Ameaças do presente*
Richard Miskolci
Pesquisador-Bolsista Recém-Doutor do CNPq associado ao Dep. de Sociologia da UNESP/Araraquara
Imagens de restos humanos amontoados em valas gigantescas ou de seres esqueléticos em uniformes circulando por campos de concentração ainda povoam nosso imaginário. No entanto, a angústia que estas imagens provocam em poucos suscita a reflexão sobre o que as gerou. Assim, idéias de seleção dos mais aptos na luta pela existência e a conseqüente esterilização de homens e mulheres considerados degenerados parecem temas de algum filme sobre erros humanos do passado.
Nancy Ordover nos recorda que considerar a eugenia como parte do passado é uma atitude irresponsável e perigosa. Em seu livro lançado recentemente nos Estados Unidos – American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism – a pesquisadora independente mostra que a eugenia não existiu apenas na Alemanha nazista, nem encontrou seu túmulo nos anais da pseudociência.
A eugenia continua viva com outros nomes e sob o pretexto de seguir objetivos distintos dos que nos legaram a vergonha das esterilizações em massa e das formas "científicas" de limpeza étnica. O Projeto Genoma, as pesquisas que buscam a determinação genética de comportamentos sexuais, além das experiências e práticas médicas que apelam para a necessidade de controle da natalidade são herdeiros diretos desta corrente científica.
O apelo das teorias eugênicas está em sua proteção do status quo e na insistência em remédios científicos e/ou tecnológicos para lidar com problemas que requerem mudanças sociais e institucionais profundas. Assim, a mudança social é rechaçada em nome da eliminação dos grupos que ameaçam a ordem estabelecida.1
A entrada na esfera pública de movimentos de defesa de minorias étnicas e sexuais a partir da década de 1960 não se deu sem também intensificar preconceitos entre os estabelecidos na ordem social. Não por acaso, mulheres negras, latinas e adolescentes em geral têm se tornado o alvo de medidas judiciais e médicas para o controle de natalidade. Além disso, o número crescente de pesquisas que buscam a causa da "homossexualidade" atingiu o auge na virada do milênio. Três décadas depois de Stonewall, gays e lésbicas correm o risco de serem classificados como geneticamente distintos do resto da humanidade. Para que? Ordover apresenta reflexões sobre os interesses nem tão ocultos por trás destas teorias e práticas eugênicas sob nova embalagem.
O primeiro capítulo de American Eugenics lida com as relações entre a eugenia e o nacionalismo, em especial o norte-americano. Desde sua criação pela corrente científica social-darwinista britânica de fins do século XIX, a eugenia se instituiu como ciência do nacionalismo por prover os meios para a manutenção da idéia de nacionalidade em termos raciais.2 O nacionalismo sempre se baseou em duas formas de racismo distintas, mas complementares: o racismo interno que justifica a estrutura de poder e os privilégios de elites, que remontam ao período de colonização européia, e o racismo externo que permitiu o controle da imigração e projetou no exterior perigos que distraem a atenção dos problemas estruturais existentes nas fronteiras de cada Estado nacional.
No caso norte-americano, a nação foi construída imaginariamente como distinta e superior a um perigo representado, sobretudo, por imigrantes de origem não-nórdica. Tais imigrantes foram controlados e crescentemente evitados através de testes de QI e avaliações médicas que viam em fatos como o analfabetismo e a pobreza sinais de condições de inferioridade geneticamente herdadas ou, para usar o termo da época: disgenia. Sob o pretexto de critérios (e testes) científicos mais de 80% dos imigrantes judeus, poloneses, italianos, húngaros e russos foram considerados "fracos mentalmente" em 1912 e retidos antes de sua entrada nos EUA. O caso teve conseqüências na mudança das leis de imigração, as quais desembocaram no ato das origens nacionais que determinou quotas para a entrada no país. Isto alçou os eugenistas ao desejado posto de guardiões do futuro político e biológico da nação americana.3
O capítulo que explora a anatomia queer (termo utilizado para se referir a gays, lésbicas e também a todos os que não se enquadram na norma social) tem o subtítulo de "Cem anos de diagnóstico, dissecação e estratégia política". Nele, Ordover retraça as relações entre teorias que buscam a "causa" da homossexualidade e movimentos de defesa dos direitos de gays, lésbicas e transgêneros sem deixar de alertar para os perigos inerentes nesta relação, sobretudo o de aceitação do que deveria ser questionado desde o início: por que buscar a "causa" de um comportamento?
