A "ideologia do amor" e a beleza no jogo das relações de gênero*
Joana Maria Pedro
Professora Titular em História Social, Departamento de História/Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina
Um instigante mosaico da vida da elite na cidade de São Paulo nos anos vinte é o que nos apresenta Mônica Raísa Schpun neste livro, publicado na França com o apoio do Institut des Hautes Études de L'Amérique Latine. O livro é resultado de sua tese de doutorado em História, orientada por Michelle Perrot e defendida na Université de Paris VII. É dividido em três partes unidas pelo percurso sobre a cidade de São Paulo, suas transformações nos anos vinte e as mudanças nas relações de gênero. Em 266 páginas de uma escrita ágil e atraente, a autora nos conduz a uma cidade específica, a dos espaços percorridos, transformados, criados e delimitados para uma elite oriunda da riqueza trazida pelo café, e que reafirma sua posição recorrendo a uma origem que remonta aos tempos dos bandeirantes.
Este trabalho articula-se a quatro questões principais: as transformações urbanas, a constituição de limites entre o público e o privado, as exigências de um corpo belo e jovem, tudo isso focalizado pelo prisma das relações de gênero.
Como reflexão sobre a cidade, o livro de Mônica Schpun localiza-se ao lado de pesquisas que, desde os anos 80, vêm tematizando as transformações urbanas, desvendando uma cartografia definida por projetos que buscam constituir espaços diferenciados para as classes sociais. Tratam-se de investimentos que visam constituir distinções e que pretendem afastar as camadas populares dos espaços de circulação dos mais abastados. Este tipo de discussão, iniciado no Brasil em meados dos anos oitenta, deu destaque aos espaços criados na cidade para diversos personagens: os trabalhadores formais e informais, os migrantes, as prostitutas, enfim, os ditos "excluídos". No livro de Mônica, entretanto, não são estes os espaços que ganham destaque, mas aqueles construídos para a circulação da elite.
A autora, então, além de citar, comentar e criticar os trabalhos que têm focalizado a história da urbanização no Brasil, acrescenta, a partir deste patamar, o cruzamento entre o processo de urbanização e as relações de gênero.
Assim, na São Paulo estudada por Mônica, são sexuados, além das ruas novas, o comércio, os negócios, os clubes, os bares e as indústrias, onde circulam as distintas classes sociais. Em relação a outros trabalhos que têm focalizado as cidades no início do século XX, e que têm pintado com cores diferentes os lugares definidos por classe, Mônica acrescenta a nuance do gênero.
Ao percorrer os espaços transformados e/ou criados para uma elite oriunda do enriquecimento do café, a autora percorre inúmeros caminhos, tornando-se, às vezes, um pouco panorâmica; assim, em seus "vôos", podemos acompanhá-la nos arranjos matrimoniais desta elite, nas artes, nos esportes, nas festas, nos clubes, na escola, na luta pelo voto das mulheres.
Sua narrativa está ligada ao processo de instalação da elite cafeeira na cidade de São Paulo. Recém-saídas do campo, esta elite irá criar signos de distinção e identidade de classe, visando marcar as distâncias do restante da sociedade. Nas fazendas, as mulheres podiam ser administradoras, decidiam sobre a produção, escravos, trabalhadores livres, etc. Na cidade, restritas ao lar, no interior da invenção de limites entre o público e o privado, estas mulheres se vêem ameaçadas pela redução drástica de sua importância e poder.
É neste deslocamento da elite para o espaço urbano que a autora discute a "ideologia do amor". Diferente de outros/as autores/as que têm apontado esta ideologia como peça importante no processo de submissão das mulheres, pois as estimulam à renúncia e ao devotamento para manter a relação amorosa, a autora percebe esta mesma ideologia como um trunfo utilizado pelas mulheres nos jogos das relações de gênero. Embora reconheça a carga normativa deste tipo de ideologia, a autora vê aí uma consciência, por parte das mulheres, da precariedade das relações conjugais. De acordo com Mônica, na nova divisão de papéis sexuais no espaço urbano, as mulheres divulgam os ideais de um casamento por amor.
Assim, ao lado de imagens de mulher elegante, esposa e mãe no lar urbano, as mulheres projetam e divulgam, também, um homem, marido e pai ideal — o modelo sensível e amoroso. É com este tipo de homem idealizado que reivindicavam o casamento por amor — avanço moderno sobre um passado representado como o lugar do casamento por interesse. Através da literatura da época, escrita por e para mulheres, a autora assinala que as heroínas dos romances queriam sacrificar tudo pelo amor.
