museu Nacional em sua nova e auspiciosa constituição se prepara a vincular-se d'ora em diante aos grandes grêmios scientíficos e congressos da civilização". Sem dúvida um vistoso "cartão de visitas" dessa instituição carioca, que, em finais do século 19, se aparelhava para representar o importante papel que lhe era reservado. No caso, um modelo muito próximo das ciências naturais e no qual a antropologia era sobretudo entendida como uma extensão das disciplinas biológicas.
Os tempos são outros, assim como os contextos teóricos, mas eis que mais de cem anos depois surge uma nova revista do Museu Nacional, dessa feita ligada ao programa de pós-graduação em antropologia social, criado há quase 30 anos na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com o sugestivo nome "Mana", esse periódico representará, sem dúvida, um local privilegiado de trocas: troca de idéias, conhecimento e pesquisas. A partir de seu primeiro número, fica evidente como a revista não se limita à publicação de artigos inéditos, como reproduz debates, entrevistas, assim como conta com uma seção dedicada a ensaios bibliográficos e resenhas de livros da área.
O número de outubro de 1995 exemplifica o relevo da empreitada, o que torna ainda mais árdua _e fadada ao fracasso_ a tarefa de resumir em um texto o conteúdo dos diferentes artigos e resenhas, ou, pior, tentar adivinhar alguma coerência entre eles. Na verdade, mais vale "radiografar" a revista, na tentativa de dar um panorama do estilo e da abrangência desse novo periódico.
Os quatro artigos que compõem o primeiro número de "Mana" trazem, cada um à sua maneira, temas centrais para o debate antropológico. Roberto Cardoso de Oliveira discute a questão da identidade nacional a partir do exemplo catalão, tendo como base obras de pensadores locais. Roger Chartier examina o universo social e cultural da leitura e dos leitores da Europa renascentista, bem como investe em fontes e aproximações diversas: a oralidade, as modalidades de leituras e as estratégias dos editores. Luiz Fernando D. Duarte e Ana Teresa A. Venancio recuperam a obra de W. Wundt, pouco conhecida entre nós, mas uma referência obrigatória para os pensadores do século 19, preocupados com a distinção entre as diferentes disciplinas das humanidades. Com efeito, presente nos livros de autores evolucionistas e mesmo nos estudos de Freud, Wundt teve um papel fundamental na partilha entre os saberes do social e do psiquismo. Por fim, Joanna Overing trata, a partir do caso dos Piaroa, das frágeis distinções entre mito e história, dissolvendo a visão dual que vincula os mitos às assim chamadas "sociedades frias", cuja marca seria a a-historicidade, em oposição às "sociedades quentes", portadoras de uma memória cumulativa e linear. Em questão está, dessa maneira, a própria noção de história, que privilegia uma suposta objetividade progressiva e unitária, e o conceito de historicidade, que permite pensar em outros tempos, em outras histórias.
Dois ensaios bibliográficos ajudam a conferir à revista um caráter ainda mais abrangente. A obra de Norbert Elias é recuperada por J. Sergio Leite Lopes, particularmente a partir dos textos que trataram dos esportes, e cuja coletânea "Sport et Civilisation" foi publicada recentemente na França, pela editora Fayard. Nesses ensaios, Elias retoma argumentos já apresentados em "O Processo de Civilização", além de questionar os estudos que encontram uma relação de continuidade entre as práticas esportivas da antiga Grécia e as modalidades atuais. Segundo o autor, assim como o processo de civilização implicou num autocontrole das emoções, o fenômeno contemporâneo da "esportificação" funcionaria como um antídoto ao excesso de civilidade e das tensões por ela geradas. Em "Fome e Comportamentos Sociais: Problemas de Explicação em Antropologia", Lygia Sigaud analisa o livro de Nancy Scheper-Hugues contrapondo-se, de forma veemente, aos argumentos dessa tese, que analisa o comportamento das mulheres pobres de uma área da Zona da Mata, que, segundo a autora, se conformam de forma pacífica à sua, má, sorte. Sigaud questiona, dessa maneira, a noção de verdade e de poder, e sobretudo o caráter onisciente do antropólogo, que, acima dos ombros de seus observados, acredita ver melhor que os próprios sujeitos em questão.
A revista traz, também, um "jogo de antropologia aleatória", ou seja, a reprodução de um debate travado entre três professores visitantes _Elizabeth Claverie, Luc Boltanski e Howard Becker_ que, num exercício de "inteligência imediata", conversaram, no primeiro semestre de 1990, sobre diversos temas: robôs, moda, mercado negro, ritos, os sociólogos e sua sociedade.
"Mana" apresenta, na última seção, resenhas de livros nacionais e estrangeiros. Entre os autores nacionais destacam-se as obras de Gilberto Velho, Ricardo Benzaquen de Araújo, John Monteiro, Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha. Claude Lévi-Strauss (em "Regarder, Écouter, Lire"), M. Offerlé, P. Champagne, são alguns dos intelectuais, cujas obras, ainda inéditas no Brasil, aparecem analisadas na revista.
Enfim, se nenhuma resenha breve como esta dá conta da riqueza e da diversidade do conjunto das matérias e ensaios, ajuda, no entanto, a sublinhar ênfases, indicar reflexões. Assim como o conceito de mana, corrente na Polinésia, simboliza não somente a força mágica de cada ser, mas também sua honra, a riqueza e a autoridade que daí advêm, também com essa nova revista se inaugura um local, abre-se uma nova porta, sempre mágica em sua potencialidade. O que interessa, no entanto _fazendo uso da já tradicional definição de Marcel Mauss_, é menos a riqueza de quem possui o objeto, e mais a troca e a dádiva que então se inaugura. "Mana" chega como um grande "hau, como o espírito da coisa dada, o vento que sopra e que deve ser restituído e é, como tal, sempre, muito bem-vindo.
LILIA K. MORITZ SCHWARCZ é professora do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo
Folha de São Paulo
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