A ânsia, o sino e a transversalidadena relação entre empregadas e patroas*
Sandra Azerêdo
Universidade Federal de Minas Gerais
Sabe, eu tenho uma raiva desse tal de sino...
Quer dizer, isso – você nunca foi empregada doméstica – são coisas que machucam a gente.
Ler o livro de Suely Kofes, Mulher/Mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação entre patroas e empregadas, resultado de sua tese de doutorado em Antropologia Social na UNICAMP, foi realmente uma viagem em vários sentidos da palavra. Antes de mais nada, uma viagem no tempo e espaço. Voltei aos Estados Unidos, entre 1981 e 1986, época em que escrevi minha própria tese, que significou um permanente encontro com a diferença. Este encontro havia começado no Rio em 1978, na pesquisa onde havíamos entrevistado várias mulheres, inclusive empregadas domésticas, que descrevemos como constituindo "um dos segmentos ocupacionais mais expressivos na alocação da mão-de-obra feminina urbana". Embora certamente percebêssemos a questão da diferença que essas mulheres colocavam para nós, nossa preocupação era "inferir as regularidades do discurso feminino", como concluímos um ensaio baseado apenas nos depoimentos dessas empregadas domésticas.1
Na análise dos dados da pesquisa, um dos aspectos que mais me chamara atenção havia sido a forma como uma dona-de-casa de classe alta se referira ao "problema da empregada", que ela considerava como sendo um dos seus "maiores problemas como dona-de-casa", apontando assim para uma diferença estrutural entre mulheres, uma diferença que se apóia na profunda desigualdade que caracteriza as relações sociais no Brasil. Minha tese, que trata das "representações da identidade sexual e do trabalho doméstico", conclui com um projeto de estudar esta relação de desigualdade, projeto que se realizou no Rio, entre 1987 e 1989.2
O livro de Kofes trata basicamente da intrincada relação entre essa diferença estrutural e a desigualdade entre mulheres que compartilham uma condição comum de sexo, isto é, de fêmeas da espécie humana, uma categoria ainda considerada como tendo menos valor. A condição comum de sexo foi fundamento de discursos sobre uma suposta identidade essencial que uniria as mulheres, discursos que foram importantes no início da retomada do movimento feminista na década de 70, quando se tentava compreender a origem da subordinação das mulheres. Atualmente esses discursos têm sido criticados pelas produções da comunidade política, uma comunidade que aparece nesses escritos como devendo ser criada por uma política guiada pelo tríplice princípio de Liberdade, Diferença e Solidariedade, conforme escreve Zygmunt Bauman, uma comunidade cujos fundamentos são "contingentes", como argumenta Judith Butler, com "identidades nômades", como escreve Chantal Mouffe, buscando afinidades e não identidades prontas e delineadas, como propõe Donna Haraway em seu manifesto ciborgue, num movimento de diáspora que tem o mar como referência – o Atlântico Negro, de Paul Gilroy – e apela para uma "racionalidade ativa, tolerante e inquieta, movida pelo desassossego", como propõe Boaventura de Souza Santos.3 O trabalho de Kofes se situa bem dentro dessas excelentes produções e representa, neste sentido, uma contribuição importante para a comunidade. Sobretudo, porque se interessa em compreender o que ela denomina de "ambigüidade estrutural", que permeia o discurso sobre as experiências da relação empregada/patroa, constituindo uma armadilha na prática política das empregadas domésticas, impedindo-as de romper "aquelas regras de convivência nos termos da relação familiar, privada, interpessoal, que marca o exercício dessa mesma relação". (p.302)
A tese de Kofes terminou de ser redigida em novembro de 1990 e foi publicada quase sem modificação, justamente porque a autora quis preservar a temporalidade do trabalho, mantendo duas importantes qualidades: "o que ele expressa de seu próprio contexto e o que ele anuncia de um contexto posterior de discussão", como ela escreve no prefácio, em que narra como resistiu à tentação de reescrever o texto de modo a levar em conta os 11 anos de experiências que o atualizariam. Preferiu ser corajosa e correr o risco de publicar algo de que é crítica; a Academia e a comunidade política só têm a ganhar com sua coragem, pois o trabalho abre muitas perspectivas para o estudo das relações de gênero e suas conexões com outras relações de dominação.
A tese se mantém dentro do campo da Antropologia, sendo basicamente uma etnografia de uma relação, uma etnografia muito completa, abrangendo não apenas "a interação na unidade doméstica", como também "a relação fora da unidade doméstica". A interação foi observada por uma assistente de pesquisa, "que conhecia bem os hábitos das casas e famílias", durante uma semana, de segunda a sexta-feira, em três unidades domésticas diferentes, cada uma representando "uma situação social significativa", em que "os sujeitos aparecem como pessoas concretas dialogando". (p.50) A cada unidade observada segue- se uma descrição analítica e uma reflexão interpretativa, preenchendo o que Kofes coloca como "a vocação da etnografia". Para estudar alguns dos mecanismos fundamentais da interação observada, tais como "a demarcação de limites e suas ritualizações" (p.49), Kofes realizou várias entrevistas com patroas e empregadas, analisando seus discursos e incluindo suas histórias de vida no anexo, de modo que os/as leitores/as possam ter acesso às interpretações das próprias mulheres sobre a situação vivida.