Ao reivindicar um novo tipo de homem, as mulheres estariam, de acordo com a autora, reivindicando mais espaço, relações mais igualitárias, afetividade e fidelidade. A afeição privada deixa de ser exclusividade das mulheres.
Nos romances daquela época, focalizados pela autora, os casamentos infelizes ocorriam somente no campo, não na cidade. Os infelizes eram resultado de escolhas familiares, em geral endogâmicos e garantidores de distinções de classe. Já os casamentos urbanos eram pensados como resultado de escolhas individuais, feitos por amor, com homens sensíveis e capazes de construir uma família moderna. Desta forma, o lar deixava de ser pensado como uma prisão, para tornar-se um lugar de identidade, realização pessoal e felicidade.
Mas é de se perguntar: até que ponto esta aceitação da "ideologia do amor" não é, para as mulheres, um "adoçante" para a prisão do lar? De acordo com a autora, esta ideologia, se por um lado aprisiona e normatiza, por outro lado é utilizada para reclamar e exigir uma vida conjugal melhor. Além disso, esta mesma reivindicação permite perceber as desigualdades e a péssima qualidade das relações conjugais contra as quais as mulheres estavam lutando. Neste sentido, a autora observa, nas fontes literárias, o reconhecimento da diferença entre o marido sonhado e o marido real. São recorrentes as histórias em que o doce noivo transforma-se no esposo frio, distante, adúltero e injusto. Sendo assim, porque as mulheres continuariam a enaltecer o casamento e o lar? A autora argumenta que, sendo o casamento a única carreira feminina pensada para as mulheres da elite, seria sensato que elas enaltecessem sua função no espaço privado.
Neste sentido, a autora mostra o retrato que era pintado para a solteirona. Ninguém imaginava que uma mulher pudesse ser feliz fora do casamento. É desta maneira que se lançam mão de mitos, imagens, estereótipos antigos, para apresentar receitas de como conquistar um marido, e reafirma-se a idéia de que "pior do que ter um mau marido é não ter marido". Neste contexto, as mulheres recorrem ao discurso de que é preciso viver uma "maternidade consciente", ou seja, as mães são instadas a dedicar-se aos filhos, não os deixando mais com os criados. Os filhos seriam a redenção das mães, ou seja, uma compensação para suas frustrações. Obviamente, este tipo de imagem não é exclusivo da urbanização paulista e nem do período analisado pela autora. São imagens recorrentes, reutilizadas em vista das tensões da urbanização e do rearranjo das relações de gênero.
A segunda parte do trabalho é dedicada a analisar a maneira como as mulheres vão investir no espaço público, e aí a autora apresenta um leque de possibilidades. Pois, apesar das restrições impostas, as mulheres da elite vão encontrar meios de embaralhar os limites que se querem impor entre o público e o privado, alargando os espaços autorizados e inventando outros. O trabalho na assistência aos pobres será uma das maneiras de participar do espaço público de forma autorizada. Assim será também o trabalho na educação formal, ao se tornarem professoras. Mônica rastreia, então, inúmeras atividades em que é possível encontrar a participação das mulheres urbanas: elas foram professoras de piano, pintoras, escritoras, poetas, advogadas, médicas. Por vezes, atuaram em espaços impedidos para as mulheres de elite por trazer-lhes uma péssima reputação: é o caso das atrizes de teatro e de cinema. De cada uma destas atuações a autora apresenta exemplos significativos.
Mônica mostra, também, que as mulheres desta elite urbana promoveram a luta pelo voto das mulheres; apresenta, neste caso, as contradições de seu discurso, suas vitórias e fracassos. Tratou-se, portanto, de uma luta destas mulheres da elite, pela ocupação do espaço público político.
Na nova divisão dos espaços da cidade entre homens e mulheres de elite, embora tenha sido destinado a estas o papel de consumidoras, não foi com facilidade que elas mesmas ganharam o espaço da rua. A autora mostra que, até meados do século, as ruas só eram ocupadas pela camada popular. Os grandes senhores não circulavam nas ruas. Somente após a metade do século XIX é que começaram os passeios e os piqueniques. Ora, a rua era estranha para as senhoras de elite, mas não para as mulheres das camadas populares, como bem demonstrou Maria Odila Leite da Silva Dias.1 As mulheres de elite não saiam sozinhas, e mesmo acompanhadas saiam bem pouco. Fora do lar, não havia lazer para elas, não havia muitos lugares para sociabilidade feminina. Com a urbanização dos anos vinte, estes lugares foram sendo criados. Mesmo assim, em relação aos que havia para os homens, eram muito poucos. Ou seja: eram bem poucos os lugares disponíveis para a sociabilidade feminina de elite.