A relação perigosa entre cientistas e ativistas pelos direitos GLTB data desde os primórdios da sexologia, mas teve uma de suas figuras mais importantes no alemão Magnus Hirschfeld, o qual defendia o que compreendia como o "terceiro sexo" baseado em duvidosas teorias científicas que, mais tarde, foram utilizadas contra seus objetivos políticos libertários.4 Ordover explora com cuidado como meios "científicos" de defesa de direitos políticos fornecem armas para os conservadores e incentivo às pesquisas que buscam formas de isolar, selecionar e, muito provavelmente, eliminar o suposto gene "causador" da homossexualidade. O histórico destes estudos já seria útil para pesquisadores da área de estudos de gênero e sexualidade, mas Ordover vai além e nos brinda com a discussão das pesquisas mais recentes e dos pressupostos funestos nos quais elas se fundamentam.
A polêmica sobre um "gene gay" voltou à tona em 1991 no altamente criticado estudo de Simon LeVay, que afirmou que um grupo de células no hipotálomo cerebral é duas vezes maior em homens heterossexuais do que em gays. A analogia de tamanho para comparar um comportamento sexual considerado normal com um anormal mal esconde o pressuposto de que o "anormal" é menor, portanto inferior.5
A atração dos meios de comunicação por explicações biológicas para comportamentos humanos merece atenção especial da pesquisadora. As pesquisas científicas abordadas e a reação entusiasmada da mídia revelam uma busca de eliminar os marginalizados ao invés de lutar contra sua marginalização. Conclusão curiosa, mas reveladora da razão pela qual a eugenia continua viva.
Ordover se opõe a teorias que buscam "causas" da homossexualidade e contesta até mesmo a luta entre especialistas em biologia humana e sociólogos pelo tema. Segundo ela, quer através da explicação biológica quer por teorias sociológicas construcionistas recaímos na mesma armadilha, qual seja, a de explicar a homossexualidade. Tal interesse explicativo só serve a uma coisa: a construção da heterossexualidade como normal e da homossexualidade como desvio.
No capítulo final, a autora analisa a história das esterilizações, do controle de natalidade e suas formas presentes. Desde a primeira lei de esterilização norte-americana aprovada por Indiana em 1907 até o fim da Segunda Guerra Mundial ao menos 70 mil pessoas foram esterilizadas nos Estados Unidos. Sob o pretexto do controle de natalidade de mulheres consideradas fracas mentalmente (feeble minded) e incapazes (unfit) para prover sua própria subsistência este procedimento radical sempre se dirigiu a mulheres pobres, sobretudo negras e hispânicas.
Na segunda parte do século XX as esterilizações continuaram, apenas com a alteração nos termos que justificaram esses procedimentos. Assim, no sul dos EUA quase a totalidade das mulheres que dependiam do seguro desemprego e outras formas de ajuda governamental (welfare) foi esterilizada, entre elas, algumas jovens antes mesmo de alcançarem a puberdade.6 Ainda na década de 1990, surgiram propostas legais em treze estados norte-americanos para o oferecimento de uma soma em dinheiro para mulheres pobres que usassem meios contraceptivos como o Norplant.
