terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Revisions: gender & sexuality in late modernity*


Revisions: gender & sexuality in late modernity*

Elizabeth Bortolaia Silva

Open University, Inglaterra. e.b.silva@open.ac.uk

O livro de Lisa Adkins, parte de uma nova lista de publicações sobre gênero da Open University Press, discute como as teorias sociais e culturais recentes que enfocam a "modernização reflexiva" e a "mobilidade" lidam com as questões de gênero e sexualidade. Esta obra se propõe a tratar estes esforços de teorização recentes em face dos processos de reconfiguração e re-desenho das relações de autoridade, privilégios e exclusão, particularmente com referência a gênero e sexualidade no mundo contemporâneo, ou da "alta modernidade".

Lisa Adkins é socióloga e, atualmente, trabalha na Universidade de Manchester no Reino Unido, após um período de trabalho na Universidade Nacional da Austrália e em outros departamentos de sociologia na Inglaterra (Universidade West of England e Universidade de Lancaster). Seus trabalhos anteriores enfocaram estudos sobre gênero em relação a emprego e trabalho. Nesses trabalhos, sua perspectiva se aproximava das tradições de feminismo radical e materialismo. Em Gender and sexuality in late modernity, o engajamento principal é com questões de cultura, que têm gradativamente passado a ocupar espaço privilegiado na sociologia britânica. Minha apresentação crítica do livro segue o formato do mesmo, que integra uma pequena introdução, cinco capítulos e uma conclusão suscinta.

No primeiro capítulo, Adkins discute as controvérsias da tese da modernização reflexiva, que tem tido muita influência na sociologia contemporânea e na teoria social e cultural recente. Modernização reflexiva tem sido entendida como uma alternativa a teorias de grande escala da vida social, como aquelas de "pós-modernidade", "alta modernidade", "capitalismo desorganizado", e "cultura de consumo", que têm dominado a teoria social. O conceito de modernização reflexiva informa debates num largo campo, incluindo a sociologia da saúde, sexualidade, intimidade, identidade, estudos de jovens, movimentos sociais, governance e corpo.

Três teses interrelacionadas emergem da teoria da modernização reflexiva. A primeira (sem indicar ordem de importância) coloca a vida social contemporânea caracterizada por uma capacidade crescente de reflexão (ou reflexividade). A segunda aponta que este processo de reflexão está relacionado à "des-tradicionalização" do social diante das regras e tradições da modernidade. Uma terceira aponta o declínio das certezas da sociedade industrial como encorajador de um processo de individualização pelo qual as pessoas são compelidas a criar a si mesmas como indivíduos. Por exemplo, Scott Lash argumenta que modernização reflexiva é uma teoria sobre os poderes crescentes dos atores sociais, ou da "agência", em relação a "estrutura"1, enquanto Ulrick Beck assume que "o que o social é e faz tem que estar envolvido em decisões individuais".2 Neste contexto, a modernização reflexiva gera a des-tradicionalização e a individualização como produtos.

No processo de individualização, os indivíduos são compelidos a criarem suas próprias biografias. Não mais existe, no mundo contemporâneo, uma clara definição do que uma pessoa "vai ser quando crescer", mas um campo abrangente de possibilidades é oferecido para escolha. No caso da vida cotidiana em família, enquanto as pessoas eram acostumadas a confiar em regras e modelos de bom funcionamento, hoje em dia um número enorme de decisões tem que ser tomada individualmente, em casais ou em unidades tipo família. Quem vai ganhar o pão de cada dia? Como os recursos da família (tempo, dinheiro, capacidades) vão ser empregados para o bem de todos? Se o bem de todos deve dar lugar ao privilégio de alguém em especial, quem deve ser este alguém? Qual o significado de ser mulher – ou ser homem – para as tarefas de emprego e domésticas, e para as trajetórias sociais que temos que realizar no dia a dia? Sem as estruturas sociais de prescrição o papel dos indivíduos é estendido. É preciso escolher. Estudando este processo, Zygmunt Bauman argumenta que a identidade humana aparece transformada de uma coisa "dada" para uma tarefa onde atores são encarregados da responsibilidade de seu desempenho.3

Como a sociologia pode lidar com estas transformações tão profundas? Isto é exatamente o que sociólogos como Bauman, Beck e Giddens, em particular, têm discutido desde o final da década de 80. Mas a contribuição de Adkins visa endereçar explicitamente o feminismo acadêmico.

