terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O sinthoma: uma questão de escrita


O sinthoma: uma questão de escrita

Angélica Bastos

Psicanalista; professora associada no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. abastosg@terra.com.br


O seminário, livro XXIII: o sinthoma, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2005, 249p.

Para o Seminário XXIII, lançado entre nós em 2005 graças à tradução de Sérgio Laia do original francês publicado nesse mesmo ano, confluem várias linhas do ensino que Jacques Lacan endereçou aos psicanalistas ao longo de várias décadas.

A começar pelo título, O sinthoma (Le sinthome), cuja grafia inova pela recuperação de uma forma antiga de escrever sintoma em francês, toda uma tradição de jogos de palavras, equívocos e homofonias, que Lacan coloca como operadores da interpretação, é por ele evocada, desde o abandono da forma antiga sinthome em benefício da grafia symptôme, a forma, digamos, moderna, adotada pela psicanálise até que ele fizesse essa intervenção. Neste seminário, trata-se do escritor James Joyce, depois de quem a literatura e a língua inglesa não puderam mais ser o que eram até então.

O seminário, cujo texto foi estabelecido por Jacques-Alain Miller, compõe-se de dez lições proferidas entre 18 de novembro de 1975 e 11 de maio de 1976. Ao final, encontram-se agregados alguns documentos de autoria de Jacques Lacan, Jacques Aubert e do próprio Jacques-Alain Miller, todos em torno de James Joyce. O texto de Lacan em anexo oferece uma chave de leitura para o seminário, posto que corresponde à conferência "Joyce o sintoma" (Joyce le Symptôme), realizada por ele em 16 de junho de 1975, por ocasião do 5º Simpósio Internacional James Joyce, ocorrido cinco meses antes do início do seminário. Embora o título do anexo ainda registre a grafia tradicional, o comentário sobre James Joyce invoca a distinção entre o pai como nome e o pai como aquele que nomeia, este último suscetível de pluralização, segundo os artifícios de nomeação que cada um forja. Assim, situa-se com clareza o pivô da grafia introduzida no decorrer da própria conferência: ali lemos que o tema é Joyce o sintoma, e não Joyce o símbolo, uma vez que este é abolido por Joyce, e que, por isso, não se trata do inconsciente, do qual ele estaria desabonado. Este sintoma, que não é símbolo, não constitui uma formação do inconsciente, mas uma suplência, pai que nomeia. De acordo com Lacan, Joyce visava fazer para si um nome e imortalizar seu nome próprio. A carência paterna de que sofria, teria levado o escritor, por intermédio de seu nome como autor literário, a construir uma versão para o pai, uma pai-versão (père-version) no sentido de uma versão em direção ao pai.

Na grafia reintroduzida, sinthome corresponde a uma nova forma de escrita: a escrita dos nós. O deslocamento ortográfico do termo psicanalítico sintoma para sinthoma dá as coordenadas de uma discussão eminentemente clínica que erige a arte literária do escritor James Joyce como "suplência de sua firmeza fálica" ou como "fiadora do falo". A partir daí, assistimos a uma seqüência de lições sobre o nó borromeano de três elos, sobre o nó borromeano em que real, simbólico e imaginário justapostos, quer dizer, separados, são ligados pelo quarto elo, o sinthoma, equivalente do pai. As aulas discorrem sobre o nó borromeano em suas diversas apresentações, sobre a falha a que o nó, ou melhor, a cadeia borromeana é suscetível e a correção que alcança por meio da obra. As epifanias são, então, entendidas como conseqüência do lapso do nó, vale dizer, a partir das relações entre os registros, em particular, a relação direta entre real e inconsciente, enodamento não mediado pelo terceiro, o imaginário. O caso Joyce, corresponde, segundo a proposta enunciada no seminário, a uma maneira de suprir um desenodamento do nó, em alguém cuja pretensão artística compensava a demissão paterna.

Ao longo dos comentários sobre as várias produções literárias de Joyce, destaca-se a convergência entre prática da letra e o saber-fazer com lalíngua (definida pelo conjunto de equívocos que lhe são possíveis), assim como as relações do sujeito com a escrita. Os efeitos da escrita sempre interessaram a Lacan, que os acompanhou desde o caso Aimée em sua tese de doutorado. Ele também os prescrutou no estudo das memórias de Schreber ao longo do Seminário III e na Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, culminando neste Seminário XXIII com a análise do uso que o escritor James Joyce faz de sua obra literária e dos efeitos de sua criação. Lacan ressalta o corte, o inusitado dessa literatura que, com seus neologismos, ressonâncias e homofonias translingüísticas, promove a perda do sentido, enquanto torna presente o gozo de quem escreve, conforme atesta Finnegans Wake, leitura vivamente recomendada por Lacan, à medida que nos faz acordar (wake) do sonho literário do sentido.

À escrita significante acrescenta-se, portanto, uma outra escrita. Na escrita significante, o uso da letra dá suporte ao significante; nesta outra modalidade de escrita, aquela dos nós, a letra não se encontra a serviço do significante, mas do gozo. O real da letra efetua a partilha entre o legível do significante e o ilegível, que, pelo próprio obstáculo à leitura, apresenta-se como objeto de estudo aos universitários que se dedicam à obra de Joyce há décadas e por muito tempo ainda, conforme o voto expresso pelo próprio escritor. O livro revolve o inconsciente, a linguagem e o corpo, indicando que o sinthoma, qualquer que seja sua grafia, excede o sintoma entendido como formação do inconsciente; que a linguagem, longe de impor uma estrutura, sofre os efeitos de decomposição e homofonia que lalíngua exerce sobre ela; e que o corpo, para que o falante o faça seu, requer amarração, nó que só o nome é capaz de atar.

A loucura de Joyce permanece no estatuto de interrogação e as pulsões, definidas como "eco, no corpo, de que há dizer um dizer", abrem uma via de abordagem da corporeidade – entendida como saco ou bolha, sustentada por orifícios. O poder que possui a forma para cativar o falante o faz acreditar que tem um corpo, o qual, na verdade, escapole. O caso Joyce mostra os percalços a que está sujeita a idéia de si como corpo e a necessidade de escrever um ego, quando o ego dito narcísico não funciona.

Desse percurso, decanta-se que "A psicanálise, ao ser bem sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição de nos servirmos dele". Essa colocação abre um novo campo de pesquisa vetorizado pela invenção, pela suplência, permitindo abordar casos de psicose e autismo que, com base no ensino dos anos 1950, permaneciam sob o peso da redução a zero do Nome-do-Pai e do falo.

Se o real era, para Lacan, sua resposta sintomática, reduzindo a invenção ao sinthoma, para o analista, ele deixa considerações sobre o fim da análise e uma pontuação capaz de orientar a leitura do seminário e a prática clínica: não é a psicanálise que é um sinthoma, mas o psicanalista.

Revista Ágora - UFRJ

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