domingo, 2 de agosto de 2009

LEON TOLSTÓI


Revolução foi último grande romance russo
O gênio destrutivo e desmesurado de escritores como Tolstói cedeu lugar à práxis socialista na literatura da Rússia
ANTONIO CALLADO
Colunista da Folha
Q uando morreu, à beira dos 90 anos, em dezembro de 1993, William L. Shiror tinha acabado de entregar ao seu editor um livro intitulado "The Troubled Marriage of Leo and Sonya Tolstoy". O livro foi agora publicado pela editora Simon & Schuster, e a primeira observação que ocorre aos que o leram é que Shirer, depois de tanto e tão bem escrever sobre a guerra entre os povos, encerrou a carreira escrevendo sobre esta antiga e jamais terminada guerra que é a que se trava entre marido e mulher.
Logo que li uma resenha do trabalho de Shirer perguntei a mim mesmo se esse livro teria sido realmente necessário. É fato mais do que conhecido que Tolstói, aos 82 anos, morreu na estação ferroviária de Astopovo, não longe de sua propriedade rural de Iasnaia Poliana, fugindo da mulher.
Em qualquer de suas biografias, mas sobretudo na mais completa até agora, aquela que Henri Troyat escreveu em 1965 e que tem mais de 800 páginas, um grande número dessas páginas é ocupado pela inacreditável batalha conjugal que uniu em laços de desejo e de fúria o conde Leon Tolstói e sua Sônia (aliás Sofia) Andreievna Behrs.
Troyat dá uma perfeita idéia de como tudo começou, ao revelar que, quando pediu em casamento Sônia, que tinha 18 anos, Tolstói, que tinha 34 de vida bastante dissoluta, pediu à noiva que lesse seus minuciosos diários. A moça leu e quase não casou. Mas Tolstói, que gostava de se confessar, se humilhar, à moda russa, como observa Troyat, convenceu a noiva de que seu amor por ela era um rito de purificação e de ternura, e que doravante a existência dele seria inteiramente determinada pelo amor que a ela devotava.
Esse episódio pré-matrimonial da leitura imposta do diário é uma espécie de prenúncio dos horrores que virão e que acabarão levando à fuga do Tolstói ancião. Isto porque ele nunca parou de escrever diários, Sônia não tardou em imitá-lo e, como ambos eram francos, destemperados, russos, contavam tudo às páginas em que se confessavam e depois liam-se mutuamente os horrores que diziam um do outro.
No fim da vida, para não ser lido quase por cima do ombro por Sônia, Tolstói, antes de dormir, enfiava um diário intitulado "Só para Mim" no cano das botas. E acabou por confiá-lo à guarda de um amigo que Sônia odiava. Sônia, que várias vezes ameaçara suicidar-se e outras tantas vezes desaparecera no parque e floresta de Iasnaia Poliana, onde havia penhascos abruptos e lagos convidativos, chegou a acusar Tolstói, devido a trechos ambíguos dos diários, de ser gay.
Tudo isso envolve os anos finais e gloriosos de Tolstói numa sombra malsã, à medida que Sônia mergulhava numa meia loucura. Desde a publicação de "Guerra e Paz" e de "Ana Karenina", o nome de Tolstói ganhara o mundo. Em seguida, começou a se alongar pelo mapa sua fama de profeta, de criador, em política, da não-violência, que Gandhi passara a adotar na guerra santa contra o Império Britânico.
Sônia podia sempre alegar, quando acusada de infernizar a vida do gênio e visionário, que ele nunca a deixara em paz. Sobretudo na cama. Afinal de contas, tinham tido 16 filhos. E Tolstói jamais teria produzido seus romances e suas doutrinas políticas sem exercer uma intensa atividade sexual. Sob pena de cair no chamado bloqueio mental dos escritores.
Jejum sexual, para ele, era igual a inanição literária absoluta. Privá-lo de amor era esvaziar-lhe o tinteiro. E disto, podia acrescentar Sônia, tinha nascido com o tempo, atiçando ainda mais as labaredas em que ardia o casal, outro tipo de angústia tolstoiana. À medida que, ao longo dos anos, mergulhava cada vez mais fundo em sua busca da verdade na religião, na moral, Tolstói tentava exatamente escapar à sexualidade, à luxúria, o que não conseguia nada bem.
