terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Redimensionando a Independência

Redimensionando a Independência

Maria Fernanda Bicalho

Professora Adjunta do Departamento de História da UFF. E-mail: mfbicalho@uol.com.br

MALERBA, Jurandir (org.). A Independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006

Em meio aos preparativos para a comemoração dos 200 anos da vinda da corte portuguesa para o Brasil, surge no mercado editorial a A Independência brasileira: novas dimensões. Organizado por Jurandir Malerba, o livro é um convite à reflexão sobre um momento crucial da nossa história. Há muito a historiografia sobre o período colonial vem sendo revista por novas teses que compartilham perspectivas inovadoras e dialogam com o que há de mais recente no meio historiográfico internacional. Os artigos da coletânea, originalmente apresentados no seminário New Approaches to Brazilian Independence, em 2003, na Universidade de Oxford, são o resultado de pesquisas de uma nova geração de historiadores sobre o tema. Seu subtítulo (Novas dimensões) visa tanto sublinhar o valor de uma obra que marcou época – organizada, em 1972, por Carlos Guilherme Mota –, quanto distanciar-se de seus pressupostos e métodos de abordagem histórica.

O instigante artigo de Jorge Pedreira, Economia e política na explicação da Independência do Brasil, abre a primeira parte do livro. Ao discutir os argumentos de uma historiografia "clássica" sobre o tema, contesta as interpretações de Fernando Novais e de Carlos Guilherme Mota, baseadas na crise do antigo sistema colonial, uma vez que, segundo o autor, o império luso-brasileiro conheceu uma notável expansão comercial em sua fase final. O conceito de vulnerabilidade – já utilizado por Valentim Alexandre em Os sentidos do império – aplica-se, segundo Pedreira, para designar aquela conjuntura complexa e mutante, pois nada indicava que o sistema colonial estivesse condenado à desintegração. Analisa as convulsões políticas que abalaram Portugal, a transmigração do rei e da corte para o Brasil, a abertura dos portos, o tratado de 1810, o isolamento do grupo mercantil no Reino. Tais fatores teriam gerado um conjunto impreciso de idéias, assim como projetos de "regeneração nacional". A análise do espaço de convergência entre os interesses dos corpos mercantis de Lisboa e do Porto e as perspectivas políticas de uma importante facção das cortes constituintes levam-no a concluir que, apesar da relevância das questões econômicas, a dinâmica que desembocou na secessão do Brasil teve um caráter essencialmente político.

Em As múltiplas utilidades das revoltas, João Pinto Furtado desconstrói a idéia de uma relação de causa e efeito entre as inconfidências do final do século XVIII e o processo de independência, afirmando que, se ela existiu, se deveu à sua apropriação e releitura pelos agentes da emancipação. Furtado retoma, com argúcia, as antes citadas teses estruturais sobre a independência, incapazes, a seu ver, de dar conta de processos que só podem ser compreendidos à luz da crítica documental. Contrapõe-se à argumentação de Kenneth Maxwell de que a Inconfidência Mineira revelou aspectos nacionalistas e revolucionários, sugerindo que ela teria sido antes um "motim de acomodação" nos moldes do Antido Regime português. Analisa as trajetórias de três homens que nela se envolveram, foram condenados e reabsorvidos na estrutura político-administrativa da monarquia e do império. Ao deter-se nas devassas – instrumeno de gestão política e documento esclarecedor da estrutura de poder luso-brasileira –, conclui que a relativa impunidade da maior parte dos sediciosos e sua plena reinserção nos levam à compreensão dos limites das sedições e, ao mesmo tempo, permitem-nos entrever sua ressignificação a partir de 1821-1822.

Kirsten Schultz, ao analisar a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro a partir do enquadramento teórico da "era das revoluções" – baseando-se nas teses de R. R. Palmer e J. Godechot –, avança pouco historiograficamente, contradizendo alguns dos argumentos inovadores dos dois artigos antes citados. Schultz carrega nos conceitos de revolução e contra-revolução para dar conta dos movimentos europeus e suas implicações na América. Dialoga timidamente com a historiografia, tanto portuguesa, quanto brasileira, e suas recentes teses sobre o poder, a autoridade e a política. Ao discutir a nova gramática constitucional – "em oposição à linguagem cavilosa do antigo regime" (grifo meu) –, descobre novos sentidos de velhas palavras. Ao defender que a transferência da corte alterou as percepções do império português e forçou administradores reais a reconhecerem a necessidade de uma opinião pública na afirmação da legitimidade monárquica no exílio, contribui, enfim, para novas dimensões históricas e historiográficas.

