Gender & Technology: A Reader*
Isabel Cardana
Centro de Estudos de Antropologia Social, ISCTE, Lisboa, Portugal
Esta coletânea tem origem nos trabalhos desenvolvidos por um grupo de interesse (Women in Technological History - WITH) que integra a Society for the History of Technology e se dedica ao estudo do papel das mulheres na história da tecnologia. Sete dos quinze ensaios que compõem o volume foram inicialmente publicados em Janeiro de 1997 num número especial da revista Technology and Culture, e outros que saíram em momentos distintos na mesma revista, mas também na revista Signs (IEEE Technology and Society Magazine)1 e no livro Gender and Archaeology.2
Os artigos aqui coligidos estão claramente posicionados no espaço e situados no tempo histórico (América do Norte entre 1850 e 1950) e fundamentam-se em três importantes premissas teóricas: 1) a ideologia de gênero e a tecnologia influenciam-se mutuamente; 2) a ideologia de gênero e a tecnologia não são elementos sociais estáticos nem estáveis no tempo e no espaço; 3) a tecnologia deve ser analisada segundo uma perspectiva de gênero e vice-versa.
A primeira parte do volume pretende tornar evidente a interligação entre gênero e tecnologia, especialmente no que respeita a colaboração das categorias sociais de gênero no progresso tecnológico. A objetiva aponta para o modo como o gênero influencia o design, a construção e o uso da tecnologia, e ainda para o modo como gênero contribuiu para tornar visíveis ou invisíveis as tecnologias disponíveis, tanto no passado como na contemporaneidade. Este primeiro bloco analisa a importância das tecnologias femininas a partir de objetos que não são habitualmente incluídos categoria de "tecnológicos" (Judith A. McGaw) e discute o papel das tecnologias masculinas para a análise da relação entre tecnologia e gênero (Ruth Oldenziel). Os dois ensaios que encerram este primeiro bloco de textos propõem uma análise situada de tecnologias que se adaptaram por ação do gênero a funções para as quais não foram explicitamente concebidas, como é o caso do aproveitamento do Raio-X para a eliminação eficaz de pelos supérfluos (Rebecca Herzig) e o caso da manipulação histórica da função do vibrador/massageador elétrico cuja gênese está associada a uma terapia médica mas que, hoje em dia, aparece invariavelmente associado à masturbação feminina "mecanicamente assistida" (Rachel Maines).
A segunda parte do volume pretende mostrar como gênero e tecnologia são categorias inter-ligadas abordando o modo como o progresso tecnológico contribui para a construção social da categoria de gênero e para a reprodução da divisão entre masculino e feminino. Aqui, questiona-se o modo como as expectativas de gênero se mantêm ou se modificam à medida que a tecnologia avança e em que medida o aparecimento de novas tecnologias é um desafio para as pessoas que se confrontam com essa inovação. Neste bloco de textos, começamos por recuar até à América do Norte nos anos 1850, quando surge o revólver Colt, a máquina de costura e o telégrafo, numa tentativa de perceber como se foram definindo as barreiras de gênero e como, baseado em determinados tipos de conhecimento, se atribuíram tarefas e ferramentas a grupos sociais específicos e distintos (Nina E. Lerman). O segundo artigo explora os limites das categorias sociais, e fá-lo com base na análise de uma atividade doméstica tipicamente feminina - a lavagem e o tratamento da roupa - que, em finais do século XIX, se tornou uma atividade industrial dominada por homens (laundrymen) que afirmaram a sua masculinidade em "contexto feminino", argumentando que sua presença no mundo das lavanderias era apenas uma conseqüência natural da industrialização e da mecanização desta atividade, uma vez que os homens tinham estado desde sempre muito mais ligados às máquinas do que as mulheres (Arwen P. Mohun). Este segundo bloco explora ainda a ligação entre o aparecimento dos computadores e o contexto/pensamento militar altamente masculinizado, como fator que permite perceber a associação da informática e da sua linguagem técnica a um domínio masculino e que clarifica de algum modo as razões para o modo desequilibrado como as tecnologias de informação se difundiram entre homens e mulheres (Paul N. Edwards).