O estudo da relação consistiu na observação em agências de emprego, participação em cursos oferecidos para empregadas domésticas em associações profissionais e participação em um dos seus congressos, além de um estudo de instituições assistenciais –religiosas e públicas – e do curso profissionalizante, oferecido pelo Mobral, que fazia parte da tentativa de integração da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho. Kofes analisou também a trajetória jurídica do emprego doméstico, que começa com o reconhecimento da existência do serviço doméstico, distinto da escravidão, chegando ao estado atual do serviço doméstico considerado como trabalho assalariado, porém com muitas restrições no que diz respeito aos direitos. Faz um estudo de caso da lei que integra as empregadas domésticas na Previdência Social (Lei nº 5.859, de 11/12/72). Tenta estudar alguns processos abertos por empregadas na Delegacia Regional do Trabalho, mas é impedida pela burocracia e desorganização e, finalmente, quando a etnografia estava pronta e toda a tese já redigida, um sindicato de patroas é fundado em São Paulo e Kofes consegue ainda incluir o estudo deste sindicato no final da etnografia.
Além de tudo isso, faz parte da etnografia uma pesquisa quantitativa para avaliar a importância do emprego doméstico, que consistiu no estudo das fichas de inscrição de estudantes de 17 pré-escolas e 29 creches de Campinas e a aplicação de 600 questionários, representando uma amostra de 28% das residências com empregadas domésticas, 62,5% das residências sem empregadas e 9,5% de residências em que havia alguém trabalhando como empregada doméstica e/ou faxineira. Há ainda várias fotos – a maioria de empregadas em suas casas e nas casas de suas patroas, e reunidas no Congresso da Associação. Há uma única foto de uma patroa, branca, perto da pia da cozinha de sua casa. As empregadas são quase todas negras ou pardas.
Percebe-se assim uma preocupação em cercar o tema em todos os ângulos, preocupação que certamente está relacionada ao fato de Kofes nunca abrir mão da complexidade do tema que está estudando, não se contentando em utilizar apenas noções de trabalho produtivo ou improdutivo, por exemplo, mas vendo a necessidade de incluir em sua análise
uma compreensão dos efeitos mais sutis da desigualdade nos arranjos sociais, sobre como atuam e qual a importância do parentesco e da família nas sociedades modernas. E não apenas com suas dimensões informais, mas também estruturais. Que as relações de classe e de trabalho estejam sobrecodificadas pelas relações familiares e marcadas pelas distinções entre feminilidade e masculinidade nos coloca diante de um desafio analítico. (p.284)
As relações raciais não aparecem aqui como parte desse desafio, mas no prefácio ela é colocada como uma "ausência analítica" no trabalho, conforme mostra Kofes:
durante a pesquisa, defrontei-me com uma associação forte entre a domesticidade, trabalho doméstico e a escravidão, e entre a empregada doméstica – e apenas a empregada – e a negritude.4 Enfim, faltou à minha análise aquilo que muitas perspectivas de gênero enfatizariam, a transversabilidade. (p.21)
É aqui que começo uma segunda viagem na minha leitura. Transversabilidade ou transversalidade, na definição de Elisabeth Lobo, se refere aos cruzamentos que as trajetórias e as práticas feministas fazem com outros movimentos políticos.5 Como explicar esta ausência na tese de Kofes, que tem demonstrado interesse continuado na questão racial no Brasil, desde pelo menos sua dissertação, tendo editado o número especial dos Cadernos Pagu sobre raça e gênero, contendo os trabalhos apresentados no GT sobre Raça e Gênero, da ABA, e o debate com os editores da Revista Raça Brasil, realizado na UNICAMP? Parte da resposta a essa questão pode estar neste número do Pagu, onde Kofes comenta como as relações raciais no Brasil têm sido "um assunto ainda pleno de ambigüidades", para o qual se usa geralmente um tom de sussurro.6 É muito possível que essas ambigüidades e essas ausências estejam relacionadas com "a incapacidade generalizada dos brasileiros de identificarem padrões de violência e discriminação específicos da questão racial", o que se associa à "contínua despolitização das relações raciais brasileiras pelas elites brancas", como escreve Michael Hanchard.7 É difícil para nós lidarmos com a diferença em termos de relações raciais.
Porém, acredito que no livro de Kofes a transversalidade esteja presente, ainda que de modo sussurrante. E até mesmo em seu artigo sobre o tema, publicado anteriormente8, onde Kofes "não trata da interseção gênero/raça", como observei em meu trabalho sobre empregadas e patroas9, pode-se argumentar que, ao tomar o título emprestado de sua dissertação sobre pobres e negros, alguma associação ela estivesse estabelecendo entre gênero e relações raciais no Brasil. É verdade que a capa do livro – duas mulheres uma frente à outra: empregada (uniformizada, lenço na cabeça, olhos baixos, mais cansada, etc.) e patroa (cabelos soltos, roupa decotada, colar e brincos) –, reproduzindo uma das ilustrações do manual do Mobral, possa estar representando mais uma ausência, na medida em que ambas apresentam o mesmo fenótipo – são brancas – negando assim o elemento racial que as diferencia em suas relações concretas. Porém, o que Kofes parece ter querido mostrar com essa capa seria a caracterização de uma mulher como trabalhadora e a outra mulher simplesmente como mulher, ou seja, a ambigüidade da posição da empregada, ao mesmo tempo incluída e excluída da categoria mulher. Se, por outro lado, levarmos em conta a ausência do elemento racial podemos interpretar o clichê do Mobral como reforçando a representação da categoria mulher (em geral) como sendo branca. Basta imaginarmos a reação que poderia causar um clichê que representasse empregada e patroa como sendo ambas negras e/ou pardas.
