Em vários lugares do passado
Aos 70 anos, Vargas Llosa escreve
sua primeira história de amor. Com ela,
recupera as últimas décadas do século XX
Moacyr Scliar
Havia muito tempo, diz o peruano Mario Vargas Llosa, ele planejava escrever uma história de amor – não de erotismo e atração, como já fizera em Tia Julia e o Escrevinhador ou em Pantaleão e as Visitadoras, mas efetivamente um romance centrado na relação de um casal. Que ele tenha esperado até os 70 anos para pôr o plano em prática mostra a natural hesitação do escritor experiente diante do risco do lugar-comum. E mostra também o acerto da espera. Em Travessuras da Menina Má (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht; Objetiva/Alfaguara; 302 páginas), Vargas Llosa dribla tal risco mesclando a ficção com a memória. Seu romance (um dos títulos que inauguram no Brasil o selo literário Alfaguara, aqui lançado pela editora Objetiva em sociedade com o grupo espanhol Santillana) é uma obra sedutora, na qual o autor, seguindo sempre a trajetória desencantada de seus personagens, revisita algumas das cidades fundamentais de sua vida: Lima, Paris, Londres e Madri.
Vargas Llosa foi um dos expoentes da explosão latino-americana que, nas décadas de 60 e 70, colocou as obras de escritores como Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e Alejo Carpentier nas vitrines de livrarias européias e americanas. Esse prestígio coincidiu com o auge do realismo mágico, que, recorrendo ao absurdo como se este fosse um componente normal da realidade, funcionava como protesto contra as ditaduras que então dominavam a maior parte da América Latina. Vargas Llosa não foi um cultor do estilo, mas era – e é – um escritor atento à realidade política do continente. De todo ele, e não apenas do Peru. Em A Guerra do Fim do Mundo, por exemplo, abordou a Guerra de Canudos, no Brasil.
A maior parte de Travessuras da Menina Má, porém, se passa na Europa. O livro traz uma dedicatória intrigante: "A X, em memória dos tempos heróicos". O autor se recusa a dizer quem é X, ou que tempos heróicos são esses. O enigma termina aí. A história é clara, linear. Gira basicamente em torno de dois personagens, um homem e uma mulher. Nos anos 50, encontramos Ricardo Somocurcio no bairro de Miraflores, em Lima (um cenário preferencial do escritor), apaixonado pela chilena Lily, que, descobre-se logo, nem é chilena nem se chama Lily. Mentiras balizarão a história dessa mulher ao longo das quatro décadas abrangidas pela narrativa.
De Lima, Ricardo vai para a Europa, onde ganha a vida como tradutor. Através dos anos, mantém a patética paixão por Lily, que responde a ela de maneira ambivalente: faz sexo sem amor, entrega-se sem se entregar. É uma relação sadomasoquista, expressa no tratamento que os amantes dão um ao outro: Ricardo é chamado de "bom menino"; ela é a "menina má", que dá ordens inclusive durante o sexo. Mas Lily não é apenas uma mulher fria e manipuladora. É (e nisso representa um triunfo ficcional do autor) uma personagem contraditória e, no fim, trágica.
Não há dúvida de que Vargas Llosa está recuperando sua história pessoal e a de sua geração, e o faz de maneira até um pouco didática. Esse é daqueles livros que dão ao leitor a sensação de estar aprendendo algo sobre a segunda metade do século XX. Aí temos o movimento guerrilheiro peruano, a efervescência intelectual da França nos anos 60, a "swinging London" que ditava a moda na década de 70. Em todos esses lugares Ricardo reencontrará a sua amada, que vai camaleonicamente assumindo diferentes papéis: guerrilheira treinada em Cuba, esposa respeitável de um marido idoso, amante de um gângster japonês – sempre metida em confusões, sempre fugindo, e sempre reaparecendo de forma inesperada.
