terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Gender & Technology: A Reader*


Gender & Technology: A Reader*

Isabel Cardana

Centro de Estudos de Antropologia Social, ISCTE, Lisboa, Portugal


Esta coletânea tem origem nos trabalhos desenvolvidos por um grupo de interesse (Women in Technological History - WITH) que integra a Society for the History of Technology e se dedica ao estudo do papel das mulheres na história da tecnologia. Sete dos quinze ensaios que compõem o volume foram inicialmente publicados em Janeiro de 1997 num número especial da revista Technology and Culture, e outros que saíram em momentos distintos na mesma revista, mas também na revista Signs (IEEE Technology and Society Magazine)1 e no livro Gender and Archaeology.2

Os artigos aqui coligidos estão claramente posicionados no espaço e situados no tempo histórico (América do Norte entre 1850 e 1950) e fundamentam-se em três importantes premissas teóricas: 1) a ideologia de gênero e a tecnologia influenciam-se mutuamente; 2) a ideologia de gênero e a tecnologia não são elementos sociais estáticos nem estáveis no tempo e no espaço; 3) a tecnologia deve ser analisada segundo uma perspectiva de gênero e vice-versa.

A primeira parte do volume pretende tornar evidente a interligação entre gênero e tecnologia, especialmente no que respeita a colaboração das categorias sociais de gênero no progresso tecnológico. A objetiva aponta para o modo como o gênero influencia o design, a construção e o uso da tecnologia, e ainda para o modo como gênero contribuiu para tornar visíveis ou invisíveis as tecnologias disponíveis, tanto no passado como na contemporaneidade. Este primeiro bloco analisa a importância das tecnologias femininas a partir de objetos que não são habitualmente incluídos categoria de "tecnológicos" (Judith A. McGaw) e discute o papel das tecnologias masculinas para a análise da relação entre tecnologia e gênero (Ruth Oldenziel). Os dois ensaios que encerram este primeiro bloco de textos propõem uma análise situada de tecnologias que se adaptaram por ação do gênero a funções para as quais não foram explicitamente concebidas, como é o caso do aproveitamento do Raio-X para a eliminação eficaz de pelos supérfluos (Rebecca Herzig) e o caso da manipulação histórica da função do vibrador/massageador elétrico cuja gênese está associada a uma terapia médica mas que, hoje em dia, aparece invariavelmente associado à masturbação feminina "mecanicamente assistida" (Rachel Maines).

A segunda parte do volume pretende mostrar como gênero e tecnologia são categorias inter-ligadas abordando o modo como o progresso tecnológico contribui para a construção social da categoria de gênero e para a reprodução da divisão entre masculino e feminino. Aqui, questiona-se o modo como as expectativas de gênero se mantêm ou se modificam à medida que a tecnologia avança e em que medida o aparecimento de novas tecnologias é um desafio para as pessoas que se confrontam com essa inovação. Neste bloco de textos, começamos por recuar até à América do Norte nos anos 1850, quando surge o revólver Colt, a máquina de costura e o telégrafo, numa tentativa de perceber como se foram definindo as barreiras de gênero e como, baseado em determinados tipos de conhecimento, se atribuíram tarefas e ferramentas a grupos sociais específicos e distintos (Nina E. Lerman). O segundo artigo explora os limites das categorias sociais, e fá-lo com base na análise de uma atividade doméstica tipicamente feminina - a lavagem e o tratamento da roupa - que, em finais do século XIX, se tornou uma atividade industrial dominada por homens (laundrymen) que afirmaram a sua masculinidade em "contexto feminino", argumentando que sua presença no mundo das lavanderias era apenas uma conseqüência natural da industrialização e da mecanização desta atividade, uma vez que os homens tinham estado desde sempre muito mais ligados às máquinas do que as mulheres (Arwen P. Mohun). Este segundo bloco explora ainda a ligação entre o aparecimento dos computadores e o contexto/pensamento militar altamente masculinizado, como fator que permite perceber a associação da informática e da sua linguagem técnica a um domínio masculino e que clarifica de algum modo as razões para o modo desequilibrado como as tecnologias de informação se difundiram entre homens e mulheres (Paul N. Edwards).

