terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Gênero e contracepção: uma perspectiva sociológica*


Gênero e contracepção: uma perspectiva sociológica*

Cristina Tavares da Costa Rocha

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC. cristinarocha@cfh.ufsc.br



É significativa e intensa a trajetória de Luzinete Simões Minella no campo dos estudos de gênero, particularmente nas atividades que desenvolveu no âmbito da Linha de Pesquisa "Saúde e Sociedade no Brasil" durante os anos 90 e, atualmente, na Linha de Pesquisa "Gerações, Gênero, Etnia e Educação", ambas do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. A autora tem atuado, também, na Área de Estudos de Gênero do Doutorado Interdisciplinar. Estes são programas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Desta maneira, é sólido seu conhecimento na área, fato que se constata, além de suas atividades docentes, por sua extensa contribuição científica.

Esse livro, recém-lançado pela Editora da UFSC, representa uma importante contribuição para os estudos da saúde reprodutiva em geral e, mais especificamente, para as questões da contracepção, com foco em gênero, o que implica em compreender a questão da reprodução humana "não apenas em seu aspecto biológico, mas no aspecto relacional das múltiplas definições socioculturais sobre o masculino e o feminino" (p.160). As análises e reflexões centram-se nas abordagens clínicas sobre esterilização feminina, nas conseqüências da laqueadura do ponto de vista das mulheres e no perfil dos vasectomizados, embora sejam mencionados, ainda, outros tipos de contracepção.

O livro é estruturado em seis capítulos a partir de um eixo teórico fundamentado tanto no conceito de gênero quanto na noção de saúde reprodutiva, sendo que dois deles constituem-se em densos capítulos teóricos, nos quais a autora dialoga com diversos/as e conceituados/as autores/as nas áreas de gênero, reprodução e contracepção humana – Joan Scott, Maria Luiza Heilborn e Teresita de Barbieri, Sonia Corrêa, Elza Berquó, Elisabete Dória Bilac, Maria Isabel Baltar da Rocha –, que interpretaram a síntese elaborada pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada no Cairo em 1994. Nos demais, a autora sugere que existe uma certa oscilação entre a autodeterminação e a passividade feminina na área da saúde reprodutiva, considerando que tal oscilação deve ser levada em conta pelas políticas públicas voltadas para o planejamento familiar no sul do Brasil. Num dos capítulos, a autora analisa os resultados de uma pesquisa empírica sobre esterilização feminina realizada em Florianópolis, Santa Catarina, em dois grupos de mulheres oriundas das camadas médias e de baixa renda. No último capítulo, a autora examina as razões do predomínio das mulheres no serviço de atendimento em planejamento familiar em Florianópolis e Porto Alegre.

Os resultados dessas pesquisas são relacionados com referenciais teóricos, explicitando-se os percursos metodológicos. No caso de um dos capítulos teóricos, a autora afirma que recorreu à "análise comparativa de textos científicos" (p.15) elaborados em diversos países. No caso das pesquisas empíricas, houve respaldo nos depoimentos "de pessoas comuns, mulheres e homens que na sua cotidianidade desenvolvem na prática seus códigos de sociabilidade" (p.15-16), os quais passaram e/ou se candidataram a processos de esterilização. Houve, ainda, aplicação de questionário às mulheres esterilizadas, no qual foram contempladas questões objetivas e subjetivas relativas às representações sobre as conseqüências pós-cirúrgicas. A exposição dos resultados, mais do que mostrar a quantificação estatística dos dados obtidos, volta-se às reflexões e considerações a partir de pontos de vista sociológicos imbricados com gênero. Dessa maneira, os capítulos proporcionam uma leitura fácil que reflete a limpidez dos textos em uma sólida articulação científica. Articulação esta que se inicia com a exposição e a interpretação, no primeiro capítulo, de cinco posições sobre abordagens clínicas referentes à esterilização feminina. Em decorrência destas abordagens, fica a constatação de que se trata de um "debate em aberto", dada principalmente a multidisciplinaridade e a complexidade dessa área de estudos, estudos estes que muitas vezes vão contribuir e influir no engendramento de políticas públicas na área da saúde da mulher e no – ainda – ausente homem, no âmbito dos governos municipal, estadual e federal.