De homens e títulos: a lógica das interações sociais e a formação das elites no Brasil às vésperas da Independência, assinado por Jurandir Malerba, analisa as tramas que ligaram a coroa e a aristrocracia portuguesas aos "homens fortes" – comerciantes de grosso trato – no Rio de Janeiro. Suas estratégias de ascensão inscreviam-se na gramática do Antigo Regime. O autor analisa os cerimoniais e a representação da corte, baseando-se nos estudos de Balandier, Renato Janine Ribeiro, Huizinga e Peter Burke. Porém, ao descrever a hierarquia social e estamental que regia aquela sociedade, utiliza conceitos alheios ao seu vocabulário, como "as classes superiores residentes", ou a "burguesia residente no Rio de Janeiro". Em suas considerações finais, volta a deixar o leitor intrigado diante da afirmação de que "se a Revolução liberal de 1820 encaminhou o sistema português rumo ao constitucionalismo, o Brasil experimentou ainda muitos anos de monarquia absolutista", sem discutir como ela coexistiu com o regime liberal e constitucional pós-independência.

Em Apelos constitucionais nas cortes constituintes de Lisboa (1821-1822), Márcia Regina Berbel revisita as posições e os discursos de deputados brasileiros nas cortes portuguesas no intuito de compreender aspectos da experiência e do pensamento político nos primórdios do liberalismo. Em vez de analisar a reunião das cortes como prenúncio das independências na América – como fez grande parte da historiografia tradicional –, percebe-as como tentativas de manutenção da unidade das distintas partes do império, com seus diversos e por vezes confrontantes projetos.

Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos homens e de si (c. 1780-1830), de Iara Lis Schiavinatto, recua no tempo e avança no recente debate histórico-historiográfico acerca das práticas políticas de Antigo Regime nos dois lados do Atlântico. A partir dos conceitos de centro e localidades, discute o sentimento de pertencimento, a elaboração de uma identidade coletiva, a noção contratual do direito público português e os laços políticos que ligavam vassalos e soberano. Seu objeto de análise, tecido com maestria, é a redefinição das identidades coletivas e políticas quando da fundação do Brasil como corpo político autônomo. Sua abordagem envolve o debate a respeito do governo de si e dos homens, a correspondente liturgia política, os protocolos de convivência social e a produção de identidades individuais e compartilhadas.

Em Insultos impressos: o nascimento da imprensa no Brasil, Isabel Lustosa, ao retomar e aprofundar argumentos presentes em vários outros artigos da coletânea, analisa o papel desempenhado pela imprensa na difusão, no debate e na legitimação de uma gama de projetos de ordem, participação e soberania em meio à disputa entre as diferentes facções políticas nos anos de 1821 a 1823. Discute a importância de Hipólito da Costa – editor da Gazeta do Rio de Janeiro – na formação da opinião pública e da consciência dos jornalistas da independência. A cultura impressa, assim como a educação, constituíam-se, segundo a autora, em chave de uma conduta política racional que asseguraria o bom funcionamento do novo governo liberal.

Lilia Moritz Schwarcz analisa a dimensão simbólica e cultural que, ao lado de medidas pragmáticas, perpassou e enformou a legitimação política no período posterior à independência. Em Pagando caro e correndo atrás do prejuízo, debruça-se sobre as festas e o alto preço pago pela Biblioteca Real, trazida para o Rio de Janeiro com a corte. Ao constar em segundo lugar no cômputo das negociações do montante a ser pago para o reconhecimento da Independência, a simbologia de sua permanência no Brasil é mais que evidente. Como afirma Schwarcz, "nada como um grande acervo de livros para assentar o império, no sentido de lhe auferir uma legitimidade ilustrada, que o igualava às demais nações européias. Aí estava um país recém-independente, mas que já acumulava saberes seculares...".

O interessantíssimo estudo de Hendrik Kraay, Muralhas da independência e liberdade do Brasil: a participação popular nas lutas políticas (Bahia, 1820-1825), traz para o cenário político atores sociais menosprezados pela historiografia. Analisa o protagonismo das classes populares e discute não apenas como se inseriram e lutaram pela autonomia, mas também como se viam nesse processo. Defende que a guerra criou novas identidades e proporcionou-lhes uma nova consciência de sua importância para o Estado. Ao enfocar libertos e escravos da Bahia – lugar onde a independência assumiu um desdobramento singular em relação às províncias do centro-sul –, afirma haver muitos indícios de um "patriotismo popular" que interpretava a independência como realização dos homens de cor.