Militante comunista na juventude, Vargas Llosa remodelou seu pensamento e candidatou-se à Presidência do Peru, em 1990, com um programa liberal. Os eleitores preferiram Alberto Fujimori, com sua plataforma populista (um disfarce para a corrupção, como se viu depois). Melhor para os leitores – não só peruanos –, que continuaram a contar com um escritor excelente em tempo integral.
Londres é uma festa
"A curiosidade de Mrs. Stubard não se satisfez com as descrições de Juan sobre como a cannabis aguçava a lucidez e a sensibilidade, particularmente para a música. Afinal, vencendo seus preconceitos – ela era metodista praticante –, Mrs. Stubard deu dinheiro a Juan para experimentar maconha. A sessão teve como fundo musical a trilha sonora de Yellow Submarine, o filme dos Beatles que Mrs. Stubard e Juan foram ver de braços dados num cinema de estréias no Picadilly Circus. O meu amigo se preocupara com a possibilidade de que o barato fizesse mal à sua protetora e amiga, e de fato ela terminou se queixando de dor de cabeça e adormeceu de pernas para o ar no tapete da sala."
Trecho de Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa
"VÍAMOS O QUE QUERIAMOS VER"
Mario Vargas Llosa ainda participa da vida pública peruana – mas por meio de artigos e ensaios. Derrotado na eleição presidencial
de 1990, ele desistiu da política e hoje vive entre Lima, Europa e Estados Unidos. De Washington, onde passa o semestre
para dar um curso na Universidade Georgetown, ele falou com o repórter Jerônimo Teixeira.
EM TRAVESSURAS DA MENINA MÁ O SENHOR PERCORRE PARIS, LONDRES E MADRI. POR QUE ESSAS CIDADES?
Nos anos 60, viver em Paris era um privilégio. Era o centro da vida cultural e política. Nos anos 70, ela perdeu essa posição para Londres, com a revolução dos hippies, das drogas, dos gays. E foi maravilhoso viver em Madri na década seguinte, com o fim do franquismo. Essas cidades são a parte autobiográfica do livro.
POR QUE LILY, A PROTAGONISTA, É TÃO FRIA E DISTANTE, ATÉ NA HORA DO SEXO?
Ela representa o preço altíssimo que muitas mulheres tiveram de pagar por sua independência. É uma luta que não está encerrada na América Latina, onde o peso da tradição ainda é forte. A "menina má" pensa que, se se entregar ao amor, vai ser derrotada.
EM PARIS, O PROTAGONISTA ENCONTRA EXILADOS PERUANOS QUE SONHAM COM UMA REVOLUÇÃO NOS MOLDES DA CUBANA. HÁ AÍ ALGUMA NOSTALGIA?
Ricardo, o protagonista, evoca esses tempos com uma certa saudade. Ele mesmo não chegou a compartilhar essas ilusões: é indiferente à política, e o amor é sua única aventura vital. Mas muitos amigos seus morrem por essa revolução utópica. Hoje, as pessoas da minha geração notam que havia uma imensa ingenuidade nesses ideais. Mas também havia generosidade, uma disposição para o sacrifício.
SOBROU ALGO DESSE IDEALISMO NA ESQUERDA DE HOJE?
Não. A prova é que essa esquerda romântica degenerou, no caso do Peru, no Sendero Luminoso, um grupo de fanáticos que matam inocentes e pobres. Em Cuba, no início, também enxergávamos uma face romântica na revolução. Víamos o que queríamos ver, claro.
O SENHOR SEMPRE CRITICOU O ATUAL PRESIDENTE DO PERU, ALAN GARCIA. MAS, NA ÚLTIMA ELEIÇÃO, APOIOU-O CONTRA O POPULISTA OLLANTA HUMALA.
Na literatura, podemos escolher só a excelência. Em política, não: muitas vezes, temos de escolher o mal menor. García representa, pelo menos, a continuidade do sistema democrático. 27 de setembro de 2006
Revista Veja
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