domingo, 2 de agosto de 2009

O DIALETO DOS FRAGMENTOS


FRIEDRICH SCHLEGEL

Onde começa a poesia
MARCIO SELIGMANN-SILVA
certa vez Valéry expôs com muita verve o ''problema'' diante do qual Baudelaire se colocava: ''Ser um grande poeta, sem ser nem Lamartine, nem Hugo, nem Musset''. Hegel, por sua vez, tinha como ''alter-ego'' Kant ou Schelling, mas seus modelos negativos por excelência foram os românticos de Iena e, dentre eles, sobretudo Friedrich Schlegel.
Se é verdade que todo ódio esconde uma incontida atração e identidade, Hegel procurou exorcizar os ''fantasmas'' que rondavam a sua teoria ao criticar o ''subjetivismo exacerbado'' dos românticos e ao denunciar o seu ''culto do feio, do mal, da mentira _da ironia''. Para ele, a arte autêntica deveria ''apresentar em si a visão de uma harmonia''. Segundo Hegel, ''é muito mais fácil interromper-se constantemente o duto da matéria exposta, iniciar, dar continuidade e terminar de modo arbitrário, lançar confusamente uma série de chistes e de sensações, gerando desse modo caricaturas da fantasia, do que aparar as pontas, desenvolver a partir de si um todo em si sólido como testemunho do verdadeiro ideal''. A polaridade entre a concepção clássica e a romântica não poderia ser mais gritante.
A concepção hegeliana encontrava-se umbilicalmente conectada a uma determinada visão do conhecimento. Enquanto Hegel visava à construção de um sistema do pensamento e julgava ser possível a redução do mundo ao conceito _''o real é o racional''_, para Schlegel tal representação do mundo é uma tarefa impossível. Ao invés da adequação entre o sujeito e o objeto levada a cabo pelo trabalho do entendimento e dos seus agentes, os conceitos, Schlegel _juntamente com o seu amigo Novalis e na senda aberta por Fichte_ propõe uma nova concepção de conhecimento que recusa a tutela milenar do paradigma da representação, ou, se se preferir, da ''mimesis''. Hegel compreendera essa revolução e foi contra ela que investiu com todo o peso de sua autoridade. O resultado da sua crítica aos românticos de Iena não poderia ter sido mais desastroso: com raras e nobres exceções, tais como Nietzsche, o círculo de Stefan Georg, Walter Benjamin, o primeiro Lukács e Peter Szondi, poucos são os autores que se debruçaram de modo sério sobre as obras de Schlegel e Novalis.
Por outro lado, não deixa de ser sintomático o fato de que essa obra tenha sido resgatada justamente após a Segunda Guerra Mundial, ou seja, numa época em que o discurso filosófico encontra-se em profunda crise. No volume de fragmentos que agora o público de língua portuguesa tem ao seu alcance _traduzido pelas mãos extremamente competentes de Márcio Suzuki, que aparelhou-o com uma apresentação tanto necessária quanto exata e com notas eruditas e inteligentes_ o leitor encontrará a resposta ao porquê dessa recepção tardia. Os fragmentos dividem-se em três grupos. O primeiro denominado ''Fragmentos Críticos'' foi publicado em 1797 na revista ''Lyceum der Schõnen Künste''; o segundo e mais volumoso grupo abarca os fragmentos publicados na revista ''Athenãum'' em 1798, e o terceiro grupo, também publicado nessa mesma revista _o principal órgão de divulgação das idéias do românticos de Iena_ em 1800, recebeu o nome de ''Idéias''.
Há uma clara ''evolução'' no pensamento de Schlegel que pode ser acompanhada ao longo desses três grupos de fragmentos. Em 1797, a temática gira em torno da superação da ''querela entre os antigos e modernos'' e documenta a ''distância'' que Schlegel tomou com relação a sua primeira fase de filólogo, historiador e tradutor de obras da cultura clássica greco-romana. A forma em si mesmo crítica do fragmento _em oposição à exposição sistemática_ já é aplicada aqui com maestria, e conceitos fundamentais do assim chamado primeiro romantismo _que teve seu auge justamente entre os anos 1798-1800 com a publicação da revista ''Athenãum''_ apresentam-se também desenvolvidos, tais como o de ironia e o de chiste (''Witz'').
