Gladys Mary Teive Auras
Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. E-mail: gladys2@brturbo.com.br
COMENIUS, Juan Amós. Pampedia (Educación Universal). Traducción de: Federico Gómez R. de Castro. Madrid:UNED, 1992. 339 p.
Pampedia ou Educação Universal é um dos sete livros que compõem a obra Humanarum Rerum Emendation (Consulta universal para a reforma das coisas humanas), de autoria de Juan Amós Comenius, publicada em 1935, quase trezentos anos após a sua morte.
Depois de ter perdido seus escritos em um incêndio, Comenius dedicou os últimos quatorze anos de sua vida à reconstrução de seu sistema pansófico. Em sua obra Opera Didactica Omnia, datada de 1657, da qual faz parte a Didactica Magna, ele recompila sua obra pedagógica escrita entre 1627 a 1657, e em "Consulta universal para a reforma das coisas humanas", concluída em 1670, apresenta o seu projeto de, através da educação, "pôr ordem ao homem", para que este possa realizar a sua missão e o seu dever de estabelecer a ordem no mundo.
Pampedia, o quarto livro desta obra, é dedicado à "arte de implantar a sabedoria nas mentes, nas línguas, nos corações e nas mãos de todos os homens" (p. 45) para, dessa forma, conseguir a reforma global das coisas humanas e o melhoramento do mundo. Segundo suas próprias palavras: "Todos têm necessidade da sabedoria: porque são não apenas professores/mestres de si mesmos, senão que também estão chamados a ensinar, dirigir e governar aos demais na medida que o exija a organização social" (p. 34). É com esse propósito que Comenius defende a necessidade, a possibilidade e, sobretudo, a facilidade de educar a todos os homens (Cap.1), em todas as coisas (Cap.2) e totalmente (Cap.3): Omnes, Omni, Omnimode.
Mas, a quem se aplicaria o conceito de todos os homens e o que Comenius entenderia por ensinar tudo e totalmente? Com efeito, para o pensador moravo, todos os homens significa todo o gênero humano, de qualquer idade, condição social, sexo ou nacionalidade. "Não um indivíduo, nem a poucos, nem sequer a muitos, senão a todos e cada um dos homens, jovens e velhos, ricos e pobres, nobres e plebeus, homens ou mulheres" (p. 41-42). Refere-se ao seu desejo de que todos os homens, sem distinção, sejam educados integralmente,
não em uma matéria, nem em umas poucas coisas, nem sequer em muitas, senão em todas aquelas que contribuem para aperfeiçoar a natureza humana, para que assim todos possam reconhecer o verdadeiro e não deixar enganar-se pelo falso; a amar o bem sem deixar-se seduzir pelo mal; a fazer o que se deve fazer e preservar-se do que se deve evitar; a falar sabiamente de todas as coisas, de tudo e com todos sem ter que emudecer jamais; e, por último, saber atuar sempre com prudência e não temerariamente, com as coisas, com os homens e com Deus e assim não afastar-se jamais do objetivo de sua felicidade (p. 42).
Todas as coisas, por sua vez, diz respeito à cultura universal, através da qual se procura conseguir tudo o que é possível para assegurar o maior esplendor do homem, imagem de Deus. Tudo, em síntese, para Comenius, significa tudo o que é necessário para que o homem possa ser sábio e feliz.
Para que seja possível ensinar a todos tudo de tudo, Comenius propõe, em sua Pampedia, a criação de escolas universais para cada idade; a seleção de livros universais para cada idade e a formação de professores universais para cada idade. No capítulo V, ele defende a necessidade, a possibilidade e a facilidade do estabelecimento de "escolas universais ou "pampédicas", em todos os lugares: em cada casa, em cada aldeia, em cada cidade, em cada província, por todo o mundo e em qualquer lugar onde vivam os homens mais velhos. Às primeiras escolas ele chama de escolas privadas, porque seu cuidado é responsabilidade exclusiva dos pais; as três escolas intermediárias são escolas públicas, sob a responsabilidade da Igreja e do Estado, e as duas últimas são responsabilidade pessoal, uma vez que acreditava que tendo alcançado a maturidade, cada um deve ser o artífice de sua própria sorte, não dependendo senão de Deus e de si mesmo.
A necessidade da organização e seleção de livros pampédicos é discutida no Capítulo VI, de nome Pambíblia, em que é explanado como devem ser selecionados e utilizados os livros e outros instrumentos necessários para "polir" a inteligência. Pambíblia refere-se ao conjunto de livros destinados à educação universal e compostos conforme as leis do método universal. Segundo Comenius, os livros devem ser poucos, para que seu número não assuste, mas devem ser variados e adequados às diferentes idades pelas quais vai passando o homem desde o seu nascimento ao ponto mais elevado de sua vida. Ao invés de serem "depósitos de ciência de erudição e de sabedoria, os livros devem ser, de acordo com Comenius, meios de comunicação, túneis e canais, através dos quais chegue à alma de quem os lê" (p. 124). Os didáticos devem ser escritos na forma de diálogo e apresentar conhecimentos úteis à vida.
