Caricatura e literatura
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
inovador e ousado na escolha de seu tema, este livro concentra-se na análise dos caipiras de Monteiro Lobato e Cornélio Pires e de obras escritas por jornalistas paulistanos sob os pseudônimos de Juó Bananére e Hilário Tácito, precedida de dois capítulos sobre a caricatura como recurso de escrita e sua presença na literatura paulista do início do século. Autores e obras quase unanimemente considerados ''menores'' pelas abordagens mais consagradas da crítica e da história literárias, tradicionalmente enfeixados pelo rótulo desqualificante de ''pré-modernistas'', ocupam o melhor de suas páginas. O próprio assunto já reveste o trabalho de grande interesse diante da inexplicável anemia das abordagens culturais na historiografia sobre São Paulo.
O propósito da autora é ''compreender a literatura destes escritores sem perder de vista sua motivação e significação no momento em que foi produzida''. Disto resulta a ênfase na contextualização histórica, felizmente cada vez mais comum nas histórias literárias produzidas pelos especialistas da área. O ''pré-modernismo'' transforma-se aí em um problema a ser enfrentado: a autora considera esta uma ''questão mal resolvida'' pelos estudiosos da literatura, e com toda a razão. Tal categoria classificatória parte de uma concepção quase beletrista, que destaca suas reviravoltas estéticas para configurar ''escolas'' ou períodos sucessivos.
Em contraposição, ela propõe uma leitura destas obras a partir de seus contextos para entendê-las plenamente em sua dimensão cultural, objetivo em parte comprometido pela timidez da análise e pela pouca familiaridade com desdobramentos recentes da historiografia sobre o período. Talvez por isso, em suas conclusões, não consiga ir muito além da percepção do caráter pretensamente ''híbrido'' de uma literatura plena de significados históricos cruciais. Apesar disso, o livro é cheio de boas intuições e, sem dúvida, dá muito o que pensar.
Se na busca da historicidade reside um dos mais importantes méritos do trabalho, também podemos apontar aí alguns de seus limites: é difícil contestar os dogmas de uma história convencional da literatura com base em análises produzidas por uma historiografia assentada nos mesmos pressupostos. Podem-se apontar alguns sintomas que sustentem este diagnóstico. Entre outros exemplos, a simetria buscada na escolha de dois autores voltados para temáticas ''rurais'' (Monteiro Lobato e Cornélio Pires) e dois com perfis ''urbanos'' (Juó Bananére e Hilário Tácito) sugere uma visão bastante tradicional da história, centrada na idéia de uma oposição campo/cidade e todas as suas decorrências (como os binômios arcaico e moderno, tradição e mudança etc).
Ao interpretar a ênfase de alguns destes autores na temática rural e caipira, a autora reforça esta impressão. Para ela, em Lobato e Cornélio Pires há sobretudo um ''regionalismo'' que parte da oposição entre campo e cidade, ''sobrelevando-se o primeiro como espaço de reencontro homem-natureza, forma de resgate da integridade perdida na cidade''. No entanto, como a própria autora nota, esta é uma ''literatura sobre o campo, feita na cidade, por e para citadinos'' _e tal observação deveria ter sido levada mais em conta na análise: exatamente por isso, ela não é necessariamente ''passadista e nostálgica'' como a autora sugere. O campo é o próprio centro do poder no período, e a caricatura pode perfeitamente desvelar um olhar crítico (pouco importa se ''urbano'' ou ''rural'') sobre as formas dominantes da política. A leitura pode então aparecer invertida, para tomar estas obras como visões intensamente contemporâneas e destinadas a atacar o próprio núcleo do poder.