A filosofia, como Schlegel a definiu então, seria ''a verdadeira pátria da ironia'' (e esta, por sua vez, foi definida como ''beleza lógica''). Evidentemente Schlegel estava sendo kantiano a seu modo: estava apenas desdobrando o ''topos'' iluminista da autonomia do sujeito. Para o indivíduo moral manter a sua autonomia intacta, ele deve limitar-se a si mesmo antes que isso ocorra por intervenção externa. Por sua vez, Schlegel encontrara na própria poesia esse modelo de sujeito que se auto-regulamenta: ''A poesia é um discurso republicano; um discurso que é sua própria lei e seu próprio fim, onde todas as partes são cidadãos livres e têm direito a voto''. A consequência _lógica!_ desse modelo criativo (vale dizer: auto-criativo) do ser como um poema (''poiesis'' significa justamente criação) levou a uma superação da divisão estanque entre o discurso filosófico e o poético, ou seja: ''Poesia e filosofia devem ser unificadas''.
Nos fragmentos de 1798 assistimos ao auge desse movimento de fundação de um novo modo de pensar baseado na ironia _quer dizer: na reflexão_ e na poesia. Esses fragmentos realizam a utopia moderna do livro total; a garantia dessa totalidade é dada pela sua abertura, pela construção de um caos produtivo. Além de F. Schlegel, também Novalis, Schleiermacher e August Wilhelm Schlegel alternam-se na autoria dos fragmentos que não levam uma assinatura. O pensamento deve caminhar para F. Schlegel não em linha reta (que seria o caminho do logos tradicional conduzido pelas amarras da lógica), mas antes num constante movimento de criação e destruição.
Como Schleiermacher afirma _kantianamente!_ num desses fragmentos, ''sem poesia não há nenhuma realidade, assim como, a despeito de todos os sentidos, não há mundo externo sem fantasia''. Esses fragmentos tematizam não apenas a teoria do conhecimento, mas também enfocam o amor, a mulher, a amizade, os diversos gêneros poéticos (com destaque para a teoria do romance, que teria sua origem na doutrina política de Platão), os gêneros da pintura, o próprio fragmento como síntese entre o subjetivo e o objetivo, entre o sistema e a sua ausência, a filosofia da história, o chiste, a morte, o belo, a teoria aristotélica da catarse, o trabalho do filólogo, a noção de gênio e o conceito de exposição, entre muitos outros temas. O último bloco de ''fragmentos'' _que Schlegel preferia qualificar com o epíteto de idéias_ já aponta para o apagar-se de um dos movimentos mais férteis da história do pensamento ocidental.
A genial desconstrução/reconstrução da tradição filosófica aos poucos cede lugar a uma espécie pouco produtiva de misticismo, que pode ser lida sobretudo na teoria que Schlegel elabora de uma nova religião _e que na prática se concretizou com a sua conversão espetacular ao catolicismo em 1808. Também o nacionalismo germânico do futuro Schlegel, ministro e participante do Congresso de Viena, já pode ser detectado aqui. Nem por isso as ''Idéias'' deixam de documentar a força do intelecto desse autor e a sua tentativa de dar continuidade à reflexão filosófica mediante a fusão entre a filosofia e a poesia (''ali onde cessa a filosofia, a poesia tem de começar'').
Schlegel definiu aqui a filosofia como uma elipse com dois centros: para os românticos, todo centro _assim como toda origem_ deve ser duplo. Não há ''eu'' sem um ''não-eu''. Schlegel, de resto, define a exposição das suas idéias como dependente de sua ''visão'', como marcada ''a partir do meu ponto de vista''. A filosofia tradicional até hoje não aceitou esse hiperbolismo do subjetivo e muito menos a definição romântica do ''eu'' como alternância entre ser e não-ser. Justamente nessa revolução do conceito de identidade _na coragem de se apresentar o ''eu'' como ''poiesis'' e jogo de diferenças_ encontra-se o núcleo da revolução romântica.

Marcio Seligmann-Silva é doutor em teoria literária e literatura comparada pela Universidade Livre de Berlim e professor de comunicação e semiótica na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

Folha de São Paulo

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