A terceira parte do volume apresenta casos específicos de indústrias marcadas pelo estereótipo de gênero, vocacionadas para a produção de bens tendencialmente destinados para um gênero em detrimento do outro, onde se verificam adaptações e alterações ao estereótipo conforme a situação específica e o posicionamento na história. Temos aqui a análise das fábricas de cigarros que aparecem na virada do século XX no contexto norte-americano, onde a divisão do trabalho por gênero dependia da tarefa a desempenhar e da qualidade/preço do tabaco para comercialização, sendo que aos homens competia a produção dos cigarros caros, com tabaco de qualidade para apreciadores, e às mulheres, o trabalho nas fábricas onde se produziam cigarros para a comercialização em massa a baixo custo (Patricia Cooper). Temos também o exemplo da indústria de vestuário norte-americana nas últimas décadas do século XIX, onde a força operária era maioritariamente feminina, mas a presença dos homens era tanto mais visível quanto mais mecanizada fosse essa indústria (Wendy Gamber). Ainda neste bloco, temos um artigo que mostra como se alterou a distribuição do trabalho nas fábricas de embalagem de carnes entre 1890 e 1980, nas quais os homens tratavam das carnes de melhor qualidade, mais caras e finas, enquanto as mulheres se ocupavam da carne de menor qualidade direcionada para o fabrico de embutidos, salsichas e outros produtos derivados (Roger Horowitz). É nesta parte ainda que acedemos ao exemplo dos primeiros computadores que surgem durante a II Guerra Mundial e que eram na verdade "computadoras" - mulheres que trabalhavam no cálculo das trajetórias balísticas e resolviam equações matemáticas complexas para serem aplicadas em estratégias bélicas - e cujo trabalho inerente sempre foi considerado de segundo plano, até ao momento em que o mesmo trabalho passa a ser desempenhado por máquinas "inteligentes" operadas por homens que se pretendiam não menos inteligentes (Jennifer Light).
A quarta parte do volume dá conta do modo como, no início do século XX, as casas começam a se tornar autênticas fábricas e, por acréscimo, se tornam também os espaços onde a maioria das atividades tecnológicas femininas se desenrola. Nos liceus, as mulheres passam a usufruir de uma disciplina de "economia doméstica" onde aprendem a gerir a sua casa. Assiste-se à mecanização do trabalho doméstico e surgem os mais variados mecanismos de apoio às tarefas da dona de casa. Este bloco de textos pretende também explorar uma questão de fundo que se prende com a relação de causa-efeito entre mecanização e masculinidade e as razões pelas quais essa relação não se verificou com a mecanização do domínio doméstico. No Canadá, até aos anos 50, as mulheres rejeitaram as novas tecnologias de lavagem de roupa, continuando a usar os métodos tradicionais com o argumento de um melhor controle sobre a quantidade de água gasta em cada lavagem, que não acontecia com as máquinas automáticas. A rejeição deve-se assim à inadequação da tecnologia aos códigos culturais vigentes e à incompetência da máquina para cumprir a sua função de modo que se adeqüe ao conceito de "roupa lavada" e ao tipo de organização de tarefas domésticas a que as canadenses estavam habituadas (Joy Parr). O segundo artigo (Carolyn M. Goldstein) fala-nos de uma atividade de mediação comercial que surge no início do século XX, desempenhada sobretudo por mulheres contratadas pelas recém-estabelecidas empresas de fornecimento de gás e eletricidade, e dirigida principalmente para mulheres enquanto potenciais consumidoras a quem eram dirigidos programas educativos sobre os benefícios da utilização do gás e da eletricidade no trabalho doméstico. Este estudo de caso levanta a discussão sobre a separação entre os domínios público e privado, ou entre a produção e o consumo, pois esta atividade profissional desempenhada por mulheres e dirigida a mulheres colocava-as em atividade nos dois domínios. Noutro nível de abordagem, o artigo de Ronald R. Kline analisa o tempo gasto para as tarefas domésticas em dois contextos diferentes - o meio rural dos anos 20 e o meio urbano dos anos 70 - e conclui que as tecnologias domésticas que se apresentaram como economizadoras de tempo exigem tanto tempo para realizar uma tarefa quanto aquele exigido para a mesma tarefa realizada com base nas ferramentas tradicionais não mecânicas.
Trazido até nós na voz de historiadores, mas de leitura pertinente para qualquer interessado nestas questões, a coletânea aqui comentada vem reforçar a necessidade de estudar a organização da sociedade com base nas categorias de gênero. Do mesmo modo, são fornecidos neste volume importantes argumentos históricos que contribuem para sustentar a problematização antropológica dos limites das categorias de gênero. Este reader é uma importante contribuição para a História da Tecnologia, mas também para a antropologia, pois revela a importância da dimensão histórica na análise de qualquer estereótipo, no sentido em que esta nos permite identificar, no tempo, mutações e inversões que conferem às categorias classificatórias um caráter eminentemente plástico, variável e flexível.
* Resenha do livro Lerman, Nina E.; Oldenziel, Ruth; Mohun, Arwen P. (orgs.) Gender & Technology: A Reader. Baltimore and London, The John Hopkins University Press, 2003, 465p.