Adkins argumenta que a teoria da modernização reflexiva tem tido pouco impacto sobre a sociologia de gênero e da sexualidade. Ela observa que as reflexões que mais têm influenciado os trabalhos feministas desde meados da década de 80 têm sido produzidas nos campos de estudos de "arte" e "ciências humanas", enquanto que, nas ciências sociais, perspectivas feministas não têm embarcado nesses debates mais amplos da teoria social. A referência central para este argumento é o debate entre as filósofas Judith Butler e Nancy Fraser, no qual Fraser critica os limites da teoria performativa desenvolvida por Butler como sendo "abstrata" e "trans-histórica" e, portanto, incapaz de dar conta do caráter contraditório real das relações sociais específicas. Basicamente, Butler é acusada por Frazer de reduzir o social ao cultural.4

Para entender este debate parece importante lembrar que para Fraser5 a forma paradigmática de conflito político emergente no final do século 20 é a luta por reconhecimento. Tal questão está ligada ao descentramento da categoria classe social e ao advento de diversos movimentos sociais mobilizados em torno de eixos de diferença. Nesses movimentos, as demandas predominantes se referem a questões de identidade. Apesar destas reivindicações contestarem injustiças e demandarem mudanças econômicas e culturais, elas não são – no mundo ocidental desenvolvido do norte do planeta – reinvidicações de redistribuição, mas sim de reconhecimento. Para Butler a abordagem sobre redistribuição e reconhecimento é um exemplo de uma tendência de pensamento da esquerda que coloca certas opressões no âmbito da economia política e outras opressões como exclusivamente culturais.6 Isso implica que, colocadas no campo da cultura, as opressões não são "sérias".

A apresentação deste debate para indicar as tensões entre o cultural e o social no pensamento corrente remarca a saliência da materialidade no mundo dos significados. As opressões da cultura não são menos relevantes do que as da economia política, mas a materialidade das opressões ocupa um aspecto significativo na teoria política, social e cultural. É salutar que Adkins enfatize este aspecto. Todavia, discordo de sua observação de que as perspectivas feministas em ciências sociais não têm se engajado com o debate de teoria da modernização reflexiva. No campo da sociologia da família e relações pessoais, o engajamento crítico tem sido frutífero, como evidenciado pelas obras de Lynn Jamieson, Carol Smart and Bren Neale, Elisabeth Beck-Gersheim e até mesmo meu trabalho.7 Adkins referencia quase todas estas obras sem, contudo, incorporá-las em suas reflexões. No campo da sociologia do conhecimento, a autora também ignora que abordagens feministas têm centralmente enfatizado a questão da reflexividade em relação ao poder entre o/a conhecedor/a e o/a conhecido/a. Isto posto, endosso o desejo expresso por ela de ter este campo de reflexão expandido e aprofundado para outras áreas das ciências sociais. Os esforços feitos até então devem, todavia, ser amplamente reconhecidos.

Após discutir as teses da modernização reflexiva, no segundo capítulo do livro, Adkins trata da reflexividade e da mobilidade na teoria social. Se a tendência é considerar a sexualidade como meramente cultural e desigualdades de larga escala como histórico-sociais (e com maior peso político), a reflexividade deve ser endentida como social ou cultural? A resposta é que tanto a sociedade quanto a cultura oferecem apenas entendimentos parciais.

Entendendo-se que a reflexividade não está no mundo nem no sujeito, mas simultaneamente no mundo e no sujeito, pode-se então assumir que ela constitui o habitus, no sentido empregado por Bourdieu.8 Habitus é um sistema que integra experiências passadas e serve como uma matriz de percepções, julgamentos e ações envolvendo os rituais corporais cotidianos, como um produto do que é óbvio na cultura. Habitus gera relações com o mundo, mas não por causa de um controle de reflexão, e sim por causa de uma "sensação da jogada". Assim, a identidade de gênero não pode ser vista como um processo consciente de memorização – para ser desempenhado como performance –, porque esta identidade aparece num nível pré-reflexivo.