De qualquer maneira, as ruas são mais dos homens do que das mulheres e são mais da camada popular do que da elite. Mônica narra a maneira como o carnaval, que inicialmente era uma festa que a elite fazia nas ruas da cidade — a multidão ficava na calçada — , a partir dos anos 20 tornou-se uma festa popular, causando o afastamendo da elite para os clubes fechados.
Na terceira parte do livro, Mônica discute a construção dos corpos definidores de classe e gênero. Este tipo de discussão é bem recente na historiografia. Mais discutido na antropologia, o corpo só recentemente tem sido objeto da História. Trabalhos de historiadores como Thomas Laqueur, Georges Vigarello e Louise Bruit Zaidman têm inspirado este tipo de pesquisa. Acompanhando a historiografia, a autora reafirma que os discursos sobre a beleza e juventude dos anos vinte estão sintonizados com as aspirações de modernidade, e, no caso do Brasil, com o ideal de um país dito jovem. Neste contexto, são desqualificados os corpos feios, velhos, gordos, negros. O nacionalismo da época desejava um país cuja população deveria ser bela, jovem, esbelta e branca.
Mas, se esta historiografia que tem focalizado o corpo busca ressaltar as semelhanças entre os sexos e observa apenas as definições de classe, a autora a ultrapassa, pois esmiúça as diferenças para mostrar como as exigências de beleza são também sexuadas.
Como têm mostrado autores que discutem a construção do sexo2, a autora focaliza a maneira como a preparação física reforça esta construção da diferença: para os homens, a prática desportiva; para as mulheres, a ginástica e a dança. Há, entretanto, atividades que embaralham os limites. A equitação, a natação e o tênis, embora classificados como esportes, foram atividades às quais as mulheres da elite de São Paulo puderam dedicar-se, sem que isso contasse como transgressão.
A busca da beleza representou uma mudança sensível em relação ao passado: já não é mais a beleza do espírito que conta como o mais importante. O poder de uma mulher depende de sua beleza; o sucesso no mercado matrimonial também; assim, a cultura da beleza torna-se identidade social feminina. A autora lembra que o corpo belo é magro, branco, lábios finos, jovem, cabelos claros e ondulados. E mais: a beleza corporal é exigida, muito mais das mulheres do que dos homens. Os homens mais velhos, por exemplo — lembra a autora — , não abandonam suas posições de poder para os mais jovens, logo após o envelhecimento.
Em relação ao corpo, a autora discute as exigências de um corpo sem gorduras excedentes. Aqui, todavia, faz uma ressalva: embora os modelos de beleza divulgados nos periódicos da época sejam de um corpo feminino magro, ela encontra fissuras neste modelo nos textos de Renato Kehl que, na época, ressaltam corpos com mais gordura e rostos corados.
Na São Paulo dos anos 20, focalizada por Mônica, há mais mulheres em cena, mas as massas são masculinas. A presença de homens e mulheres na multidão não é igualitária, mesmo que os fotógrafos se esforcem em focalizar as mulheres na multidão.
Diferente de grande quantidade de textos do campo da História, que anunciam que discutirão sob o prisma do gênero e apenas focalizam as mulheres, o trabalho de Mônica faz o que promete fazer, focaliza a construção dos gêneros na cidade.
Este livro mostra-nos que as relações entre homens e mulheres constituem elemento fundamental para compreender a história da cidade. Mostra que as definições de limites entre o público e o privado, e as exigências de beleza, não podem ser pensados sem levar em consideração os elementos que constróem e reafirmam, de forma recorrente — e em cada época — , o gênero.
* Resenha do livro de SCHPUN, Mônica Raisa. Les années folles à São Paulo : Hommes et femmes au temps de l'explosion urbaine (1920-1929). Paris, Éditions l'Harmattan, 1997. [NE: Este livro sairá, em 2002, na coleção Themis, Universidade de Turim/Il Segnalibro; uma versão condensada foi publicada no Brasil — A beleza em jogo. São Paulo, Senac/Boitempo, 1999.] Recebida para publicação em outubro de 2001.
1 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo o século XIX. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1984.
