domingo, 15 de julho de 2012

Mutações: a invenção das crenças



Diz a piada que, na Irlanda do Norte, um homem, ao cruzar a fronteira que divide protestantes e católicos, é parado por um fiel que lhe aponta uma arma. “Protestante ou católico?”, pergunta indeciso. “Ateu”, responde o homem. “Mas... ateu protestante ou ateu católico?”, insiste o fiel achando a resposta insuficiente.
A anedota, que foge ao senso comum – por lembrar que também o “a-teu”, ao crer que não crê em um deus, torna-se apenas mais um crente –, serve bem para ilustrar o que aguarda o leitor desta compilação de 22 palestras apresentadas no Sesc Vila Mariana em 2010, organizada por Adauto Novaes.
De maneira análoga, o livro desconstroi afirmações que aparentemente fazem sentido, como a de que a ciência é desprovida de crença – já que, por A+B, “crer em enunciados consagrados por instâncias religiosas seria uma coisa; aceitar enunciados aprovados por uma comunidade científica seria outra”. Ou nos é tarefa fácil aceitar, sem crer na palavra dos cientistas, que cada um de nós “possui em torno de três átomos que já pertenceram a qualquer outro ser humano que já viveu”?
Da mesma forma, acredite-se ou não, engana-se quem pensa que o livro se restringe a temáticas religiosas ou científicas. Há a análise de crenças para todos os credos. Das que permeiam a economia, a história e a psicanálise àquelas que motivam “céticos acadêmicos”, seguidores do “socialismo científico” e militantes de esquerda.
Em 530 páginas – que devem ser sorvidas em pequenos goles –, além dos “clássicos” Nietzsche, Agostinho e Habermas, entre tantos outros, são mobilizados ainda improváveis “pensadores”, como Jorge Luis Borges, Dostoiévski, Savonarola, Bin Laden, Machado de Assis e Antonio Candido.
Em tempos de Facebook, em que posições há muito impublicáveis ressurgem nos feeds de notícias, sob a roupagem do “respeite, essa é a minha opinião”, um dos textos serve como um bom manual de contra-ataque a tais reações “alérgicas” cheias de razão. O diagnóstico do autor de que um processo “digestivo” vem sendo preterido com o advento da internet serve de motivação para a absorção lenta desse peculiar livro.



Marcelo Netto Rodrigues
Jornalista e mestrando em Sociologia pela USP
Le Monde Diplomatique Brasil

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