Vejo a transversalidade, ou talvez a abertura para ela, na forma como Kofes justifica sua perspectiva "mais introspectiva", escolhendo como foco a relação e a interação em oposição a perspectivas apenas macro-estruturais. Segundo ela, este foco "revela como [a relação] concentra sobremaneira alguns dos sentidos do tipo de dominação [e assim muito bem o revela] que marcam as relações de desigualdade na sociedade brasileira" (p.28). Kofes relaciona esses sentidos ao paternalismo de que fala Roberto Schwartz, comentando a obra de Machado de Assis na maturidade, paternalismo que se caracteriza
como tendo de próprio a falta de fronteira clara, no pólo forte da relação, entre autoridade social e vontade pessoal, esta última sendo um conjunto mais ou menos contraditório de desejos inadmissíveis, de cegueira e de justificações infundadas; nela a situação do inferior ganharia outra dimensão. Pois a integração social deste se faria pela subordinação direta às confusões afetivas – que fazem autoridade e seria ingratidão não respeitar – da parte superior. O autor vai dizer logo em seguida, (...) Alguma coisa do gênero, talvez, do que é hoje a situação da empregada doméstica. (pp.27-28)
Considero preciosa esta passagem porque ela aponta para um indício fundamental no exercício que Kofes propõe em direção à transversalidade – a afetividade e os desejos, ou, mais especificamente, as "confusões afetivas", de indefinição de fronteiras. Esses seriam "os efeitos mais sutis da desigualdade nos arranjos sociais" de que fala Kofes. Neste sentido, gostaria de sugerir uma possibilidade de explorar o manancial de dados contido no livro, partindo de um dos mecanismos que foi observado na interação e na relação das empregadas e patroas, que é a demarcação de limites e suas ritualizações. A demarcação de limites é um mecanismo fundamental da construção da identidade, cujo estudo tem a diferença como um de seus "pressupostos básicos", como demonstra Kofes.
O ato de se pôr em grupo, de formular categorias, o de desenvolver noções de pessoa, de Eu e de Outro; o ato de nomear, de estabelecer relações sociais, fronteiras de interação e de demarcar com sentidos culturais tais fronteiras; o ato de representar como de dentro, de fora, ou mesmo a ambigüidade; enfim, tantos e tantos atos, não seriam, afinal, questões desde Mauss e Durkheim? E não seriam essas as questões que ainda hoje enfrentamos? Se o são, fica ainda a pergunta: por que tantas – e complexas – questões terminaram por se encontrar no conceito de identidade? (p.116)
Acredito que no conceito de identidade, entendido como um permanente processo de identificação, de "devir outro", como escrevem Antonio Ciampa e Suely Rolnik10, estaria uma abertura para se pensar a relação entre patroas e empregadas como se constituindo num complexo entrecruzamento de gênero e raça.
Na interação e na relação que Kofes estudou, a demarcação de limites se dá especialmente em relação a quem é suja – "porca", "cria os filhos no maior chiqueiro" (p.402) – e quem faz o trabalho braçal, indicando uma enorme ansiedade por parte das patroas diante do perigo de esses limites serem ultrapassados. Há incontáveis situações no livro que servem para ilustrar a ansiedade relacionada à demarcação limpeza/sujeira, com referências a hábitos de higiene, cheiros e corpos das empregadas. Em relação ao trabalho braçal, há menos referências, e algumas delas tentam denegar a dependência das patroas em relação às empregadas para realizarem esse tipo de trabalho.
A patroa, fundadora do Sindicato de Empregadores Domésticos, por exemplo, fala da "ânsia de não ficar sozinha com a trabalheira doméstica" (p.344), que faz as patroas aceitarem qualquer empregada. Porém, logo em seguida, afirma que
geralmente a patroa pode passar perfeitamente sem a sua doméstica, se quiser. Hoje há mil facilidades com eletrodomésticos, pratos congelados, ou semi-prontos, e principalmente com a divisão do trabalho. Que o marido e os filhos ajudem. (p. 346, grifos meus)
O termo ânsia mostra bem a tragédia que representa para a patroa assumir a identidade de "sua doméstica", essa outra tão próxima e tão distante. A fundadora do sindicato ainda aconselha que se "dispense" a empregada, caso ela não aceite negociar sobre salário e trabalho no sábado: "Dispense. Você não vai morrer por causa disso. Até vai melhorar, sendo mais cuidadosa, fazendo ginástica... doméstica". É a cena 25 da peça de Noemi Marinho, que trata da relação entre uma empregada e uma patroa que mostra de forma bem realista a reação da patroa depois de ter "dispensado" a empregada:
Eu não acredito... Não. Não está acontecendo comigo. Eu estou sem empregada! Ela foi embora... Eu vou ter que ligar pra todas as minhas amigas perguntando se alguém sabe de alguma. Eu vou ter que procurar agência. Eu vou começar a cobiçar a dos outros... Eu vou ter que começar tudo de novo. Eu vou ter que pôr anúncio nos classificados. Eu vou ter que ler os anúncios de classificados. Eu vou ter que ir à feira. Eu vou ter que almoçar com minha mãe! Eu vou ter que arrumar a casa. Eu vou ter que lavar a roupa. Lavar a louça. Eu vou ter que cozinhar. [concluindo] Eu vou ter que voltar para a análise!11
Esse terror da diferença, de ser outra, é muito parecido com o terror das mulheres honestas ao serem comparadas às prostitutas. O lugar da prostituição, "a profissão mais antiga do mundo" está muito próximo do lugar do emprego doméstico –esses lugares de mulheres que representam a alteridade de uma identidade de outras mulheres. No livro, há várias situações que mostram essa relação estreita entre prostituição e trabalho doméstico, principalmente nas falas das patroas, que insinuam que as empregadas se prostituem, fazendo "trottoir a noite inteira". Daí a urgência por parte da patroa de separar, delimitar espaços. O uniforme, o elevador de serviço, o sino de chamar a empregada durante as refeições – "o bendito sino", "sininho de prata" – são formas de delimitação, sendo que este último é tão radical, que elimina a fala, é muda.