Tudo, a meu ver, indica que Sônia o amou a vida inteira, mas também não duvido que tenha chegado a odiá-lo, por se sentir cada vez mais perseguida e injustiçada. O quinhão dela –à medida que cresciam a glória e a fama de Tolstói, e que aumentava proporcionalmente a curiosidade de jornalistas, fotógrafos e do próprio cinegrafista Charles Pathé sobre a vida do casal– era o da megera, a encrenqueira. Comparavam-na a Xantipa, mulher de Sócrates, de quem quase nada se sabe, exceto que chateava o Sócrates para lá da conta, enquanto ele saía para os seus simpósios com os rapazes elegantes de Atenas.
Pois muito bem. Depois de tudo que há tanto tempo se sabe sobre o angustiado profeta e fauno de Iasnaia Poliana e sua atarantada Sônia, me parecia impossível que ainda se pudesse revelar alguma coisa a respeito. Aguardo o livro de Shirer propriamente dito. As resenhas que li parecem indicar que, isolando da enorme e luminosa montanha que foi a fecunda vida de Tolstói a caverna primitiva do seu quarto de dormir, William L. Shirer conseguiu dados novos, ou pelo menos concentrou luz mais forte sobre antigas desgraças.
Romance russo final
O fato de que Shirer, cronista de batalhas, autor de "Ascensão e Queda do Terceiro Reich", extraiu um livro de 400 páginas da vida conjugal de Tolstói nos faz pensar na ascensão e queda do romance russo e da própria Rússia. O feroz idílio Leon-Sônia revela, nos russos, aquilo que os franceses chamam "démesure", a falta da justa proporção.
Como é que um casal que só a morte separou se corroeu tanto em picuinhas sádicas, ameaças de suicídio e permanente ranger de dentes enquanto o marido escrevia, pregava, libertava os servos da sua gleba, fundava associações religiosas e escolas para camponeses, e enquanto a mulher lhe paria filhos e escrevia diários intermináveis?
Estava entre os dois em ação, sem dúvida, a mesma força de criação e destruição que levava Dostoievski aos píncaros de "O Idiota" e "Os Irmãos Karamazov" enquanto dissipava o que ganhava nos cassinos da Europa, invectivava o mundo ocidental e aguardava a regeneração dos povos pela espiritualidade da Rússia. Ou que levava Gógol à loucura enquanto esperava, com seus livros, reformar a raça humana.
O fantástico florescimento da literatura russa no século 19 deveu-se a gênios "desmesurados", ao mesmo tempo maiores e mais selvagens do que Stendhal, Balzac, Dickens. E Tolstói foi, entre esses grandes, aquele que procurou criar um novo homem com maior lucidez, tentando conduzir os povos a uma união supranacional. A literatura para ele, a partir do romance "Ressurreição", passou a ser um simples meio de chegar a um homem ético, num mundo de harmonia entre os povos. Quando morreu Tolstói em 1910, muita gente terá esperado que um outro gigante viesse empolgar leitores e talvez consolidar a fundação do Reino de Deus, na Terra.
O que se viu, sete anos depois, foi o estrondo da Revolução Russa. Sônia entrou em agonia em 1919. E como Iasnaia Poliana ficava em zona de operações militares, só com um salvo-conduto se chegava lá, como constatou seu filho Sérgio, que queria estar à cabeceira da mãe. Conseguiu o papel, como informa Troyat: "O documento foi assinado por V. Uliánov (Lênin), presidente do soviete dos comissários do povo."
O último romance russo se confundia agora com a práxis, a vida real. Teve bom enredo, esse romance, até certo ponto. Chegou – o que se pode afirmar sem qualquer "démesure" – às estrelas. Mas teve que andar depressa demais, antes de acumular o capital necessário. E perdeu o rumo. Falta de "cash".
E hoje só existe o romance ocidental. Pobres leitores.

Folha de São Paulo

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