Neste ponto, Ordover reconstitui uma parte difícil da história do feminismo norte-americano e não desvia de questões espinhosas ao lidar com figuras importantes como a de Margaret Sanger, médica que lutou pelo controle da natalidade. A pesquisadora rejeita interpretações contemporâneas que redimem Sanger de suas afirmações racistas e afirma que não podemos reduzir as posições políticas de alguém a seu contexto histórico. Aceitar a admiração de Sanger pela eugenia como típicos naqueles dias equivale a imaginar que alguém como ela não tinha sofisticação intelectual nem capacidade de resistir a concepções hegemônicas sobre o papel da mulher na sociedade ou a suposta superioridade anglo-saxônica. Desta forma, Ordover apresenta uma reflexão premente para quem lida com a história do feminismo em qualquer país. Os laços entre feministas do início do século XX com idéias e até associações eugênicas não podem ser ignorados nem aceitos como inevitáveis. Isto também nos impõe a reflexão sobre as novas práticas médicas implementadas como política de saúde pública, as quais ainda apelam para valores e pressupostos questionáveis ética e politicamente.
Ordover conclui seu estudo com uma crítica articulada às três promessas da eugenia: o monitoramento da identidade nacional, o fornecimento de metáforas contra grupos marginalizados e a criação de antídotos tecnológicos para lidar com problemas sociais. Assim, American Eugenics alcança o objetivo de expor porque a ciência não é nenhuma porta para os direitos civis e nos recorda que o silêncio sobre a eugenia no presente é tão perigoso quanto o seu esquecimento.
* Resenha do livro de ORDOVER, Nancy. American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism. Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2003.
1 Mike Hawkins explora a história deste apelo a soluções científicas para problemas sociais através de uma discussão sobre o social-darwinismo. Além de desvendar as relações entre o social-darwinismo e a eugenia, Hawkins também discute as relações destas duas parentes com a sociologia nascente do século XIX e com a corrente contemporânea da sociobiologia. Hawkins, Mike. Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945 – Nature as Model and Nature as Threat. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.
2 O termo eugenia, do grego eu (bem) genes (nascido), foi cunhado pelo cientista britânico Francis Galton em 1883. Galton era primo de Charles Darwin e, junto com outros social-darwinistas, colaborou para a criação da eugenia como a "ciência" que buscaria o controle da hereditariedade humana para a preservação de grupos considerados superiores.
3 Ordover, N. American Eugenics... Op. cit., p. 22.
4 Joseph Bristow fornece um excelente panorama histórico das teorias sobre a homossexualidade na sexologia e na psicanálise. Bristow, Joseph. Sexuality. New York, Routledge, 1997. O próprio termo "homossexual" foi cunhado por um húngaro com objetivos libertários em 1869, mas no ano seguinte a palavra passaria a ser utilizada para deno minar uma "patologia sexual" no célebre texto sobre as sensações sexuais contrárias de Westphal citado por Michel Foucault em A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 1985. (Tradução: Maria Thereza da C. Albuquerque.)
5 As analogias entre gênero e raça e o poder da metáfora são explorados por Ordover a partir de outros dois pesquisadores que merecem ser lembrados: Nancy Leys Stepan e Sander L. Gilman. Stepan é a autora do fundamental The Hour of Eugenics: Race, Gender, and Nation in Latin América (Ithaca, Cornell Univ. Press, 1996) e Gilman o historiador cultural que explora as relações entre teorias raciais e a psicanálise. Gilman observou que a medicalização e a classificação sociológica de judeus e homossexuais se deu ao mesmo tempo. Não por acaso os termos "homossexual" e "anti-semitismo" são contemporâneos, sendo que o último visava "criar um novo discurso científico para o ódio aos judeus" (Gilman apud Ordover, N. American Eugenics... Op. cit., p.99).
6 Ordover faz um histórico das denúncias de utilização de Porto Rico como base de testes para métodos anticoncepcionais e afirma que em 1976 37,4% das mulheres em idade reprodutiva de Porto Rico haviam sido esterilizadas. O racismo determinante do controle populacional e da esterilização são claros quando se constata que em 1964 65% das mulheres esterilizadas na Carolina do Norte eram negras.