Marilena Chauí, escrevendo sobre relações de violência entre mulheres, argumenta que
é possível perceber que a ambigüidade imperante nessas relações decorre do fato de serem relações de rivalidade cujo núcleo se encontra numa figura ausente: o homem. Cremos que a presença-ausente do elemento masculino determina o jogo dos conflitos fundamentais que tendem rumo à violência – desde a competição mãe-filha, sogra-nora, esposa-a "outra" pelo mesmo amor, até a disputa de competências entre patroa e empregada na administração do espaço doméstico. (1985: 52).
A referência de uma empregada ao patrão, como alguém que "não fede nem cheira" (p.35) pode ser entendida em relação a essa presença-ausente do homem, a que se refere Chauí, da mesma forma que as prostitutas, se referindo a seus clientes, comentam sempre: "Homem é bobo..."12
Ao analisar outra delimitação no espaço da casa reservado às empregadas – o quarto de empregada que, muitas vezes, foi planejado como depósito, sem janela, um verdadeiro "quarto de despejo" –, Kofes apresenta o depoimento de uma empregada dizendo que "não agüent[a] mais dormir no meio de jornais velhos, tábua de passar roupa e garrafas vazias", e um trecho de Clarice Lispector, falando do quarto de empregada "na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis". Clarice fala mesmo de empregadas em vários de seus textos, e no final da vida escreve sobre Macabéa – "A moça é uma verdade da qual eu não queria saber". Pensei na relação de Clarice com Macabéa na Hora da Estrela ao ler este livro, que contém uma análise das mais cuidadosas sobre relações de identidade, diferença e desigualdade entre mulheres. Finalizo com a seguinte passagem de Kofes:
Creio que, ao falar de mulheres, de "patroas" e "empregadas domésticas", enquanto pesquisadora, falo também de um "nós" – desdobrado em "outros", sem dúvida –, mas não de um "outro" longínquo. Assim, a subjetividade que pode estar impressa aqui não é apenas aquela maneira "pessoal" de escolher e visualizar os fenômenos, mas também a da inserção pessoal do sujeito no lugar e na interação que constituem seu objeto. (...) a relação que, como pesquisadora, eu vivia com meu "objeto" era homóloga àquela do "objeto" ele próprio: um jogo entre identidade e diferença, entre proximidade e distanciamento, o qual exigia muitas vezes ritualizações a fim de clarear as fronteiras incessantemente obscurecidas. (pp.69-70)
* KOFES, Suely. Mulher, mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2001, 470p. Recebida para publicação em agosto de 2002.
1 Grupo Ceres, Sexualidade Feminina: algumas considerações sobre identidade sexual e identidade social. Escrita ensaio Ano III, nº 5, 1979; e Espelho de Vênus: Identidade Sexual e Social da Mulher . São Paulo, Brasiliense, 1981.
2 AZERÊDO, S. Relações entre Empregadas e Patroas: reflexões sobre o feminismo em países multiraciais. In: COSTA, A. e BRUSCHINI, C. Rebeldia e Submissão: Estudos sobre Condição Feminina. São Paulo, FCC/Vértice, 1989.
3 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1997; BUTLER, Judith. Contingent Foundations: Feminism and the Question of "Postmodernism". In: BUTLER, J. and SCOTT, Joan. (ogs.) Feminists Theorize the Political. New York/London, Routledge, 1992 [NE: Existe tradução para o português – Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do "pós-modernismo". Cadernos Pagu (11), Núcleo de Estudos de Gênero, Unicamp, 1998, pp.11-42]; GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/Univ. Cândido Mendes, 2001 (Trad.: Cid Knipel Moreira); HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue. Belo Horizonte, Autêntica, 2000 (Trad.: Tomás Tadeu da Silva); MOUFFE, Chantal. Por uma política de identidade nômade. Debate Feminista, edição especial – Cidadania e Feminismo –, México/São Paulo, Metis/ Melhoramentos, 1999; SANTOS, Boaventura S. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo, Cortez, 2001.
4 Aqui, Kofes acrescenta, em uma nota, que em sua pesquisa anterior (se referindo a sua dissertação de mestrado em antropologia social – Entre nós os pobres, eles os negros, em que focaliza mais especificamente as relações raciais) ela "já encontrara insistentemente a relação entre cozinheira e negra". (p.37)
5 SOUZA-LOBO, Elisabeth, A Classe Operária tem Dois Sexos: Trabalho, Dominação e Resistência. São Paulo, Brasiliense /SMC, 1991, p.267.
6 Cadernos Pagu (6-7), Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1996, pp.297-298.
7 HANCHARD, Michael. Orfeu e o Poder: Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro, Eduerj, 2001, p.21.
8 ALMEIDA, M. Suely Kofes de. Entre nós mulheres, elas as patroas e elas as empregadas. In: Colcha de Retalhos. São Paulo, Brasiliense, 1982.
9 AZERÊDO, S. Relações entre Empregadas e Patroas... Op. cit., 199.
10 CIAMPA, Antonio. Identidade. In: LANE, Sílvia e CODO, Wanderley. (orgs.) Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo, Brasiliense, 1989, pp.58-75; e ROLNIK, Suely. Cidadania e alteridade: o psicólogo, o homem da ética e a reinvenção da democracia. In: SPINK, Mary Jane. (org.) A Cidadania em Construção: Uma reflexão transdisciplinar. São Paulo, Cortez, 1994, pp.157-176.
11 MARINHO, Noemi. Fulaninha e Dona Coisa. São Paulo, Caliban Editorial, 1996, p.79.
12 ANDRADE, Dorotéa Santana de. O Fenômeno Social da Prostituição: Um Enfoque Psicanalítico, dissertação de mestrado em Psicologia Social, Belo Horizonte, UFMG, 2002.