2 LAQUEUR, Thomas. La construción Del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud. Madrid, Ed. Cátedra, 1994.
Cadernos Pagú - UNICAMP
Joana Maria Pedro
Professora Titular em História Social, Departamento de História/Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina
Um instigante mosaico da vida da elite na cidade de São Paulo nos anos vinte é o que nos apresenta Mônica Raísa Schpun neste livro, publicado na França com o apoio do Institut des Hautes Études de L'Amérique Latine. O livro é resultado de sua tese de doutorado em História, orientada por Michelle Perrot e defendida na Université de Paris VII. É dividido em três partes unidas pelo percurso sobre a cidade de São Paulo, suas transformações nos anos vinte e as mudanças nas relações de gênero. Em 266 páginas de uma escrita ágil e atraente, a autora nos conduz a uma cidade específica, a dos espaços percorridos, transformados, criados e delimitados para uma elite oriunda da riqueza trazida pelo café, e que reafirma sua posição recorrendo a uma origem que remonta aos tempos dos bandeirantes.
Este trabalho articula-se a quatro questões principais: as transformações urbanas, a constituição de limites entre o público e o privado, as exigências de um corpo belo e jovem, tudo isso focalizado pelo prisma das relações de gênero.
Como reflexão sobre a cidade, o livro de Mônica Schpun localiza-se ao lado de pesquisas que, desde os anos 80, vêm tematizando as transformações urbanas, desvendando uma cartografia definida por projetos que buscam constituir espaços diferenciados para as classes sociais. Tratam-se de investimentos que visam constituir distinções e que pretendem afastar as camadas populares dos espaços de circulação dos mais abastados. Este tipo de discussão, iniciado no Brasil em meados dos anos oitenta, deu destaque aos espaços criados na cidade para diversos personagens: os trabalhadores formais e informais, os migrantes, as prostitutas, enfim, os ditos "excluídos". No livro de Mônica, entretanto, não são estes os espaços que ganham destaque, mas aqueles construídos para a circulação da elite.
A autora, então, além de citar, comentar e criticar os trabalhos que têm focalizado a história da urbanização no Brasil, acrescenta, a partir deste patamar, o cruzamento entre o processo de urbanização e as relações de gênero.
Assim, na São Paulo estudada por Mônica, são sexuados, além das ruas novas, o comércio, os negócios, os clubes, os bares e as indústrias, onde circulam as distintas classes sociais. Em relação a outros trabalhos que têm focalizado as cidades no início do século XX, e que têm pintado com cores diferentes os lugares definidos por classe, Mônica acrescenta a nuance do gênero.
Ao percorrer os espaços transformados e/ou criados para uma elite oriunda do enriquecimento do café, a autora percorre inúmeros caminhos, tornando-se, às vezes, um pouco panorâmica; assim, em seus "vôos", podemos acompanhá-la nos arranjos matrimoniais desta elite, nas artes, nos esportes, nas festas, nos clubes, na escola, na luta pelo voto das mulheres.
Sua narrativa está ligada ao processo de instalação da elite cafeeira na cidade de São Paulo. Recém-saídas do campo, esta elite irá criar signos de distinção e identidade de classe, visando marcar as distâncias do restante da sociedade. Nas fazendas, as mulheres podiam ser administradoras, decidiam sobre a produção, escravos, trabalhadores livres, etc. Na cidade, restritas ao lar, no interior da invenção de limites entre o público e o privado, estas mulheres se vêem ameaçadas pela redução drástica de sua importância e poder.
É neste deslocamento da elite para o espaço urbano que a autora discute a "ideologia do amor". Diferente de outros/as autores/as que têm apontado esta ideologia como peça importante no processo de submissão das mulheres, pois as estimulam à renúncia e ao devotamento para manter a relação amorosa, a autora percebe esta mesma ideologia como um trunfo utilizado pelas mulheres nos jogos das relações de gênero. Embora reconheça a carga normativa deste tipo de ideologia, a autora vê aí uma consciência, por parte das mulheres, da precariedade das relações conjugais. De acordo com Mônica, na nova divisão de papéis sexuais no espaço urbano, as mulheres divulgam os ideais de um casamento por amor.
Assim, ao lado de imagens de mulher elegante, esposa e mãe no lar urbano, as mulheres projetam e divulgam, também, um homem, marido e pai ideal — o modelo sensível e amoroso. É com este tipo de homem idealizado que reivindicavam o casamento por amor — avanço moderno sobre um passado representado como o lugar do casamento por interesse. Através da literatura da época, escrita por e para mulheres, a autora assinala que as heroínas dos romances queriam sacrificar tudo pelo amor.