1 IEEE - Institute of Electrical and Electronics Engineers.
2 Rita Wright. (org.) Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1996.
Cadernos Pagú
Isabel Cardana
Centro de Estudos de Antropologia Social, ISCTE, Lisboa, Portugal
Esta coletânea tem origem nos trabalhos desenvolvidos por um grupo de interesse (Women in Technological History - WITH) que integra a Society for the History of Technology e se dedica ao estudo do papel das mulheres na história da tecnologia. Sete dos quinze ensaios que compõem o volume foram inicialmente publicados em Janeiro de 1997 num número especial da revista Technology and Culture, e outros que saíram em momentos distintos na mesma revista, mas também na revista Signs (IEEE Technology and Society Magazine)1 e no livro Gender and Archaeology.2
Os artigos aqui coligidos estão claramente posicionados no espaço e situados no tempo histórico (América do Norte entre 1850 e 1950) e fundamentam-se em três importantes premissas teóricas: 1) a ideologia de gênero e a tecnologia influenciam-se mutuamente; 2) a ideologia de gênero e a tecnologia não são elementos sociais estáticos nem estáveis no tempo e no espaço; 3) a tecnologia deve ser analisada segundo uma perspectiva de gênero e vice-versa.
A primeira parte do volume pretende tornar evidente a interligação entre gênero e tecnologia, especialmente no que respeita a colaboração das categorias sociais de gênero no progresso tecnológico. A objetiva aponta para o modo como o gênero influencia o design, a construção e o uso da tecnologia, e ainda para o modo como gênero contribuiu para tornar visíveis ou invisíveis as tecnologias disponíveis, tanto no passado como na contemporaneidade. Este primeiro bloco analisa a importância das tecnologias femininas a partir de objetos que não são habitualmente incluídos categoria de "tecnológicos" (Judith A. McGaw) e discute o papel das tecnologias masculinas para a análise da relação entre tecnologia e gênero (Ruth Oldenziel). Os dois ensaios que encerram este primeiro bloco de textos propõem uma análise situada de tecnologias que se adaptaram por ação do gênero a funções para as quais não foram explicitamente concebidas, como é o caso do aproveitamento do Raio-X para a eliminação eficaz de pelos supérfluos (Rebecca Herzig) e o caso da manipulação histórica da função do vibrador/massageador elétrico cuja gênese está associada a uma terapia médica mas que, hoje em dia, aparece invariavelmente associado à masturbação feminina "mecanicamente assistida" (Rachel Maines).
A segunda parte do volume pretende mostrar como gênero e tecnologia são categorias inter-ligadas abordando o modo como o progresso tecnológico contribui para a construção social da categoria de gênero e para a reprodução da divisão entre masculino e feminino. Aqui, questiona-se o modo como as expectativas de gênero se mantêm ou se modificam à medida que a tecnologia avança e em que medida o aparecimento de novas tecnologias é um desafio para as pessoas que se confrontam com essa inovação. Neste bloco de textos, começamos por recuar até à América do Norte nos anos 1850, quando surge o revólver Colt, a máquina de costura e o telégrafo, numa tentativa de perceber como se foram definindo as barreiras de gênero e como, baseado em determinados tipos de conhecimento, se atribuíram tarefas e ferramentas a grupos sociais específicos e distintos (Nina E. Lerman). O segundo artigo explora os limites das categorias sociais, e fá-lo com base na análise de uma atividade doméstica tipicamente feminina - a lavagem e o tratamento da roupa - que, em finais do século XIX, se tornou uma atividade industrial dominada por homens (laundrymen) que afirmaram a sua masculinidade em "contexto feminino", argumentando que sua presença no mundo das lavanderias era apenas uma conseqüência natural da industrialização e da mecanização desta atividade, uma vez que os homens tinham estado desde sempre muito mais ligados às máquinas do que as mulheres (Arwen P. Mohun). Este segundo bloco explora ainda a ligação entre o aparecimento dos computadores e o contexto/pensamento militar altamente masculinizado, como fator que permite perceber a associação da informática e da sua linguagem técnica a um domínio masculino e que clarifica de algum modo as razões para o modo desequilibrado como as tecnologias de informação se difundiram entre homens e mulheres (Paul N. Edwards).