Cadernos Pagú
Sandra Azerêdo
Universidade Federal de Minas Gerais
Sabe, eu tenho uma raiva desse tal de sino...
Quer dizer, isso – você nunca foi empregada doméstica – são coisas que machucam a gente.
Ler o livro de Suely Kofes, Mulher/Mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação entre patroas e empregadas, resultado de sua tese de doutorado em Antropologia Social na UNICAMP, foi realmente uma viagem em vários sentidos da palavra. Antes de mais nada, uma viagem no tempo e espaço. Voltei aos Estados Unidos, entre 1981 e 1986, época em que escrevi minha própria tese, que significou um permanente encontro com a diferença. Este encontro havia começado no Rio em 1978, na pesquisa onde havíamos entrevistado várias mulheres, inclusive empregadas domésticas, que descrevemos como constituindo "um dos segmentos ocupacionais mais expressivos na alocação da mão-de-obra feminina urbana". Embora certamente percebêssemos a questão da diferença que essas mulheres colocavam para nós, nossa preocupação era "inferir as regularidades do discurso feminino", como concluímos um ensaio baseado apenas nos depoimentos dessas empregadas domésticas.1
Na análise dos dados da pesquisa, um dos aspectos que mais me chamara atenção havia sido a forma como uma dona-de-casa de classe alta se referira ao "problema da empregada", que ela considerava como sendo um dos seus "maiores problemas como dona-de-casa", apontando assim para uma diferença estrutural entre mulheres, uma diferença que se apóia na profunda desigualdade que caracteriza as relações sociais no Brasil. Minha tese, que trata das "representações da identidade sexual e do trabalho doméstico", conclui com um projeto de estudar esta relação de desigualdade, projeto que se realizou no Rio, entre 1987 e 1989.2
O livro de Kofes trata basicamente da intrincada relação entre essa diferença estrutural e a desigualdade entre mulheres que compartilham uma condição comum de sexo, isto é, de fêmeas da espécie humana, uma categoria ainda considerada como tendo menos valor. A condição comum de sexo foi fundamento de discursos sobre uma suposta identidade essencial que uniria as mulheres, discursos que foram importantes no início da retomada do movimento feminista na década de 70, quando se tentava compreender a origem da subordinação das mulheres. Atualmente esses discursos têm sido criticados pelas produções da comunidade política, uma comunidade que aparece nesses escritos como devendo ser criada por uma política guiada pelo tríplice princípio de Liberdade, Diferença e Solidariedade, conforme escreve Zygmunt Bauman, uma comunidade cujos fundamentos são "contingentes", como argumenta Judith Butler, com "identidades nômades", como escreve Chantal Mouffe, buscando afinidades e não identidades prontas e delineadas, como propõe Donna Haraway em seu manifesto ciborgue, num movimento de diáspora que tem o mar como referência – o Atlântico Negro, de Paul Gilroy – e apela para uma "racionalidade ativa, tolerante e inquieta, movida pelo desassossego", como propõe Boaventura de Souza Santos.3 O trabalho de Kofes se situa bem dentro dessas excelentes produções e representa, neste sentido, uma contribuição importante para a comunidade. Sobretudo, porque se interessa em compreender o que ela denomina de "ambigüidade estrutural", que permeia o discurso sobre as experiências da relação empregada/patroa, constituindo uma armadilha na prática política das empregadas domésticas, impedindo-as de romper "aquelas regras de convivência nos termos da relação familiar, privada, interpessoal, que marca o exercício dessa mesma relação". (p.302)
A tese de Kofes terminou de ser redigida em novembro de 1990 e foi publicada quase sem modificação, justamente porque a autora quis preservar a temporalidade do trabalho, mantendo duas importantes qualidades: "o que ele expressa de seu próprio contexto e o que ele anuncia de um contexto posterior de discussão", como ela escreve no prefácio, em que narra como resistiu à tentação de reescrever o texto de modo a levar em conta os 11 anos de experiências que o atualizariam. Preferiu ser corajosa e correr o risco de publicar algo de que é crítica; a Academia e a comunidade política só têm a ganhar com sua coragem, pois o trabalho abre muitas perspectivas para o estudo das relações de gênero e suas conexões com outras relações de dominação.
A tese se mantém dentro do campo da Antropologia, sendo basicamente uma etnografia de uma relação, uma etnografia muito completa, abrangendo não apenas "a interação na unidade doméstica", como também "a relação fora da unidade doméstica". A interação foi observada por uma assistente de pesquisa, "que conhecia bem os hábitos das casas e famílias", durante uma semana, de segunda a sexta-feira, em três unidades domésticas diferentes, cada uma representando "uma situação social significativa", em que "os sujeitos aparecem como pessoas concretas dialogando". (p.50) A cada unidade observada segue- se uma descrição analítica e uma reflexão interpretativa, preenchendo o que Kofes coloca como "a vocação da etnografia". Para estudar alguns dos mecanismos fundamentais da interação observada, tais como "a demarcação de limites e suas ritualizações" (p.49), Kofes realizou várias entrevistas com patroas e empregadas, analisando seus discursos e incluindo suas histórias de vida no anexo, de modo que os/as leitores/as possam ter acesso às interpretações das próprias mulheres sobre a situação vivida.