Cadernos pagú
Richard Miskolci
Pesquisador-Bolsista Recém-Doutor do CNPq associado ao Dep. de Sociologia da UNESP/Araraquara
Imagens de restos humanos amontoados em valas gigantescas ou de seres esqueléticos em uniformes circulando por campos de concentração ainda povoam nosso imaginário. No entanto, a angústia que estas imagens provocam em poucos suscita a reflexão sobre o que as gerou. Assim, idéias de seleção dos mais aptos na luta pela existência e a conseqüente esterilização de homens e mulheres considerados degenerados parecem temas de algum filme sobre erros humanos do passado.
Nancy Ordover nos recorda que considerar a eugenia como parte do passado é uma atitude irresponsável e perigosa. Em seu livro lançado recentemente nos Estados Unidos – American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism – a pesquisadora independente mostra que a eugenia não existiu apenas na Alemanha nazista, nem encontrou seu túmulo nos anais da pseudociência.
A eugenia continua viva com outros nomes e sob o pretexto de seguir objetivos distintos dos que nos legaram a vergonha das esterilizações em massa e das formas "científicas" de limpeza étnica. O Projeto Genoma, as pesquisas que buscam a determinação genética de comportamentos sexuais, além das experiências e práticas médicas que apelam para a necessidade de controle da natalidade são herdeiros diretos desta corrente científica.
O apelo das teorias eugênicas está em sua proteção do status quo e na insistência em remédios científicos e/ou tecnológicos para lidar com problemas que requerem mudanças sociais e institucionais profundas. Assim, a mudança social é rechaçada em nome da eliminação dos grupos que ameaçam a ordem estabelecida.1
A entrada na esfera pública de movimentos de defesa de minorias étnicas e sexuais a partir da década de 1960 não se deu sem também intensificar preconceitos entre os estabelecidos na ordem social. Não por acaso, mulheres negras, latinas e adolescentes em geral têm se tornado o alvo de medidas judiciais e médicas para o controle de natalidade. Além disso, o número crescente de pesquisas que buscam a causa da "homossexualidade" atingiu o auge na virada do milênio. Três décadas depois de Stonewall, gays e lésbicas correm o risco de serem classificados como geneticamente distintos do resto da humanidade. Para que? Ordover apresenta reflexões sobre os interesses nem tão ocultos por trás destas teorias e práticas eugênicas sob nova embalagem.
O primeiro capítulo de American Eugenics lida com as relações entre a eugenia e o nacionalismo, em especial o norte-americano. Desde sua criação pela corrente científica social-darwinista britânica de fins do século XIX, a eugenia se instituiu como ciência do nacionalismo por prover os meios para a manutenção da idéia de nacionalidade em termos raciais.2 O nacionalismo sempre se baseou em duas formas de racismo distintas, mas complementares: o racismo interno que justifica a estrutura de poder e os privilégios de elites, que remontam ao período de colonização européia, e o racismo externo que permitiu o controle da imigração e projetou no exterior perigos que distraem a atenção dos problemas estruturais existentes nas fronteiras de cada Estado nacional.
No caso norte-americano, a nação foi construída imaginariamente como distinta e superior a um perigo representado, sobretudo, por imigrantes de origem não-nórdica. Tais imigrantes foram controlados e crescentemente evitados através de testes de QI e avaliações médicas que viam em fatos como o analfabetismo e a pobreza sinais de condições de inferioridade geneticamente herdadas ou, para usar o termo da época: disgenia. Sob o pretexto de critérios (e testes) científicos mais de 80% dos imigrantes judeus, poloneses, italianos, húngaros e russos foram considerados "fracos mentalmente" em 1912 e retidos antes de sua entrada nos EUA. O caso teve conseqüências na mudança das leis de imigração, as quais desembocaram no ato das origens nacionais que determinou quotas para a entrada no país. Isto alçou os eugenistas ao desejado posto de guardiões do futuro político e biológico da nação americana.3
O capítulo que explora a anatomia queer (termo utilizado para se referir a gays, lésbicas e também a todos os que não se enquadram na norma social) tem o subtítulo de "Cem anos de diagnóstico, dissecação e estratégia política". Nele, Ordover retraça as relações entre teorias que buscam a "causa" da homossexualidade e movimentos de defesa dos direitos de gays, lésbicas e transgêneros sem deixar de alertar para os perigos inerentes nesta relação, sobretudo o de aceitação do que deveria ser questionado desde o início: por que buscar a "causa" de um comportamento?
