Como Portugal domou a Revolução dos Cravos e marcou um ponto para a democracia no mundo
Rinaldo Gama
Agencia Zoom
Manifestantes nas ruas de Lisboa, em 1974: uma festa que quase terminou em guerra civil
Em 1974, uma rebelião militar pôs fim a mais de quatro décadas de ditadura em Portugal. As tropas do Movimento das Forças Armadas que entraram em Lisboa na manhã do dia 25 de abril, uma quinta-feira chuvosa, para destituir o primeiro-ministro Marcello Caetano, não encontraram resistência. Ao passarem pelas floristas do Rossio, no centro da capital, os soldados ganharam delas dúzias de cravos vermelhos, surgindo assim a expressão Revolução dos Cravos, pela qual o levante se tornaria conhecido. Apesar dessa imagem romântica, o movimento foi crivado de conturbações. Portugal esteve à beira de uma guerra civil – mas teve sucesso em "domar" sua revolução. É o que demonstra O Império Derrotado (tradução de Laura Teixeira Motta; Companhia das Letras; 334 páginas; 49,50 reais), do inglês Kenneth Maxwell, historiador da Universidade Harvard e especialista em Península Ibérica e América Latina. Trata-se de um estudo rigoroso e esclarecedor sobre um golpe de Estado singular.
A política colonialista de Portugal foi decisiva para a derrubada de Caetano, empossado em 1968, depois que o ditador António de Oliveira Salazar sofreu uma queda que o deixou em coma até a morte, em 1970. Diante dos movimentos de libertação que haviam eclodido nas colônias portuguesas da África, Caetano insistia no expediente da guerra, o que acarretava despesas colossais – 50% do gasto nacional. No contexto da Guerra Fria, o imbróglio colonial era uma questão sensível para os Estados Unidos e para a Otan, frente militar da qual Portugal foi membro fundador. Por muito tempo, os americanos viram o imperialismo português com reticência – o governo Kennedy chegou a auxiliar os movimentos de independência africanos. Maxwell observa que, por ironia, a Otan só deu apoio pleno à posição portuguesa na África nos anos 70, quando ela já era insustentável. Nessa altura, o colonialismo português se tornara mais palatável para os americanos, porque fazia frente aos movimentos marxistas que, com o apoio da União Soviética e de Cuba, combatiam a metrópole em Angola e Moçambique.
Foi um general, António Spínola, que colocou o salazarismo na linha de tiro, com o livro Portugal e o Futuro, lançado em 1974, e com a adesão dos oficiais menos graduados, os "capitães de abril". A repercussão do livro fez de Spínola um nome de peso para assumir o governo provisório após o golpe. Encurralado no quartel do Carmo, Caetano declarou que só se renderia a ele. Os anos seguintes seriam uma provação para Portugal – e O Império Derrotado cresce justamente a partir desse ponto. A questão das colônias africanas tomou conta dos debates, contrapondo todas as facções dominantes. No primeiro aniversário da revolução, havia mais presos políticos do que antes dela. Com tudo isso, os portugueses conseguiriam criar um sistema de governo pluralista. Numa interpretação original, Maxwell afirma que esse triunfo dos moderados foi um precedente para as transições do autoritarismo à democracia verificadas em fins dos anos 80 na América Latina e no Leste Europeu. Noutras palavras, o movimento português de 1974 culminou em uma direção que ajuda a compreender a nova ordem que, anos depois, se instalaria na Europa e fora dela – inclusive no Brasil.
Revista Veja
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