O estudo da relação consistiu na observação em agências de emprego, participação em cursos oferecidos para empregadas domésticas em associações profissionais e participação em um dos seus congressos, além de um estudo de instituições assistenciais –religiosas e públicas – e do curso profissionalizante, oferecido pelo Mobral, que fazia parte da tentativa de integração da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho. Kofes analisou também a trajetória jurídica do emprego doméstico, que começa com o reconhecimento da existência do serviço doméstico, distinto da escravidão, chegando ao estado atual do serviço doméstico considerado como trabalho assalariado, porém com muitas restrições no que diz respeito aos direitos. Faz um estudo de caso da lei que integra as empregadas domésticas na Previdência Social (Lei nº 5.859, de 11/12/72). Tenta estudar alguns processos abertos por empregadas na Delegacia Regional do Trabalho, mas é impedida pela burocracia e desorganização e, finalmente, quando a etnografia estava pronta e toda a tese já redigida, um sindicato de patroas é fundado em São Paulo e Kofes consegue ainda incluir o estudo deste sindicato no final da etnografia.
Além de tudo isso, faz parte da etnografia uma pesquisa quantitativa para avaliar a importância do emprego doméstico, que consistiu no estudo das fichas de inscrição de estudantes de 17 pré-escolas e 29 creches de Campinas e a aplicação de 600 questionários, representando uma amostra de 28% das residências com empregadas domésticas, 62,5% das residências sem empregadas e 9,5% de residências em que havia alguém trabalhando como empregada doméstica e/ou faxineira. Há ainda várias fotos – a maioria de empregadas em suas casas e nas casas de suas patroas, e reunidas no Congresso da Associação. Há uma única foto de uma patroa, branca, perto da pia da cozinha de sua casa. As empregadas são quase todas negras ou pardas.
Percebe-se assim uma preocupação em cercar o tema em todos os ângulos, preocupação que certamente está relacionada ao fato de Kofes nunca abrir mão da complexidade do tema que está estudando, não se contentando em utilizar apenas noções de trabalho produtivo ou improdutivo, por exemplo, mas vendo a necessidade de incluir em sua análise
uma compreensão dos efeitos mais sutis da desigualdade nos arranjos sociais, sobre como atuam e qual a importância do parentesco e da família nas sociedades modernas. E não apenas com suas dimensões informais, mas também estruturais. Que as relações de classe e de trabalho estejam sobrecodificadas pelas relações familiares e marcadas pelas distinções entre feminilidade e masculinidade nos coloca diante de um desafio analítico. (p.284)
As relações raciais não aparecem aqui como parte desse desafio, mas no prefácio ela é colocada como uma "ausência analítica" no trabalho, conforme mostra Kofes:
durante a pesquisa, defrontei-me com uma associação forte entre a domesticidade, trabalho doméstico e a escravidão, e entre a empregada doméstica – e apenas a empregada – e a negritude.4 Enfim, faltou à minha análise aquilo que muitas perspectivas de gênero enfatizariam, a transversabilidade. (p.21)
É aqui que começo uma segunda viagem na minha leitura. Transversabilidade ou transversalidade, na definição de Elisabeth Lobo, se refere aos cruzamentos que as trajetórias e as práticas feministas fazem com outros movimentos políticos.5 Como explicar esta ausência na tese de Kofes, que tem demonstrado interesse continuado na questão racial no Brasil, desde pelo menos sua dissertação, tendo editado o número especial dos Cadernos Pagu sobre raça e gênero, contendo os trabalhos apresentados no GT sobre Raça e Gênero, da ABA, e o debate com os editores da Revista Raça Brasil, realizado na UNICAMP? Parte da resposta a essa questão pode estar neste número do Pagu, onde Kofes comenta como as relações raciais no Brasil têm sido "um assunto ainda pleno de ambigüidades", para o qual se usa geralmente um tom de sussurro.6 É muito possível que essas ambigüidades e essas ausências estejam relacionadas com "a incapacidade generalizada dos brasileiros de identificarem padrões de violência e discriminação específicos da questão racial", o que se associa à "contínua despolitização das relações raciais brasileiras pelas elites brancas", como escreve Michael Hanchard.7 É difícil para nós lidarmos com a diferença em termos de relações raciais.
Porém, acredito que no livro de Kofes a transversalidade esteja presente, ainda que de modo sussurrante. E até mesmo em seu artigo sobre o tema, publicado anteriormente8, onde Kofes "não trata da interseção gênero/raça", como observei em meu trabalho sobre empregadas e patroas9, pode-se argumentar que, ao tomar o título emprestado de sua dissertação sobre pobres e negros, alguma associação ela estivesse estabelecendo entre gênero e relações raciais no Brasil. É verdade que a capa do livro – duas mulheres uma frente à outra: empregada (uniformizada, lenço na cabeça, olhos baixos, mais cansada, etc.) e patroa (cabelos soltos, roupa decotada, colar e brincos) –, reproduzindo uma das ilustrações do manual do Mobral, possa estar representando mais uma ausência, na medida em que ambas apresentam o mesmo fenótipo – são brancas – negando assim o elemento racial que as diferencia em suas relações concretas. Porém, o que Kofes parece ter querido mostrar com essa capa seria a caracterização de uma mulher como trabalhadora e a outra mulher simplesmente como mulher, ou seja, a ambigüidade da posição da empregada, ao mesmo tempo incluída e excluída da categoria mulher. Se, por outro lado, levarmos em conta a ausência do elemento racial podemos interpretar o clichê do Mobral como reforçando a representação da categoria mulher (em geral) como sendo branca. Basta imaginarmos a reação que poderia causar um clichê que representasse empregada e patroa como sendo ambas negras e/ou pardas.
