Ricardo Piglia tenta decifrar ofício literário
Para o escritor argentino, um conto sempre tem duas histórias –uma oculta e secreta e a outra explícita
MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas
A editora Iluminuras acaba de publicar um livro pequeno, despretensioso e inteligentíssimo. Trata-se de ``O Laboratório do Escritor'', do argentino Ricardo Piglia. Compõe-se de um conto –``O Fim da Viagem''–, de um texto teórico –``Teses sobre o Conto''– e de entrevistas concedidas pelo autor a revistas literárias.
Não é livro para obter sucesso excepcional de público. Interessa, sobretudo, às pessoas que se dedicam a escrever ou a pensar sobre teoria literária. Mas, de forma quase casual, sem nenhuma formalidade universitária, Ricardo Piglia exibe pensamentos originais e fecundos sobre o seu ofício de escritor.
Vários de seus livros foram traduzidos para o português, sempre pela editora Iluminuras: ``Respiração Artificial'', ``Nome Falso'', ``Prisão Perpétua'', ``A Cidade Ausente''.
Você já leu? Eu não. Só depois de topar com ``O Laboratório do Escritor'' resolvi aventurar-me um pouco nas obras de Piglia. ``Prisão Perpétua'' tem contos excelentes.
O diabo é que ninguém dá conta do que se publica no Brasil. Mesmo alguém que escreve resenhas para jornal não consegue dar atenção a 90% dos livros que mereceriam ser lidos. Por exemplo: a Companhia das Letras acaba de publicar ``Viagem ao Fim da Noite'', do famoso Louis Ferdinand Céline. Acho que seria mais bonito se traduzissem o título por ``Viagem ao Fundo da Noite''. Ouço elogios enormes ao novo romance de Carlos Sussekind. E os italianos, então? Vigiam-me, da estante abarrotada, ``Anjo Negro'', de Antonio Tabucchi (ed. Rocco), os ``Poemas'', de Michelangelo Buonarrotti (ed. Imago), e o espantoso, exuberante, maravilhosamente traduzido ``Hilarotragedia'', de Giorgio Manganelli, que de tão bom parei na metade.
Falo dos italianos porque me encomendaram, há algum tempo, uma resenha de ``A Adalgisa'', de Carlo Emilio Gadda (ed. Rocco). Foi uma descoberta daquelas que só se fazem de vez em quando.
Mas o que é que se pode fazer? A quantidade de livros bons à nossa disposição excede o tempo de uma vida normal. E eu não li ``A Consciência de Zeno'', de Italo Svevo, nem ``Os Noivos'', clássico de Manzoni.
Nesse ponto, a obrigação de escrever resenhas oferece um prazer ambíguo. Pedem-me para fazer uma resenha. Bem, não era exatamente o livro que eu queria ler; mas há surpresas enormes. Faço anualmente um esforço para entregar-me aos ``grandes livros'': ``A Montanha Mágica'' foi para mim uma descoberta tardia, em umas férias de verão.
E quem ainda não leu ``A Divina Comédia'', o ``Dom Quixote'', ``O Vermelho e o Negro'', ``Em Busca do Tempo Perdido'', a ``Odisséia'', ``Guerra e Paz'' por que haverá de dar atenção aos últimos lançamentos das editoras sofisticadas?
No ambiente argentino, conhecemos Borges e Cortázar. Quem leu o ``Facundo'', de Sarmiento, ou o ``Martin Fierro'', de Hernández? Para não falar de Lungnes, Macedónio Fernández, do ``Don Segundo Sombra'', de Guiraldes, de Horacio Quiroga, de Roberto Arlt?
A Argentina é um mundo inteiro. Davi Arrigucci, crítico brasileiro, referiu-se ao ``sistema literário argentino'' –tradições e referências culturais que cada novo escritor, naquele país, deve absorver.
O fato é que topei com este livro de Ricardo Piglia, ``O Laboratório do Escritor''. Sem conhecer sequer a metade dos autores que ele cita, fiquei encantado com o que ele diz sobre a literatura.
O texto mais importante do livro são suas ``Teses sobre o Conto''. Não resisto a uma citação:
``Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: `Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida'. A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não-escrita. Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.''
Piglia desenvolve, em poucas páginas, esta descoberta: a de que um conto sempre conta duas histórias. Uma secreta, oculta; outra explícita.
Só por isso vale a pena ler ``O Laboratório do Escritor''. Mas as coisas não param aí.
Numa entrevista, Piglia fala sobre os seus vícios. Durante anos, foi um maníaco da natação. Parou de nadar. E aderiu ao tabagismo. ``Essa podia ser uma síntese de minha relação ao mesmo tempo tardia e substitutiva com os vícios. Uma coisa pela outra: essa é a estrutura da sociedade capitalista.''