Em O avesso da independência: Pernambuco (1817-1824), Luiz Geraldo Santos da Silva coloca em questão tanto a perspectiva nativista de que o movimento de 1817 teria significado uma antecipação da Independência, quanto a visão saquarema de que possuía um projeto separatista. Ao reler documentos elaborados pelas juntas provisórias, conclui que o termo "independência", em vez de significar separação absoluta, visava à autonomia provincial, a uma espécie de "governo federal". Recupera, em nova chave explicativa, as lutas, os interesses e os projetos de diferentes segmentos das elites pernambucanas, desde 1817 até a Confederação do Equador. Observa, com a mesma preocupação de Hendrik Kraay, a emergência de "pretos" e "pardos" no mundo da política.

O último capítulo do livro, Independências americanas na era das revoluções: conexões, contextos e comparações, de Anthony McFarlane, é um ensaio – um tanto generalista – de comparação dos movimentos de emancipação nas Américas. Discute suas semelhanças, diferenças e conexões. Da mesma forma que Schultz, o quadro teórico de referência é a "era das revoluções" e suas variantes, a "revolução democrática" ou "revolução atlântica". Embora dialogue pouco com a recente historiografia brasileira – tão bem representada nos capítulos deste livro –, concorda com o caráter conservador das "rebeliões coloniais". Afirma que, diante das políticas reformistas – bourbônica e pombalina – da segunda metade do século XVIII, seus protagonistas "viam-se a si mesmos defendendo o status quo e não subvertendo-o".

Se o livro, no conjunto de seus artigos, propõe novas abordagens e novos caminhos a serem percorridos pela pesquisa documental e interpretação historiográfica, o primeiro capítulo, Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência do Brasil (c. 1980-2002), de autoria de Jurandir Malerba, remói uma velha questão e aborda o que, no cenário historiográfico que se propõe a analisar, consiste num falso problema. Malerba reconhece a existência de uma "vaga revisionista da história de independência", porém enxerga em alguns destes trabalhos um viés nacionalista, o que decorre mais de uma leitura parcial dos estudos referidos do que de afirmações e argumentos de seus autores. É no mínimo intrigante atribuir a Maria de Lourdes Viana Lyra, autora de A utopia do poderoso Império, a defesa de uma visão que incorpora a construção da identidade nacional já naquele período e, ao contrário, propor, como se ela não o tivesse feito em seu livro, que a idéia de império luso-brasileiro é mais apropriada do que a de nação. Da mesma forma, é difícil aceitar ser a "questão nacional" o argumento central no livro de Gladys Sabina Ribeiro, A liberdade em construção. Para Malerba, "a solução adotada na obra de reificar sentimentos e estados (nacionais) atribuindo-lhes maiúsculas não soluciona satisfatoriamente o problema". Parece não perceber que "Causa Nacional" é grafada em maiúscula e entre aspas pela autora, não como estratégia de reificação de um sentimento ou de um estado nacional, e sim porque é termo utilizado na época, que lhe confere seus próprios significados, diferentes dos nossos, e assim aparece nos documentos coevos.

Outras questões pontuais mereceriam um maior desenvolvimento. Malerba constrói um quadro intitulado Produção historiográfica sobre a independência do Brasil até 2002 e o discute apenas em termos quantitativos. Embora afirme que a produção dos últimos 20 anos será o foco de sua análise (e os últimos 20 anos produziram um total de 66 estudos), não a interpreta sistematicamente, elegendo alguns títulos, deixando outros, igualmente fundamentais, de lado, mencionados apenas em nota de pé de página e de forma genérica. Entre eles, os livros de Istvan Iancsó, Brasil: formação do Estado e da nação; de Cecília Salles de Oliveira, A astúcia liberal; de Lúcia Bastos Pereira das Neves, Corcundas, constitucionais e pés-de-chumbo... Não ficam claros os critérios que utilizou ao eleger e contemplar uns e não outros. Em suma, o capítulo em questão mais se assemelha a um "juízo" do que a um "esboço crítico". O autor, em diversas passagens do texto, em vez de proceder a uma avaliação historiográfica e crítica da produção – antiga e recente – sobre o tema, a julga, e às vezes erroneamente. Em defesa dos comportamentos diferenciados das distintas regiões do Brasil no processo de independência, afirma, por exemplo, que a historiografia brasileira ainda a quer entender como entidade una. Não me parece que seja o caso, e testemunhos eloqüentes disto são, entre tantos outros, os artigos que compõem esta coletânea, e que nos oferecem, de fato, novas dimensões sobre a Independência.

Revista Tempo - UFF

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