A relação perigosa entre cientistas e ativistas pelos direitos GLTB data desde os primórdios da sexologia, mas teve uma de suas figuras mais importantes no alemão Magnus Hirschfeld, o qual defendia o que compreendia como o "terceiro sexo" baseado em duvidosas teorias científicas que, mais tarde, foram utilizadas contra seus objetivos políticos libertários.4 Ordover explora com cuidado como meios "científicos" de defesa de direitos políticos fornecem armas para os conservadores e incentivo às pesquisas que buscam formas de isolar, selecionar e, muito provavelmente, eliminar o suposto gene "causador" da homossexualidade. O histórico destes estudos já seria útil para pesquisadores da área de estudos de gênero e sexualidade, mas Ordover vai além e nos brinda com a discussão das pesquisas mais recentes e dos pressupostos funestos nos quais elas se fundamentam.
A polêmica sobre um "gene gay" voltou à tona em 1991 no altamente criticado estudo de Simon LeVay, que afirmou que um grupo de células no hipotálomo cerebral é duas vezes maior em homens heterossexuais do que em gays. A analogia de tamanho para comparar um comportamento sexual considerado normal com um anormal mal esconde o pressuposto de que o "anormal" é menor, portanto inferior.5
A atração dos meios de comunicação por explicações biológicas para comportamentos humanos merece atenção especial da pesquisadora. As pesquisas científicas abordadas e a reação entusiasmada da mídia revelam uma busca de eliminar os marginalizados ao invés de lutar contra sua marginalização. Conclusão curiosa, mas reveladora da razão pela qual a eugenia continua viva.
Ordover se opõe a teorias que buscam "causas" da homossexualidade e contesta até mesmo a luta entre especialistas em biologia humana e sociólogos pelo tema. Segundo ela, quer através da explicação biológica quer por teorias sociológicas construcionistas recaímos na mesma armadilha, qual seja, a de explicar a homossexualidade. Tal interesse explicativo só serve a uma coisa: a construção da heterossexualidade como normal e da homossexualidade como desvio.
No capítulo final, a autora analisa a história das esterilizações, do controle de natalidade e suas formas presentes. Desde a primeira lei de esterilização norte-americana aprovada por Indiana em 1907 até o fim da Segunda Guerra Mundial ao menos 70 mil pessoas foram esterilizadas nos Estados Unidos. Sob o pretexto do controle de natalidade de mulheres consideradas fracas mentalmente (feeble minded) e incapazes (unfit) para prover sua própria subsistência este procedimento radical sempre se dirigiu a mulheres pobres, sobretudo negras e hispânicas.
Na segunda parte do século XX as esterilizações continuaram, apenas com a alteração nos termos que justificaram esses procedimentos. Assim, no sul dos EUA quase a totalidade das mulheres que dependiam do seguro desemprego e outras formas de ajuda governamental (welfare) foi esterilizada, entre elas, algumas jovens antes mesmo de alcançarem a puberdade.6 Ainda na década de 1990, surgiram propostas legais em treze estados norte-americanos para o oferecimento de uma soma em dinheiro para mulheres pobres que usassem meios contraceptivos como o Norplant.