O que Piglia dizia sobre o conto não difere muito do que ele está dizendo sobre o vício: ``Uma coisa pela outra'', uma história secreta atrás da história explícita, o fim da mania de natação substituído pela mania de fumar. Literatura é ``substituição''.
Ricardo Piglia, como a maioria dos escritores modernos, é um fascinado pela literatura policial. A coisa começa com Borges, remete a Dostoievski, passa por Faulkner e Hemingway: hesita em Conrad, Dickens, Henry James.
Há algum tempo, arrisquei a seguinte hipótese: a mania policial dos escritores contemporâneos –Rubem Fonseca, por exemplo– era no fundo uma forma de nostalgia pela narrativa clássica, algo com começo, meio e fim, em oposição às liberdades frouxas do romance de vanguarda.
Lendo Ricardo Piglia, vejo que as coisas não são tão simples assim. Talvez ele chegue à essência da literatura quando diz: ``O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto''. Em outro texto, Borges vinculava o ``fato estético'' ao ato de revelação; penso no desvelamento, na ``alethéia'' que tanto assunto deu ao filósofo Martin Heidegger.
E, se em toda obra literária há esse ``desvelamento'', essa ``revelação'' –um pequeno detalhe oferece a chave do comportamento de um personagem, por exemplo, ou um símbolo qualquer junta sentimento e subjetividade numa poesia–; se ``revelação'' contida, administrada, é a essência do trabalho literário, então o gênero policial, com suas investigações e mistérios, talvez seja o gênero ``literário'' por excelência.
É como se um conto policial ``revelasse'' o segredo que existe em cada empreendimento literário. Se em todo conto há ``duas histórias'', uma explícita, outra secreta –como quer Ricardo Piglia–, o romance de mistério ou a história de Sherlock Holmes fazem apenas mais explícita, e tomam como tema, uma procura da verdade da revelação, que mobiliza no fundo qualquer escritor, policial ou não.
Será isso mesmo? Tendo a acreditar que sim. O que não significa seguir, como se faz hoje em dia, as convenções policiais em cada livro que se pretenda escrever.
``O Laboratório do Escritor'', de Ricardo Piglia, aborda assuntos como este. É um livro interessantíssimo, desde que você se interesse pela coisa.
Folha de São Paulo
Para o escritor argentino, um conto sempre tem duas histórias –uma oculta e secreta e a outra explícita
MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas
A editora Iluminuras acaba de publicar um livro pequeno, despretensioso e inteligentíssimo. Trata-se de ``O Laboratório do Escritor'', do argentino Ricardo Piglia. Compõe-se de um conto –``O Fim da Viagem''–, de um texto teórico –``Teses sobre o Conto''– e de entrevistas concedidas pelo autor a revistas literárias.
Não é livro para obter sucesso excepcional de público. Interessa, sobretudo, às pessoas que se dedicam a escrever ou a pensar sobre teoria literária. Mas, de forma quase casual, sem nenhuma formalidade universitária, Ricardo Piglia exibe pensamentos originais e fecundos sobre o seu ofício de escritor.
Vários de seus livros foram traduzidos para o português, sempre pela editora Iluminuras: ``Respiração Artificial'', ``Nome Falso'', ``Prisão Perpétua'', ``A Cidade Ausente''.
Você já leu? Eu não. Só depois de topar com ``O Laboratório do Escritor'' resolvi aventurar-me um pouco nas obras de Piglia. ``Prisão Perpétua'' tem contos excelentes.
O diabo é que ninguém dá conta do que se publica no Brasil. Mesmo alguém que escreve resenhas para jornal não consegue dar atenção a 90% dos livros que mereceriam ser lidos. Por exemplo: a Companhia das Letras acaba de publicar ``Viagem ao Fim da Noite'', do famoso Louis Ferdinand Céline. Acho que seria mais bonito se traduzissem o título por ``Viagem ao Fundo da Noite''. Ouço elogios enormes ao novo romance de Carlos Sussekind. E os italianos, então? Vigiam-me, da estante abarrotada, ``Anjo Negro'', de Antonio Tabucchi (ed. Rocco), os ``Poemas'', de Michelangelo Buonarrotti (ed. Imago), e o espantoso, exuberante, maravilhosamente traduzido ``Hilarotragedia'', de Giorgio Manganelli, que de tão bom parei na metade.
Falo dos italianos porque me encomendaram, há algum tempo, uma resenha de ``A Adalgisa'', de Carlo Emilio Gadda (ed. Rocco). Foi uma descoberta daquelas que só se fazem de vez em quando.