A terceira parte do volume apresenta casos específicos de indústrias marcadas pelo estereótipo de gênero, vocacionadas para a produção de bens tendencialmente destinados para um gênero em detrimento do outro, onde se verificam adaptações e alterações ao estereótipo conforme a situação específica e o posicionamento na história. Temos aqui a análise das fábricas de cigarros que aparecem na virada do século XX no contexto norte-americano, onde a divisão do trabalho por gênero dependia da tarefa a desempenhar e da qualidade/preço do tabaco para comercialização, sendo que aos homens competia a produção dos cigarros caros, com tabaco de qualidade para apreciadores, e às mulheres, o trabalho nas fábricas onde se produziam cigarros para a comercialização em massa a baixo custo (Patricia Cooper). Temos também o exemplo da indústria de vestuário norte-americana nas últimas décadas do século XIX, onde a força operária era maioritariamente feminina, mas a presença dos homens era tanto mais visível quanto mais mecanizada fosse essa indústria (Wendy Gamber). Ainda neste bloco, temos um artigo que mostra como se alterou a distribuição do trabalho nas fábricas de embalagem de carnes entre 1890 e 1980, nas quais os homens tratavam das carnes de melhor qualidade, mais caras e finas, enquanto as mulheres se ocupavam da carne de menor qualidade direcionada para o fabrico de embutidos, salsichas e outros produtos derivados (Roger Horowitz). É nesta parte ainda que acedemos ao exemplo dos primeiros computadores que surgem durante a II Guerra Mundial e que eram na verdade "computadoras" - mulheres que trabalhavam no cálculo das trajetórias balísticas e resolviam equações matemáticas complexas para serem aplicadas em estratégias bélicas - e cujo trabalho inerente sempre foi considerado de segundo plano, até ao momento em que o mesmo trabalho passa a ser desempenhado por máquinas "inteligentes" operadas por homens que se pretendiam não menos inteligentes (Jennifer Light).
A quarta parte do volume dá conta do modo como, no início do século XX, as casas começam a se tornar autênticas fábricas e, por acréscimo, se tornam também os espaços onde a maioria das atividades tecnológicas femininas se desenrola. Nos liceus, as mulheres passam a usufruir de uma disciplina de "economia doméstica" onde aprendem a gerir a sua casa. Assiste-se à mecanização do trabalho doméstico e surgem os mais variados mecanismos de apoio às tarefas da dona de casa. Este bloco de textos pretende também explorar uma questão de fundo que se prende com a relação de causa-efeito entre mecanização e masculinidade e as razões pelas quais essa relação não se verificou com a mecanização do domínio doméstico. No Canadá, até aos anos 50, as mulheres rejeitaram as novas tecnologias de lavagem de roupa, continuando a usar os métodos tradicionais com o argumento de um melhor controle sobre a quantidade de água gasta em cada lavagem, que não acontecia com as máquinas automáticas. A rejeição deve-se assim à inadequação da tecnologia aos códigos culturais vigentes e à incompetência da máquina para cumprir a sua função de modo que se adeqüe ao conceito de "roupa lavada" e ao tipo de organização de tarefas domésticas a que as canadenses estavam habituadas (Joy Parr). O segundo artigo (Carolyn M. Goldstein) fala-nos de uma atividade de mediação comercial que surge no início do século XX, desempenhada sobretudo por mulheres contratadas pelas recém-estabelecidas empresas de fornecimento de gás e eletricidade, e dirigida principalmente para mulheres enquanto potenciais consumidoras a quem eram dirigidos programas educativos sobre os benefícios da utilização do gás e da eletricidade no trabalho doméstico. Este estudo de caso levanta a discussão sobre a separação entre os domínios público e privado, ou entre a produção e o consumo, pois esta atividade profissional desempenhada por mulheres e dirigida a mulheres colocava-as em atividade nos dois domínios. Noutro nível de abordagem, o artigo de Ronald R. Kline analisa o tempo gasto para as tarefas domésticas em dois contextos diferentes - o meio rural dos anos 20 e o meio urbano dos anos 70 - e conclui que as tecnologias domésticas que se apresentaram como economizadoras de tempo exigem tanto tempo para realizar uma tarefa quanto aquele exigido para a mesma tarefa realizada com base nas ferramentas tradicionais não mecânicas.
Trazido até nós na voz de historiadores, mas de leitura pertinente para qualquer interessado nestas questões, a coletânea aqui comentada vem reforçar a necessidade de estudar a organização da sociedade com base nas categorias de gênero. Do mesmo modo, são fornecidos neste volume importantes argumentos históricos que contribuem para sustentar a problematização antropológica dos limites das categorias de gênero. Este reader é uma importante contribuição para a História da Tecnologia, mas também para a antropologia, pois revela a importância da dimensão histórica na análise de qualquer estereótipo, no sentido em que esta nos permite identificar, no tempo, mutações e inversões que conferem às categorias classificatórias um caráter eminentemente plástico, variável e flexível.
* Resenha do livro Lerman, Nina E.; Oldenziel, Ruth; Mohun, Arwen P. (orgs.) Gender & Technology: A Reader. Baltimore and London, The John Hopkins University Press, 2003, 465p.
1 IEEE - Institute of Electrical and Electronics Engineers.
2 Rita Wright. (org.) Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1996.
Cadernos Pagú
Nenhum comentário:
Postar um comentário