Desta forma, a despeito das boas promessas, o livro não deixa de frustrar parcialmente o leitor. A sensação de que havia mais o que ver pode ser exemplificada na maneira de abordar Juó Bananére, uma das mais interessantes caricaturas produzidas nesse período. Não se trata apenas de um personagem literário, pois existiu em duas versões: a escrita, de autoria de um paulista de longo sobrenome _Alexandre Ribeiro Marcondes Machado_, e a gráfica, criada pelo traço de um filho de imigrantes italianos conhecido como Voltolino. As duas versões deste personagem certamente traduzem universos e pontos de vista diversos sobre a imigração e a cultura dos italianos, mesmo quando fazem rir dos mesmos episódios e personagens políticos. Eis aí um aspecto importante, mas bem pouco explorado na análise efetuada a partir deste material extremamente rico para uma história cultural.
Poder-se-ia citar outros exemplos de como velhas interpretações históricas interferem na compreensão destas obras e de questões deixadas à margem, ou apontar alguns erros factuais e inferências apressadas. Mas não vale a pena esmiuçar nestes termos um trabalho que vale pelo que é.
Mesmo saudando o esforço evidente de buscar a interdisciplinaridade, deve-se enfatizar que os nexos entre literatura e história são ainda tomados na análise como relações de exterioridade: se julga que a segunda pode explicar a primeira, a autora não parece concebê-las plenamente como duas aparências do mesmo.
De certa forma, ao tentar acompanhar (e defender diante da crítica literária à velha moda) a dessacralização da literatura empreendida por esses autores, ela não consegue abandonar simultaneamente a crença em seu caráter sagrado. Há sem dúvida aí uma questão de fundo. Preocupada com os impasses vivenciados por intelectuais que experimentavam a dupla condição de ''escritores-jornalistas'', a autora anota a mudança no suporte e na forma da escrita, mas não vai suficientemente fundo na percepção dos novos sentidos da literatura no contexto da massificação da cultura _processo já sensível em período bem anterior ao momento em que está centrada a sua análise.
A ''desliteraturização'' era questão que já ocupara muito das atenções de escritores das últimas décadas do século 19, divididos entre a missão sublime da arte e a sobrevivência nas redações de jornais ou na produção de teatro considerado ligeiro. Se esses literatos trataram de sacralizar sua atividade principal dedicada às musas e de hierarquizar seus textos entre a arte e a sobrevivência, respondiam a contingências históricas e culturais muito precisas.
Isto os diferencia de Lobato e seus contemporâneos em sua busca pela acessibilidade, mas absolutamente não os opõe: a perspectiva pedagógica, a auto-atribuída capacidade de tutela e outras características deste grupo dotado de uma identidade específica foram mantidas naquelas décadas bafejadas pela novidade.
Mas a autora, ao que parece, não problematiza esta auto-imagem dos literatos, ao considerar o jornalismo como esgotamento das possibilidades da literatura séria e canônica, que explicaria o recurso dos escritores que analisa à sátira e outras formas de humor. O próprio campo semântico que utiliza para definir esta intensa produção _com palavras como ''popularização'' ou ''concessão ao gosto do público''_ sugere que esta parece-lhe mesmo uma literatura menos nobre.
Em sua perspectiva, a caricatura estaria ligada às ''novas formas de produção e circulação da cultura que determinam e exigem mudanças'', sobretudo nas linguagens adequadas aos novos suportes. Mas não nos significados _e novamente a massificação perde a importância explicativa que poderia ter diante de questões como as levantadas neste livro. Ao ler os textos dos quatro autores que selecionou, a autora não vê senão ''ambiguidade'', onde, por força desta mesma dinâmica cultural, existia sobretudo polissemia.
Os elos entre eles são percebidos mais nas afinidades de estilo e linguagem humorística que naqueles conferidos pelo próprio tempo em que viveram, compartilhando a busca de caminhos políticos, estéticos e profissionais num processo cultural que pressupõe múltiplas possibilidades de leitura e fruição.
Fica assim a autora, com seu inegável talento, nos devendo investigação e reflexão em torno das formas e possibilidades de recepção destas obras. Procurar o ponto de vista dos leitores certamente traria uma contribuição ainda mais substantiva ao debate em torno dos seus nexos e significados históricos.
Maria Clementina Pereira Cunha é professora do departamento de história da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Folha de Sã Paulo
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