A formação de mestres universais ou pampédicos - os "cultivadores universais da inteligência" - é examinada no Capítulo VII. Comenius defende que os formadores de homens sejam seletíssimos, piedosos, honestos, dignos, cuidadosos, diligentes e prudentes. O método que deverão utilizar para ensinar a todos, tudo e totalmente deve ter três finalidades básicas: Universalidade: para que todos possam aprender tudo; Simplicidade: para que por meios seguros se chegue à certeza; Espontaneidade: para que aprendam suave e alegremente, mesclando-se ao útil o agradável, ordenada e gradualmente, do mais fácil ao mais difícil, considerando as diferenças de idade e os três graus de conhecimento das coisas: o intuitivo, o comparativo e o ideativo. Em síntese, o método de ensino deverá ser agradável de modo que a aprendizagem se assemelhe a um jogo, permitindo aos alunos "ver, dizer e fazer por si". Trata-se do intueri, intuitus, que virá a ser o lema da pedagogia moderna.
Por fim, para que as escolas efetivamente sejam pampédicas, Comenius as divide em sete estágios ou gradações, de acordo com as diferentes idades do homem, desde a sua concepção até a morte, e de acordo com os ciclos da natureza, a saber: 1ª) Escola da Formação Pré-Natal, a qual tem uma estreita analogia com o início do ano e com o mês de janeiro (Cap.VIII); 2ª) Escola da Infância, análoga aos meses de fevereiro e março, período da germinação (Cap. IX); 3ª) Escola da Puerícia, correspondente a abril, período em que as plantas florescem (Cap.X); 4ª) Escola da Adolescência, análoga a maio, início da frutificação (Cap.XI); 5ª) Escola da Juventude, análoga a junho, que faz os frutos amadurecerem (Cap.XII); 6ª) Escola da Idade Adulta, que tem analogia com os meses de julho a outubro, em que é feita a colheita e o preparo para o inverno (Cap.XIII); 7ª) Escola da Velhice, que tem analogia com o mês de dezembro, em que é encerrado o ano e completado o processo, e a oitava escola, A Escola da Morte (Cap. XV), na qual deverá ser trabalhada "a arte de morrer bem e felizmente"(p. 328). Com esta gradação escolar, juntamente com bons livros, bons mestres e um bom método de ensino, estariam garantidos os três principais pontos da felicidade humana: nascer bem, viver bem e morrer bem.
Omnes, omnia, omnimode - ensinar tudo a todos totalmente. Esta "desconcertante pretensão", tal como observou Jean Piaget na introdução que fez à Opera Didactica Omnia - uma publicação alusiva ao terceiro centenário da obra comeniana, é para Comenius não só necessária, como possível e fácil. Necessária, porque sem educação o homem não se realiza como ser bom e racional, feito à imagem de Deus, e dessa forma, não pode cumprir o seu destino na Terra, onde foi colocado "não apenas como expectador mas como ator", para o serviço de si, do próximo e de Deus. Possível, porque a graça divina é universal, dada a todos indistintamente, porque todos os homens têm diante de si a mesma vida eterna, e "onde Deus não fez diferenças não deve o homem estabelecê-las" (p. 51). Fácil, porque basta seguir um projeto educativo estratégico, a Pampaedia ou educação universal, através da qual todos os homens poderão tornar-se pansofos, isto é, conhecedores de todas as conexões entre as coisas, os pensamentos e as palavras; conhecedores dos fins, os meios e os métodos de trabalhar com todas as coisas (as suas e as dos outros) e que nas suas ações, pensamentos e palavras, saibam distinguir o essencial do acidental, o indiferente do pernicioso (p. 45). Segundo Comenius, se todos soubessem fazer tudo isso, todos seriam sábios e o mundo estaria cheio de luz, ordem e paz.
Pouco conhecida no Brasil, Pampedia é, sem dúvida, uma obra atual. A ideia de uma educação para todos, presente em todas as fases da vida humana, do nascimento até a morte, tem nítida correspondência com a reivindicação contemporânea do direito de todos à educação, com os ideais de democratização da educação e com a concepção de educação permanente, de autoeducação, de autoformação e de autoconstrução do saber. É atual também a sua defesa da universalização do pensamento, da comunicação e tolerância entre os povos e as religiões, e muito especialmente o seu projeto de paz mundial, consubstanciado na obra "Anjo da Paz", por ele enviada aos representantes políticos da Inglaterra e da Holanda reunidos em Breda, em 1667, a qual teria estimulado a criação da Sociedade das Nações, da UNESCO, do Bureau International d'Education, entre outras instituições internacionais originariamente comprometidas com a garantia da paz e da tolerância universal. Vale a pena ler não apenas Pampedia, mas também outras obras de Juan Amós Comenius, o precursor da reivindicação do direito de todos os homens à educação.
Educar em Revista - UFPR
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