Vejo a transversalidade, ou talvez a abertura para ela, na forma como Kofes justifica sua perspectiva "mais introspectiva", escolhendo como foco a relação e a interação em oposição a perspectivas apenas macro-estruturais. Segundo ela, este foco "revela como [a relação] concentra sobremaneira alguns dos sentidos do tipo de dominação [e assim muito bem o revela] que marcam as relações de desigualdade na sociedade brasileira" (p.28). Kofes relaciona esses sentidos ao paternalismo de que fala Roberto Schwartz, comentando a obra de Machado de Assis na maturidade, paternalismo que se caracteriza
como tendo de próprio a falta de fronteira clara, no pólo forte da relação, entre autoridade social e vontade pessoal, esta última sendo um conjunto mais ou menos contraditório de desejos inadmissíveis, de cegueira e de justificações infundadas; nela a situação do inferior ganharia outra dimensão. Pois a integração social deste se faria pela subordinação direta às confusões afetivas – que fazem autoridade e seria ingratidão não respeitar – da parte superior. O autor vai dizer logo em seguida, (...) Alguma coisa do gênero, talvez, do que é hoje a situação da empregada doméstica. (pp.27-28)
Considero preciosa esta passagem porque ela aponta para um indício fundamental no exercício que Kofes propõe em direção à transversalidade – a afetividade e os desejos, ou, mais especificamente, as "confusões afetivas", de indefinição de fronteiras. Esses seriam "os efeitos mais sutis da desigualdade nos arranjos sociais" de que fala Kofes. Neste sentido, gostaria de sugerir uma possibilidade de explorar o manancial de dados contido no livro, partindo de um dos mecanismos que foi observado na interação e na relação das empregadas e patroas, que é a demarcação de limites e suas ritualizações. A demarcação de limites é um mecanismo fundamental da construção da identidade, cujo estudo tem a diferença como um de seus "pressupostos básicos", como demonstra Kofes.
O ato de se pôr em grupo, de formular categorias, o de desenvolver noções de pessoa, de Eu e de Outro; o ato de nomear, de estabelecer relações sociais, fronteiras de interação e de demarcar com sentidos culturais tais fronteiras; o ato de representar como de dentro, de fora, ou mesmo a ambigüidade; enfim, tantos e tantos atos, não seriam, afinal, questões desde Mauss e Durkheim? E não seriam essas as questões que ainda hoje enfrentamos? Se o são, fica ainda a pergunta: por que tantas – e complexas – questões terminaram por se encontrar no conceito de identidade? (p.116)
Acredito que no conceito de identidade, entendido como um permanente processo de identificação, de "devir outro", como escrevem Antonio Ciampa e Suely Rolnik10, estaria uma abertura para se pensar a relação entre patroas e empregadas como se constituindo num complexo entrecruzamento de gênero e raça.
Na interação e na relação que Kofes estudou, a demarcação de limites se dá especialmente em relação a quem é suja – "porca", "cria os filhos no maior chiqueiro" (p.402) – e quem faz o trabalho braçal, indicando uma enorme ansiedade por parte das patroas diante do perigo de esses limites serem ultrapassados. Há incontáveis situações no livro que servem para ilustrar a ansiedade relacionada à demarcação limpeza/sujeira, com referências a hábitos de higiene, cheiros e corpos das empregadas. Em relação ao trabalho braçal, há menos referências, e algumas delas tentam denegar a dependência das patroas em relação às empregadas para realizarem esse tipo de trabalho.
A patroa, fundadora do Sindicato de Empregadores Domésticos, por exemplo, fala da "ânsia de não ficar sozinha com a trabalheira doméstica" (p.344), que faz as patroas aceitarem qualquer empregada. Porém, logo em seguida, afirma que
geralmente a patroa pode passar perfeitamente sem a sua doméstica, se quiser. Hoje há mil facilidades com eletrodomésticos, pratos congelados, ou semi-prontos, e principalmente com a divisão do trabalho. Que o marido e os filhos ajudem. (p. 346, grifos meus)
O termo ânsia mostra bem a tragédia que representa para a patroa assumir a identidade de "sua doméstica", essa outra tão próxima e tão distante. A fundadora do sindicato ainda aconselha que se "dispense" a empregada, caso ela não aceite negociar sobre salário e trabalho no sábado: "Dispense. Você não vai morrer por causa disso. Até vai melhorar, sendo mais cuidadosa, fazendo ginástica... doméstica". É a cena 25 da peça de Noemi Marinho, que trata da relação entre uma empregada e uma patroa que mostra de forma bem realista a reação da patroa depois de ter "dispensado" a empregada:
Eu não acredito... Não. Não está acontecendo comigo. Eu estou sem empregada! Ela foi embora... Eu vou ter que ligar pra todas as minhas amigas perguntando se alguém sabe de alguma. Eu vou ter que procurar agência. Eu vou começar a cobiçar a dos outros... Eu vou ter que começar tudo de novo. Eu vou ter que pôr anúncio nos classificados. Eu vou ter que ler os anúncios de classificados. Eu vou ter que ir à feira. Eu vou ter que almoçar com minha mãe! Eu vou ter que arrumar a casa. Eu vou ter que lavar a roupa. Lavar a louça. Eu vou ter que cozinhar. [concluindo] Eu vou ter que voltar para a análise!11
Esse terror da diferença, de ser outra, é muito parecido com o terror das mulheres honestas ao serem comparadas às prostitutas. O lugar da prostituição, "a profissão mais antiga do mundo" está muito próximo do lugar do emprego doméstico –esses lugares de mulheres que representam a alteridade de uma identidade de outras mulheres. No livro, há várias situações que mostram essa relação estreita entre prostituição e trabalho doméstico, principalmente nas falas das patroas, que insinuam que as empregadas se prostituem, fazendo "trottoir a noite inteira". Daí a urgência por parte da patroa de separar, delimitar espaços. O uniforme, o elevador de serviço, o sino de chamar a empregada durante as refeições – "o bendito sino", "sininho de prata" – são formas de delimitação, sendo que este último é tão radical, que elimina a fala, é muda.