Ao reivindicar um novo tipo de homem, as mulheres estariam, de acordo com a autora, reivindicando mais espaço, relações mais igualitárias, afetividade e fidelidade. A afeição privada deixa de ser exclusividade das mulheres.
Nos romances daquela época, focalizados pela autora, os casamentos infelizes ocorriam somente no campo, não na cidade. Os infelizes eram resultado de escolhas familiares, em geral endogâmicos e garantidores de distinções de classe. Já os casamentos urbanos eram pensados como resultado de escolhas individuais, feitos por amor, com homens sensíveis e capazes de construir uma família moderna. Desta forma, o lar deixava de ser pensado como uma prisão, para tornar-se um lugar de identidade, realização pessoal e felicidade.
Mas é de se perguntar: até que ponto esta aceitação da "ideologia do amor" não é, para as mulheres, um "adoçante" para a prisão do lar? De acordo com a autora, esta ideologia, se por um lado aprisiona e normatiza, por outro lado é utilizada para reclamar e exigir uma vida conjugal melhor. Além disso, esta mesma reivindicação permite perceber as desigualdades e a péssima qualidade das relações conjugais contra as quais as mulheres estavam lutando. Neste sentido, a autora observa, nas fontes literárias, o reconhecimento da diferença entre o marido sonhado e o marido real. São recorrentes as histórias em que o doce noivo transforma-se no esposo frio, distante, adúltero e injusto. Sendo assim, porque as mulheres continuariam a enaltecer o casamento e o lar? A autora argumenta que, sendo o casamento a única carreira feminina pensada para as mulheres da elite, seria sensato que elas enaltecessem sua função no espaço privado.
Neste sentido, a autora mostra o retrato que era pintado para a solteirona. Ninguém imaginava que uma mulher pudesse ser feliz fora do casamento. É desta maneira que se lançam mão de mitos, imagens, estereótipos antigos, para apresentar receitas de como conquistar um marido, e reafirma-se a idéia de que "pior do que ter um mau marido é não ter marido". Neste contexto, as mulheres recorrem ao discurso de que é preciso viver uma "maternidade consciente", ou seja, as mães são instadas a dedicar-se aos filhos, não os deixando mais com os criados. Os filhos seriam a redenção das mães, ou seja, uma compensação para suas frustrações. Obviamente, este tipo de imagem não é exclusivo da urbanização paulista e nem do período analisado pela autora. São imagens recorrentes, reutilizadas em vista das tensões da urbanização e do rearranjo das relações de gênero.
A segunda parte do trabalho é dedicada a analisar a maneira como as mulheres vão investir no espaço público, e aí a autora apresenta um leque de possibilidades. Pois, apesar das restrições impostas, as mulheres da elite vão encontrar meios de embaralhar os limites que se querem impor entre o público e o privado, alargando os espaços autorizados e inventando outros. O trabalho na assistência aos pobres será uma das maneiras de participar do espaço público de forma autorizada. Assim será também o trabalho na educação formal, ao se tornarem professoras. Mônica rastreia, então, inúmeras atividades em que é possível encontrar a participação das mulheres urbanas: elas foram professoras de piano, pintoras, escritoras, poetas, advogadas, médicas. Por vezes, atuaram em espaços impedidos para as mulheres de elite por trazer-lhes uma péssima reputação: é o caso das atrizes de teatro e de cinema. De cada uma destas atuações a autora apresenta exemplos significativos.
Mônica mostra, também, que as mulheres desta elite urbana promoveram a luta pelo voto das mulheres; apresenta, neste caso, as contradições de seu discurso, suas vitórias e fracassos. Tratou-se, portanto, de uma luta destas mulheres da elite, pela ocupação do espaço público político.
Na nova divisão dos espaços da cidade entre homens e mulheres de elite, embora tenha sido destinado a estas o papel de consumidoras, não foi com facilidade que elas mesmas ganharam o espaço da rua. A autora mostra que, até meados do século, as ruas só eram ocupadas pela camada popular. Os grandes senhores não circulavam nas ruas. Somente após a metade do século XIX é que começaram os passeios e os piqueniques. Ora, a rua era estranha para as senhoras de elite, mas não para as mulheres das camadas populares, como bem demonstrou Maria Odila Leite da Silva Dias.1 As mulheres de elite não saiam sozinhas, e mesmo acompanhadas saiam bem pouco. Fora do lar, não havia lazer para elas, não havia muitos lugares para sociabilidade feminina. Com a urbanização dos anos vinte, estes lugares foram sendo criados. Mesmo assim, em relação aos que havia para os homens, eram muito poucos. Ou seja: eram bem poucos os lugares disponíveis para a sociabilidade feminina de elite.