Neste ponto, Ordover reconstitui uma parte difícil da história do feminismo norte-americano e não desvia de questões espinhosas ao lidar com figuras importantes como a de Margaret Sanger, médica que lutou pelo controle da natalidade. A pesquisadora rejeita interpretações contemporâneas que redimem Sanger de suas afirmações racistas e afirma que não podemos reduzir as posições políticas de alguém a seu contexto histórico. Aceitar a admiração de Sanger pela eugenia como típicos naqueles dias equivale a imaginar que alguém como ela não tinha sofisticação intelectual nem capacidade de resistir a concepções hegemônicas sobre o papel da mulher na sociedade ou a suposta superioridade anglo-saxônica. Desta forma, Ordover apresenta uma reflexão premente para quem lida com a história do feminismo em qualquer país. Os laços entre feministas do início do século XX com idéias e até associações eugênicas não podem ser ignorados nem aceitos como inevitáveis. Isto também nos impõe a reflexão sobre as novas práticas médicas implementadas como política de saúde pública, as quais ainda apelam para valores e pressupostos questionáveis ética e politicamente.
Ordover conclui seu estudo com uma crítica articulada às três promessas da eugenia: o monitoramento da identidade nacional, o fornecimento de metáforas contra grupos marginalizados e a criação de antídotos tecnológicos para lidar com problemas sociais. Assim, American Eugenics alcança o objetivo de expor porque a ciência não é nenhuma porta para os direitos civis e nos recorda que o silêncio sobre a eugenia no presente é tão perigoso quanto o seu esquecimento.
* Resenha do livro de ORDOVER, Nancy. American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism. Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2003.
1 Mike Hawkins explora a história deste apelo a soluções científicas para problemas sociais através de uma discussão sobre o social-darwinismo. Além de desvendar as relações entre o social-darwinismo e a eugenia, Hawkins também discute as relações destas duas parentes com a sociologia nascente do século XIX e com a corrente contemporânea da sociobiologia. Hawkins, Mike. Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945 – Nature as Model and Nature as Threat. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.
2 O termo eugenia, do grego eu (bem) genes (nascido), foi cunhado pelo cientista britânico Francis Galton em 1883. Galton era primo de Charles Darwin e, junto com outros social-darwinistas, colaborou para a criação da eugenia como a "ciência" que buscaria o controle da hereditariedade humana para a preservação de grupos considerados superiores.
3 Ordover, N. American Eugenics... Op. cit., p. 22.
4 Joseph Bristow fornece um excelente panorama histórico das teorias sobre a homossexualidade na sexologia e na psicanálise. Bristow, Joseph. Sexuality. New York, Routledge, 1997. O próprio termo "homossexual" foi cunhado por um húngaro com objetivos libertários em 1869, mas no ano seguinte a palavra passaria a ser utilizada para deno minar uma "patologia sexual" no célebre texto sobre as sensações sexuais contrárias de Westphal citado por Michel Foucault em A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 1985. (Tradução: Maria Thereza da C. Albuquerque.)
5 As analogias entre gênero e raça e o poder da metáfora são explorados por Ordover a partir de outros dois pesquisadores que merecem ser lembrados: Nancy Leys Stepan e Sander L. Gilman. Stepan é a autora do fundamental The Hour of Eugenics: Race, Gender, and Nation in Latin América (Ithaca, Cornell Univ. Press, 1996) e Gilman o historiador cultural que explora as relações entre teorias raciais e a psicanálise. Gilman observou que a medicalização e a classificação sociológica de judeus e homossexuais se deu ao mesmo tempo. Não por acaso os termos "homossexual" e "anti-semitismo" são contemporâneos, sendo que o último visava "criar um novo discurso científico para o ódio aos judeus" (Gilman apud Ordover, N. American Eugenics... Op. cit., p.99).
6 Ordover faz um histórico das denúncias de utilização de Porto Rico como base de testes para métodos anticoncepcionais e afirma que em 1976 37,4% das mulheres em idade reprodutiva de Porto Rico haviam sido esterilizadas. O racismo determinante do controle populacional e da esterilização são claros quando se constata que em 1964 65% das mulheres esterilizadas na Carolina do Norte eram negras.
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