Profetas e sacerdotes
MARIZA CORRÊA
Besta-Fera: Recriação do Mundo
Otávio Velho Relume-Dumará, 250 págs.
A Favor da Etnografia
Mariza Peirano Relume-Dumará, 178 págs.
"São nossas necessidades que interpretam o mundo; nossos impulsos e seus A Favor e Contra. Todo impulso é uma espécie de desejo pelo poder; cada um possui sua perspectiva que gostaria de obrigar todos os outros impulsos a aceitar como norma." (Nietzsche, citado por O. Velho, pág. 90)
Será por acaso que esses dois livros tão semelhantes e tão diferentes aparecem no mesmo momento, lançados pela mesma editora? Ambos são coletâneas de artigos já publicados pelos autores, o que sugere a reiteração de pontos de vista que, ainda que expressos em momentos avulsos de suas carreiras _seminários, artigos de ocasião, um concurso_, mereceram ser reunidos em livro, com prefácio e posfácio nos quais se explicita sua integração num todo.
A primeira proposta do livro de Otávio Velho é a de uma releitura de sua própria produção, anunciada na "Introdução", à maneira do autor, de modo metafórico: "Na verdade, plagiar-se a si mesmo tem suas virtudes". Na leitura dessa proposta, só os leitores acostumados a lê-lo há bem uns 20 anos poderão acompanhá-lo, já que se trata de recuperar outras propostas, dele e de outros, na trajetória intrincada, que é também uma das histórias dos estudos de campesinato no país: leitura que, para os seus leitores de todo esse tempo, é de repente iluminada por uma frase _ah, então era isso o que ele queria dizer quando falava de althusserianismo populista. Mas há outras propostas, dispersas ao longo do livro, que se estrutura em forma de vinhetas, pistas, índícios, lembretes _palavras com que o autor vai pontuando suas observações a respeito do que escreveu e do que espera que outros escrevam. Jorge Luis Borges comentava que a leitura é uma atividade mais nobre que a escrita e este é, paradoxalmente, um texto escrito sobre a leitura: uma leitura programática, no sentido de que se trata de indicar caminhos do saber, particularmente do saber antropológico, a partir de indícios retomados seja de autores velhos (como diz o autor, sem trocadilho), seja de aspectos não explicitados o suficiente nos autores com os quais estamos acostumados a lidar em sala de aula. Indícios por meio dos quais vai sugerindo uma antropologia paradoxal, uma recriação, ou refundação da antropologia apoiada na idéia central de que uma perspectiva religiosa, isto é, a idéia de que podemos escapar do banal, do cotidiano, e voltar a tratar dos grandes temas presentes em todos os sistemas religiosos e filosóficos, é o que pode dar sentido à antropologia no mundo contemporâneo habitado pela globalização.
"Retomar alguns de nossos clássicos naqueles seus aspectos mais criativos e autênticos, que se perderam nos momentos triunfalistas de paradigmas hoje 'bichados'; aceitar a provocação de alguns 'estranhos' como Nietzsche (tanto quanto, como desejava Evans-Pritchard, Pareto e Lévy-Bruhl); observar o que se passa realmente _e não por meio de imagens estereotipadas e idealizadas_ em outros domínios do conhecimento; reavaliar nosso próprio trabalho e pensar as dificuldades, ambiguidades e confusões brasileiras como um laboratório privilegiado para perceber nem desvios, nem especificidades absolutas, mas aspectos da vida social que alhures (o velho Dionísio?) levam gerações para desencavar. Eis, parece-me, todo um esforço que vale a pena e que pode, talvez, ajudar a reunir energias dispersas."
O livro é rico em sugestões: os leitores podem imaginar os temas não tratados aqui se souberem que este trecho da resenha poderia, seguindo as pistas do autor, ter levado os títulos de "O Gato de Lévi-Strauss", "Lavando Nossas Becas em Público" ou "Raça & Gênero Entre os Camponeses".
Se a coletânea de Otávio Velho é, explicitamente, uma denúncia dos "cativeiros" sociológicos expressos na nossa linguagem comumente utilizada nos círculos acadêmicos e uma saudável instigação a tomar ares em outra freguesia, a de Mariza Peirano é uma defesa fervorosa do que de bom fazemos dentro da academia, isto é, ensinar. Ambos são, por isso, semelhantes (tratando-se, afinal, como se trata, de dois bons amigos, com um constante diálogo comum), por terem os mesmos interlocutores, e diferentes em suas propostas. Se (nos termos weberianos que ambos citam) Otávio parece assumir o papel do profeta, Mariza assume, também explicitamente, o do sacerdote (ou sacerdotisa), explicando, conduzindo, exemplificando o tipo de análise que a antropologia vem fazendo a partir de sua institucionalização como disciplina nos últimos 20 e tantos anos no país. Ambos têm, ainda, em comum, a posição que Otávio sublinha num dos seus textos _não haveria um texto cultural congelado_ expresso por Mariza como o fato de ser a antropologia "a ciência social que pede para ser ultrapassada e superada; que mantém viva a consciência de que o que se aprende e/ou se descobre é sempre provisório e contextualizado". A proposta aqui é tanto defender a disciplina da acusação externa de andar praticando um certo "conjunturalismo", ou apontar alguns efeitos daninhos de certos modismos no interior da disciplina _isto é, engajar-se num diálogo provocativo com alguns autores nativos e outros estrangeiros, com vivos e mortos_, quanto, pelo exemplo, ensinar o que entende por etnografia. Neste sentido, o ensaio mais desenvolvido e mais ambicioso do livro, que trata de reler o material Ndembu produzido por Victor Turner, é exemplar tanto por sua proposta de um diálogo provocativo, ou provocante, como por sua postura acadêmica, no bom sentido do termo, no interior da disciplina.
A publicação de ambos esses livros ao mesmo tempo talvez não se deva, afinal, ao acaso, que Mariza também tematiza num de seus ensaios, mas a um certo ar de nosso tempo, sugerindo que nossa disciplina precisa tanto de profetas quanto de sacerdotes.
MARIZA CORRÊA é professora do departamento de antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)
Folha de São Paulo
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