Esta discussão faz parte do trabalho da filósofa Lois McNay9, que argumenta que as desigualdades de grande escala são entendidas em Bourdieu não em termos de uma distância institucional de dominação e opressão, mas através de uma inculcação de relações de poder sutil e cotidiana sobre os corpos e as disposições dos indivíduos. Dessa forma, o social é incorporado no corpóreo. O trabalho de Bourdieu estaria, então, corrigindo a noção da teoria da modernização reflexiva de que a identidade é crescentemente uma questão de auto-transformação reflexiva. A des-naturalização dos pressupostos de práticas sociais é parte constitutiva do entendimento da reflexividade.10 Todavia, a transformação predicada pela reflexividade na teoria da modernização reflexiva parece não ser auto-consciente. Existe uma inércia própria do habitus, na qual práticas e processos continuam a funcionar mesmo após a solicitação das condições objetivas.

Portanto, desmontando a teoria da modernização reflexiva, alguns processos indicam que a reflexividade não é uma capacidade encontrada em todos os sujeitos num contexto "des-tradicionalizado". Pelo contrário, ela emerge descompassada, dependendo da inserção dos sujeitos em contextos diferentes de relações de poder. Por exemplo, as tensões de ter que negociar continuamente os conflitos dos papéis femininos em casa e no trabalho criam reflexividade de gênero através do questionamento das convenções de feminilidade. A reflexividade emerge das discrepâncias percebidas e sentidas quando se move de um campo a outro. A mobilidade intensifica a percepção da "falta de encaixe". Como as experiências de identidade de gênero masculina e feminina vão se tornando mais híbridas, elas carregam a dificuldade de mapeamento dessas identidades com as respectivas esferas do público e do privado. As relações entre cultura e sociedade aparecem, então, como campos conectados e permeáveis, tanto quanto o pessoal e o social.

O terceiro capítulo discute feminização, mobilidade e economia cultural. Adkins propõe que a "culturalização da vida econômica" está associada a des-tradicionalização da feminilidade. Penso que o argumento é complexo e controverso, porque se refere a um pequeno setor da economia ligado a serviços de consumo de valor estético. Restrito a este âmbito, todavia, a proposição é interessante. Adkins verifica que nos setores de serviço "pós-industriais" dos centros metropolitanos, o habitus feminino está sendo transposto para um número de campos econômicos onde a feminização da masculinidade se processa. Discutindo o trabalho da geógrafa Linda McDowell11, Adkins nota que as mulheres têm maiores dificuldades em desempenhar masculinidade no espaço de trabalho do que os homens têm de desempenhar feminilidade. Mulheres se comportando como homens no trabalho cria ansiedade, e colegas e clientes freqüentemente acham o desempenho impróprio e "fora do lugar". Se para os homens o desempenho de feminilidade é freqüentemente um recurso, para as mulheres o desempenho de feminilidade (como um estilo "adotado") no trabalho é naturalizado e, portanto, não é reconhecido como o apreender instrumental, e o desempenho, de uma reflexão de gênero.

O tema da reflexividade e a política do conhecimento é discutido no capítulo 4. A capacidade para desenvolver pesquisa social reflexiva está ligada à superação da fixidez, por parte daquela que conhece, através da adoção de uma visão móvel de relação de identidade com relação àquela que é conhecida. Isto endereça a hierarquia inscrita em relações de poder ligadas a gênero, idade, etnia e classe. O perigo é que a reflexividade prescrita na teoria social corrente, como aquela da teoria da modernização reflexiva, tem atribuído reflexividade a algumas pessoas e não a outras.

Através de um estudo de teste de HIV na Austrália, Adkins discute no capítulo 5 um exemplo do argumento da atribuição restritiva de reflexividade a alguns sujeitos privilegiados. Ela verifica que a reflexividade aparece conectada com a inscrição de heterossexualidade, ao invés de desafiar e des-tradicionalizar a sexualidade. O aspecto importante da relação entre reflexividade e risco, central na teoria da modernização reflexiva, aparece, assim, em tensão, na medida em que certezas e tradições são enfatizadas em face do risco, incerteza, dúvida e ambivalência da sexualidade ligada ao teste de HIV.