De qualquer maneira, as ruas são mais dos homens do que das mulheres e são mais da camada popular do que da elite. Mônica narra a maneira como o carnaval, que inicialmente era uma festa que a elite fazia nas ruas da cidade — a multidão ficava na calçada — , a partir dos anos 20 tornou-se uma festa popular, causando o afastamendo da elite para os clubes fechados.
Na terceira parte do livro, Mônica discute a construção dos corpos definidores de classe e gênero. Este tipo de discussão é bem recente na historiografia. Mais discutido na antropologia, o corpo só recentemente tem sido objeto da História. Trabalhos de historiadores como Thomas Laqueur, Georges Vigarello e Louise Bruit Zaidman têm inspirado este tipo de pesquisa. Acompanhando a historiografia, a autora reafirma que os discursos sobre a beleza e juventude dos anos vinte estão sintonizados com as aspirações de modernidade, e, no caso do Brasil, com o ideal de um país dito jovem. Neste contexto, são desqualificados os corpos feios, velhos, gordos, negros. O nacionalismo da época desejava um país cuja população deveria ser bela, jovem, esbelta e branca.
Mas, se esta historiografia que tem focalizado o corpo busca ressaltar as semelhanças entre os sexos e observa apenas as definições de classe, a autora a ultrapassa, pois esmiúça as diferenças para mostrar como as exigências de beleza são também sexuadas.
Como têm mostrado autores que discutem a construção do sexo2, a autora focaliza a maneira como a preparação física reforça esta construção da diferença: para os homens, a prática desportiva; para as mulheres, a ginástica e a dança. Há, entretanto, atividades que embaralham os limites. A equitação, a natação e o tênis, embora classificados como esportes, foram atividades às quais as mulheres da elite de São Paulo puderam dedicar-se, sem que isso contasse como transgressão.
A busca da beleza representou uma mudança sensível em relação ao passado: já não é mais a beleza do espírito que conta como o mais importante. O poder de uma mulher depende de sua beleza; o sucesso no mercado matrimonial também; assim, a cultura da beleza torna-se identidade social feminina. A autora lembra que o corpo belo é magro, branco, lábios finos, jovem, cabelos claros e ondulados. E mais: a beleza corporal é exigida, muito mais das mulheres do que dos homens. Os homens mais velhos, por exemplo — lembra a autora — , não abandonam suas posições de poder para os mais jovens, logo após o envelhecimento.
Em relação ao corpo, a autora discute as exigências de um corpo sem gorduras excedentes. Aqui, todavia, faz uma ressalva: embora os modelos de beleza divulgados nos periódicos da época sejam de um corpo feminino magro, ela encontra fissuras neste modelo nos textos de Renato Kehl que, na época, ressaltam corpos com mais gordura e rostos corados.
Na São Paulo dos anos 20, focalizada por Mônica, há mais mulheres em cena, mas as massas são masculinas. A presença de homens e mulheres na multidão não é igualitária, mesmo que os fotógrafos se esforcem em focalizar as mulheres na multidão.
Diferente de grande quantidade de textos do campo da História, que anunciam que discutirão sob o prisma do gênero e apenas focalizam as mulheres, o trabalho de Mônica faz o que promete fazer, focaliza a construção dos gêneros na cidade.
Este livro mostra-nos que as relações entre homens e mulheres constituem elemento fundamental para compreender a história da cidade. Mostra que as definições de limites entre o público e o privado, e as exigências de beleza, não podem ser pensados sem levar em consideração os elementos que constróem e reafirmam, de forma recorrente — e em cada época — , o gênero.
* Resenha do livro de SCHPUN, Mônica Raisa. Les années folles à São Paulo : Hommes et femmes au temps de l'explosion urbaine (1920-1929). Paris, Éditions l'Harmattan, 1997. [NE: Este livro sairá, em 2002, na coleção Themis, Universidade de Turim/Il Segnalibro; uma versão condensada foi publicada no Brasil — A beleza em jogo. São Paulo, Senac/Boitempo, 1999.] Recebida para publicação em outubro de 2001.
1 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo o século XIX. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1984.
2 LAQUEUR, Thomas. La construción Del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud. Madrid, Ed. Cátedra, 1994.
Cadernos Pagú - UNICAMP
Nenhum comentário:
Postar um comentário