Marilena Chauí, escrevendo sobre relações de violência entre mulheres, argumenta que
é possível perceber que a ambigüidade imperante nessas relações decorre do fato de serem relações de rivalidade cujo núcleo se encontra numa figura ausente: o homem. Cremos que a presença-ausente do elemento masculino determina o jogo dos conflitos fundamentais que tendem rumo à violência – desde a competição mãe-filha, sogra-nora, esposa-a "outra" pelo mesmo amor, até a disputa de competências entre patroa e empregada na administração do espaço doméstico. (1985: 52).
A referência de uma empregada ao patrão, como alguém que "não fede nem cheira" (p.35) pode ser entendida em relação a essa presença-ausente do homem, a que se refere Chauí, da mesma forma que as prostitutas, se referindo a seus clientes, comentam sempre: "Homem é bobo..."12
Ao analisar outra delimitação no espaço da casa reservado às empregadas – o quarto de empregada que, muitas vezes, foi planejado como depósito, sem janela, um verdadeiro "quarto de despejo" –, Kofes apresenta o depoimento de uma empregada dizendo que "não agüent[a] mais dormir no meio de jornais velhos, tábua de passar roupa e garrafas vazias", e um trecho de Clarice Lispector, falando do quarto de empregada "na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis". Clarice fala mesmo de empregadas em vários de seus textos, e no final da vida escreve sobre Macabéa – "A moça é uma verdade da qual eu não queria saber". Pensei na relação de Clarice com Macabéa na Hora da Estrela ao ler este livro, que contém uma análise das mais cuidadosas sobre relações de identidade, diferença e desigualdade entre mulheres. Finalizo com a seguinte passagem de Kofes:
Creio que, ao falar de mulheres, de "patroas" e "empregadas domésticas", enquanto pesquisadora, falo também de um "nós" – desdobrado em "outros", sem dúvida –, mas não de um "outro" longínquo. Assim, a subjetividade que pode estar impressa aqui não é apenas aquela maneira "pessoal" de escolher e visualizar os fenômenos, mas também a da inserção pessoal do sujeito no lugar e na interação que constituem seu objeto. (...) a relação que, como pesquisadora, eu vivia com meu "objeto" era homóloga àquela do "objeto" ele próprio: um jogo entre identidade e diferença, entre proximidade e distanciamento, o qual exigia muitas vezes ritualizações a fim de clarear as fronteiras incessantemente obscurecidas. (pp.69-70)
* KOFES, Suely. Mulher, mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2001, 470p. Recebida para publicação em agosto de 2002.
1 Grupo Ceres, Sexualidade Feminina: algumas considerações sobre identidade sexual e identidade social. Escrita ensaio Ano III, nº 5, 1979; e Espelho de Vênus: Identidade Sexual e Social da Mulher . São Paulo, Brasiliense, 1981.
2 AZERÊDO, S. Relações entre Empregadas e Patroas: reflexões sobre o feminismo em países multiraciais. In: COSTA, A. e BRUSCHINI, C. Rebeldia e Submissão: Estudos sobre Condição Feminina. São Paulo, FCC/Vértice, 1989.
3 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1997; BUTLER, Judith. Contingent Foundations: Feminism and the Question of "Postmodernism". In: BUTLER, J. and SCOTT, Joan. (ogs.) Feminists Theorize the Political. New York/London, Routledge, 1992 [NE: Existe tradução para o português – Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do "pós-modernismo". Cadernos Pagu (11), Núcleo de Estudos de Gênero, Unicamp, 1998, pp.11-42]; GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/Univ. Cândido Mendes, 2001 (Trad.: Cid Knipel Moreira); HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue. Belo Horizonte, Autêntica, 2000 (Trad.: Tomás Tadeu da Silva); MOUFFE, Chantal. Por uma política de identidade nômade. Debate Feminista, edição especial – Cidadania e Feminismo –, México/São Paulo, Metis/ Melhoramentos, 1999; SANTOS, Boaventura S. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo, Cortez, 2001.
4 Aqui, Kofes acrescenta, em uma nota, que em sua pesquisa anterior (se referindo a sua dissertação de mestrado em antropologia social – Entre nós os pobres, eles os negros, em que focaliza mais especificamente as relações raciais) ela "já encontrara insistentemente a relação entre cozinheira e negra". (p.37)
5 SOUZA-LOBO, Elisabeth, A Classe Operária tem Dois Sexos: Trabalho, Dominação e Resistência. São Paulo, Brasiliense /SMC, 1991, p.267.
6 Cadernos Pagu (6-7), Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1996, pp.297-298.
7 HANCHARD, Michael. Orfeu e o Poder: Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro, Eduerj, 2001, p.21.
8 ALMEIDA, M. Suely Kofes de. Entre nós mulheres, elas as patroas e elas as empregadas. In: Colcha de Retalhos. São Paulo, Brasiliense, 1982.
9 AZERÊDO, S. Relações entre Empregadas e Patroas... Op. cit., 199.
10 CIAMPA, Antonio. Identidade. In: LANE, Sílvia e CODO, Wanderley. (orgs.) Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo, Brasiliense, 1989, pp.58-75; e ROLNIK, Suely. Cidadania e alteridade: o psicólogo, o homem da ética e a reinvenção da democracia. In: SPINK, Mary Jane. (org.) A Cidadania em Construção: Uma reflexão transdisciplinar. São Paulo, Cortez, 1994, pp.157-176.
11 MARINHO, Noemi. Fulaninha e Dona Coisa. São Paulo, Caliban Editorial, 1996, p.79.
12 ANDRADE, Dorotéa Santana de. O Fenômeno Social da Prostituição: Um Enfoque Psicanalítico, dissertação de mestrado em Psicologia Social, Belo Horizonte, UFMG, 2002.
Cadernos Pagú
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