O livro apresenta uma visão abrangente de debates centrais na sociologia contemporânea, questionando os preceitos do que conta como "reflexividade" e do que é caracterizado como "móvel" nas reflexões sobre mobilidade. Adkins usa tipos de evidência bastante diferentes para desenvolver seu argumento. Isto inclui seu próprio trabalho empírico, estudos de outras pesquisadoras e pesquisadores, romances, livros de auto-ajuda, e as teorias de expoentes nos vários campos de reflexão que ela desenvolve. O livro é rico neste sentido. Por outro lado, dado que três dos capítulos foram previamente publicados como artigos em revistas acadêmicas, por vezes, os argumentos parecem "mal costurados", tanto na exposição teórica quanto na evidência empírica e no estilo. Algumas sentenças são repetidas por inteiro em diferentes partes do livro. Maior cuidado editorial teria resolvido o problema. O livro traz pouco material novo, e a novidade não parece suficiente para informar um novo livro para leitoras que conhecem o trabalho anterior. A temporalidade utilizada por Adkins também é difusa, porque ela faz um uso liberal de alguns conceitos – "pós-sociedade", "pós-Aids", "pós-estrutura social" –, além de não definir outros, como "social" e "cultural", centrais para seu argumento. O uso destes termos está endereçado a certas produções da sociologia britânica, particularmente da Universidade de Lancaster na década de 90. De certa forma, o livro parece falar para os "acadêmicos" (o gênero masculino aqui é relevante) que desenvolveram e usam a sociologia da reflexividade e da mobilidade. O projeto teria sido mais efetivo se Lisa Adkins tivesse colocado os interesses feministas no centro. O livro não leva o debate feminista adiante, mas contribui para relembrar a teoria social nos campos da reflexividade e da mobilidade da contribuição mais fértil que as perspectivas feministas têm feito para o entendimento das hierarquias e divisões relacionadas com gênero e sexualidade. E isto é um feito significativo, que merece a recomendação da leitura deste livro.


* ADKINS, Lisa. Revisions: Gender & Sexuality in Late Modernity. Buckingham, Open University Press, 2002, 152p. Recebida para publicação em outubro de 2003, aceita em fevereiro de 2004.
1 LASH, Scott. Reflexivity and its Doubles: Structure, Aesthetics, Community. In: BECK, U.; GIDDENS, A. e LASH, S. Reflexive Modernization: Politics, Tradition and Aesthetics in the Modern Social Order. Cambridge, Polity Press. 1994, p.111.
2 BECK, Ulrick. Risk Society. Towards a New Modernity. Cambridge, Polity Press, 1992, p.90.
3 BAUMAN, Zygmunt. Liquid Modernity. Cambridge, Polity Press, 2000, pp.31-2.
4 BUTLER, Judith. Merely Cultural. New Left Review, 227, 1998, pp.33-44; FRASER, Nancy. Heterosexism, Misrecognition and Capitalism: a response to Judith Butler. New Left Review, 228, 1998, pp.140-9.
5 FRASER, Nancy. Justice Interruptus: Critical Reflections on the "Postsocialist” Condition. New York, Routledge, 1997.
6 BUTLER, Judith. How bodies come to matter: an interview with Judith Butler. Signs: Journal of Women in Culture and Society, 23(2), 1998, pp.275-86.
7 JAMIESON, Lynn. Intimacy. Personal Relationships in Modern Societies. Cambridge, Polity Press, 1999; SMART, Carol e NEALE, Bren. Family Fragments. Cambridge, Polity Press, 1999; BECK-GERNSHEIM, Elisabeth. Reinventing the Family. In Search of New Lifestyles. Cambridge, Polity, 2002; SILVA, Elizabeth B. e SMART, Carol. (eds.) The "New” Family?. London, Sage, 1999.
8 BOURDIEU, Pierre. In Other Words. Essays Towards a Reflexive Sociology. Cambridge, Polity Press, 1990.
9 MCNAY, Lois. Gender, Habitus and the Field: Pierre Bourdieu and the Limits of Reflexivity. Theory, Culture and Society, 16(1), 1999, pp.95-117.
10 DEAN, Jodi. The Reflective Solidarity of Democratic Feminism. In: DEAN, J. (ed.) Feminism and the New Democracy. London, Sage, 1997 ; e LASH, S. Reflexivity and its Doubles... Op. cit.
11 MCDOWELL, Linda. Capital Culture: Gender at Work in the City. Oxford, Blackwell, 1997.

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