No capítulo seguinte, a autora problematiza a massificação da esterilização feminina, que tem ocorrido nas últimas décadas, como solução para um possível planejamento familiar. Questiona se, afinal, trata-se de solução ou de surgimento de novos problemas decorrentes dessa opção por mulheres, tendo em vista as dificuldades de saúde biopsíquicas que se estabelecem a partir dela.

Aliás, o perfil dos/as integrantes – femininos e masculinos – da presente pesquisa é exposto nos capítulos do livro, de modo que se tenha um entendimento amplo da amostra que foi a opção da autora e que se configura, de fato, em uma representação do todo, pela similaridade de ocorrências encontradas nas narrativas expostas no livro e nas narrativas que, em geral, a gente escuta durante as conversas com amigos/as, colegas, parentes e conhecidos/as, pessoas, enfim, que fazem parte do nosso cotidiano.

Luzinete Simões Minella menciona e compara artigos nacionais e internacionais sobre a contracepção e saúde. Isto porque a socióloga dialoga com a produção científica sobre esterilização feminina nos anos 80 e no início dos 90 no Brasil, publicada em anais de congressos, simpósios, relatórios de órgãos públicos voltados à saúde e dissertações e teses, explicitando as mais diferenciadas tendências sobre o tema e informando seus três enfoques: o demográfico, o da saúde coletiva e o sócio-antropológico. Este farto material teórico integra o terceiro capítulo do livro.

Para a autora, os depoimentos e os casos expostos no livro, tanto das mulheres quanto dos homens que se submetem às técnicas de esterilização, são

uma luta epistemológica" em direção a (e aí ela se inspira em Boaventura de Souza Santos) "uma nova relação entre a ciência e o senso comum, uma relação em que qualquer deles é feito do outro e ambos fazem algo de novo (p.16).

Dentre as conclusões da autora está a constatação de que as mulheres do

contingente investigado [apresentaram] um movimento que oscila entre a liberação e a opressão em relação aos modelos e práticas vigentes a respeito do planejamento familiar, que é compatível com as contradições do seu meio socioeconômico, político e cultural [talvez] porque os processos de conscientização não são lineares, tendo seus altos e baixos (p.155).

Além disso, as mulheres, ao continuarem assumindo isoladamente as decisões sobre sua esterilização, sem articulação e sem diálogo com seus parceiros, talvez estejam dando continuidade ao status quo histórico vigente da ortodoxia do modelo médico e do modelo herdado de seus ascendentes familiares. Porém, alternando possibilidades a partir de um outro modo de olhar, com esta postura, elas podem estar "reforçando seu próprio poder na esfera do comportamento reprodutivo, com o aval das instituições de saúde" (p.172).

Apesar da abundância de dados quantitativos e qualitativos expostos na forma de síntese como resultados da pesquisa de campo, levadas a efeito no sul brasileiro, e mesmo entendendo a impossibilidade de se abarcar os vieses gerados pela complexidade do tema, ao finalizar a leitura do livro tem-se a sensação da vontade de querer saber mais e mais a respeito da reprodução (e contracepção) humana. Instigantemente, ficam diversas questões que querem ser audíveis na polifonia contemporânea sobre este assunto. Dentre tantas, por exemplo, tem-se ainda a ousadia de dizer que seria interessante, também, conhecer – mesmo sabendo-se que as mulheres explicitaram que queriam " 'poupar' seus companheiros, alegando que eles 'não precisavam ser entrevistados'" (p.49) para a presente pesquisa – como os parceiros "sentem" suas mulheres que se submeteram a cirurgias de esterilização. Ou, do outro lado da moeda, se as mulheres que tiveram seus parceiros vasectomizados sentiam-nos como menos viris, como apareceu enquanto "medo da impotência" na fala de um entrevistado (p.118).

Enfim, a desafiadora e provocativa complexidade do tema e respectivos questionamentos gerados, sendo que a maioria deles ainda permanece em aberto, além de uma variedade de posicionamentos encontrada na rede de atores/as envolvidos/as com as questões da saúde reprodutiva e contraceptiva no país, e por suas correlações com ciência e poder, visto que há "alta ressonância econômica e política, em relação à qual a produção científica não permanece imune" (p.10), faz-se mister a leitura deste livro.


* MINELLA, Luzinete Simões. Florianópolis-SC, Editora da UFSC, 2005.


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