A terceira parte do volume apresenta casos específicos de indústrias marcadas pelo estereótipo de gênero, vocacionadas para a produção de bens tendencialmente destinados para um gênero em detrimento do outro, onde se verificam adaptações e alterações ao estereótipo conforme a situação específica e o posicionamento na história. Temos aqui a análise das fábricas de cigarros que aparecem na virada do século XX no contexto norte-americano, onde a divisão do trabalho por gênero dependia da tarefa a desempenhar e da qualidade/preço do tabaco para comercialização, sendo que aos homens competia a produção dos cigarros caros, com tabaco de qualidade para apreciadores, e às mulheres, o trabalho nas fábricas onde se produziam cigarros para a comercialização em massa a baixo custo (Patricia Cooper). Temos também o exemplo da indústria de vestuário norte-americana nas últimas décadas do século XIX, onde a força operária era maioritariamente feminina, mas a presença dos homens era tanto mais visível quanto mais mecanizada fosse essa indústria (Wendy Gamber). Ainda neste bloco, temos um artigo que mostra como se alterou a distribuição do trabalho nas fábricas de embalagem de carnes entre 1890 e 1980, nas quais os homens tratavam das carnes de melhor qualidade, mais caras e finas, enquanto as mulheres se ocupavam da carne de menor qualidade direcionada para o fabrico de embutidos, salsichas e outros produtos derivados (Roger Horowitz). É nesta parte ainda que acedemos ao exemplo dos primeiros computadores que surgem durante a II Guerra Mundial e que eram na verdade "computadoras" - mulheres que trabalhavam no cálculo das trajetórias balísticas e resolviam equações matemáticas complexas para serem aplicadas em estratégias bélicas - e cujo trabalho inerente sempre foi considerado de segundo plano, até ao momento em que o mesmo trabalho passa a ser desempenhado por máquinas "inteligentes" operadas por homens que se pretendiam não menos inteligentes (Jennifer Light).

A quarta parte do volume dá conta do modo como, no início do século XX, as casas começam a se tornar autênticas fábricas e, por acréscimo, se tornam também os espaços onde a maioria das atividades tecnológicas femininas se desenrola. Nos liceus, as mulheres passam a usufruir de uma disciplina de "economia doméstica" onde aprendem a gerir a sua casa. Assiste-se à mecanização do trabalho doméstico e surgem os mais variados mecanismos de apoio às tarefas da dona de casa. Este bloco de textos pretende também explorar uma questão de fundo que se prende com a relação de causa-efeito entre mecanização e masculinidade e as razões pelas quais essa relação não se verificou com a mecanização do domínio doméstico. No Canadá, até aos anos 50, as mulheres rejeitaram as novas tecnologias de lavagem de roupa, continuando a usar os métodos tradicionais com o argumento de um melhor controle sobre a quantidade de água gasta em cada lavagem, que não acontecia com as máquinas automáticas. A rejeição deve-se assim à inadequação da tecnologia aos códigos culturais vigentes e à incompetência da máquina para cumprir a sua função de modo que se adeqüe ao conceito de "roupa lavada" e ao tipo de organização de tarefas domésticas a que as canadenses estavam habituadas (Joy Parr). O segundo artigo (Carolyn M. Goldstein) fala-nos de uma atividade de mediação comercial que surge no início do século XX, desempenhada sobretudo por mulheres contratadas pelas recém-estabelecidas empresas de fornecimento de gás e eletricidade, e dirigida principalmente para mulheres enquanto potenciais consumidoras a quem eram dirigidos programas educativos sobre os benefícios da utilização do gás e da eletricidade no trabalho doméstico. Este estudo de caso levanta a discussão sobre a separação entre os domínios público e privado, ou entre a produção e o consumo, pois esta atividade profissional desempenhada por mulheres e dirigida a mulheres colocava-as em atividade nos dois domínios. Noutro nível de abordagem, o artigo de Ronald R. Kline analisa o tempo gasto para as tarefas domésticas em dois contextos diferentes - o meio rural dos anos 20 e o meio urbano dos anos 70 - e conclui que as tecnologias domésticas que se apresentaram como economizadoras de tempo exigem tanto tempo para realizar uma tarefa quanto aquele exigido para a mesma tarefa realizada com base nas ferramentas tradicionais não mecânicas.

Trazido até nós na voz de historiadores, mas de leitura pertinente para qualquer interessado nestas questões, a coletânea aqui comentada vem reforçar a necessidade de estudar a organização da sociedade com base nas categorias de gênero. Do mesmo modo, são fornecidos neste volume importantes argumentos históricos que contribuem para sustentar a problematização antropológica dos limites das categorias de gênero. Este reader é uma importante contribuição para a História da Tecnologia, mas também para a antropologia, pois revela a importância da dimensão histórica na análise de qualquer estereótipo, no sentido em que esta nos permite identificar, no tempo, mutações e inversões que conferem às categorias classificatórias um caráter eminentemente plástico, variável e flexível.


* Resenha do livro Lerman, Nina E.; Oldenziel, Ruth; Mohun, Arwen P. (orgs.) Gender & Technology: A Reader. Baltimore and London, The John Hopkins University Press, 2003, 465p.
1 IEEE - Institute of Electrical and Electronics Engineers.
2 Rita Wright. (org.) Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1996.

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