Mas o que é que se pode fazer? A quantidade de livros bons à nossa disposição excede o tempo de uma vida normal. E eu não li ``A Consciência de Zeno'', de Italo Svevo, nem ``Os Noivos'', clássico de Manzoni.
Nesse ponto, a obrigação de escrever resenhas oferece um prazer ambíguo. Pedem-me para fazer uma resenha. Bem, não era exatamente o livro que eu queria ler; mas há surpresas enormes. Faço anualmente um esforço para entregar-me aos ``grandes livros'': ``A Montanha Mágica'' foi para mim uma descoberta tardia, em umas férias de verão.
E quem ainda não leu ``A Divina Comédia'', o ``Dom Quixote'', ``O Vermelho e o Negro'', ``Em Busca do Tempo Perdido'', a ``Odisséia'', ``Guerra e Paz'' por que haverá de dar atenção aos últimos lançamentos das editoras sofisticadas?
No ambiente argentino, conhecemos Borges e Cortázar. Quem leu o ``Facundo'', de Sarmiento, ou o ``Martin Fierro'', de Hernández? Para não falar de Lungnes, Macedónio Fernández, do ``Don Segundo Sombra'', de Guiraldes, de Horacio Quiroga, de Roberto Arlt?
A Argentina é um mundo inteiro. Davi Arrigucci, crítico brasileiro, referiu-se ao ``sistema literário argentino'' –tradições e referências culturais que cada novo escritor, naquele país, deve absorver.
O fato é que topei com este livro de Ricardo Piglia, ``O Laboratório do Escritor''. Sem conhecer sequer a metade dos autores que ele cita, fiquei encantado com o que ele diz sobre a literatura.
O texto mais importante do livro são suas ``Teses sobre o Conto''. Não resisto a uma citação:
``Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: `Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida'. A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não-escrita. Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.''
Piglia desenvolve, em poucas páginas, esta descoberta: a de que um conto sempre conta duas histórias. Uma secreta, oculta; outra explícita.
Só por isso vale a pena ler ``O Laboratório do Escritor''. Mas as coisas não param aí.
Numa entrevista, Piglia fala sobre os seus vícios. Durante anos, foi um maníaco da natação. Parou de nadar. E aderiu ao tabagismo. ``Essa podia ser uma síntese de minha relação ao mesmo tempo tardia e substitutiva com os vícios. Uma coisa pela outra: essa é a estrutura da sociedade capitalista.''
O que Piglia dizia sobre o conto não difere muito do que ele está dizendo sobre o vício: ``Uma coisa pela outra'', uma história secreta atrás da história explícita, o fim da mania de natação substituído pela mania de fumar. Literatura é ``substituição''.
Ricardo Piglia, como a maioria dos escritores modernos, é um fascinado pela literatura policial. A coisa começa com Borges, remete a Dostoievski, passa por Faulkner e Hemingway: hesita em Conrad, Dickens, Henry James.
Há algum tempo, arrisquei a seguinte hipótese: a mania policial dos escritores contemporâneos –Rubem Fonseca, por exemplo– era no fundo uma forma de nostalgia pela narrativa clássica, algo com começo, meio e fim, em oposição às liberdades frouxas do romance de vanguarda.
Lendo Ricardo Piglia, vejo que as coisas não são tão simples assim. Talvez ele chegue à essência da literatura quando diz: ``O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto''. Em outro texto, Borges vinculava o ``fato estético'' ao ato de revelação; penso no desvelamento, na ``alethéia'' que tanto assunto deu ao filósofo Martin Heidegger.
E, se em toda obra literária há esse ``desvelamento'', essa ``revelação'' –um pequeno detalhe oferece a chave do comportamento de um personagem, por exemplo, ou um símbolo qualquer junta sentimento e subjetividade numa poesia–; se ``revelação'' contida, administrada, é a essência do trabalho literário, então o gênero policial, com suas investigações e mistérios, talvez seja o gênero ``literário'' por excelência.
É como se um conto policial ``revelasse'' o segredo que existe em cada empreendimento literário. Se em todo conto há ``duas histórias'', uma explícita, outra secreta –como quer Ricardo Piglia–, o romance de mistério ou a história de Sherlock Holmes fazem apenas mais explícita, e tomam como tema, uma procura da verdade da revelação, que mobiliza no fundo qualquer escritor, policial ou não.
Será isso mesmo? Tendo a acreditar que sim. O que não significa seguir, como se faz hoje em dia, as convenções policiais em cada livro que se pretenda escrever.
``O Laboratório do Escritor'', de Ricardo Piglia, aborda assuntos como este. É um livro interessantíssimo, desde que você se interesse pela coisa.
Folha de São Paulo
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